A revista o Viés em parceria com a revista Vírus Planetário realizou uma série de entrevistas com os candidatos – e anticandidatos – da esquerda à presidência nas eleições 2014. Faltando poucos dias para o 1º turno das eleições o que se espera é contribuir com o debate sobre temas importantes e muitas vezes esquecidos pelas grandes candidaturas. Com reduzido tempo de televisão e baixo orçamento os candidatos Mauro Iasi (PCB), Zé Maria (PSTU) e a candidata Luciana Genro (PSOL) têm dificuldade para atingir um eleitorado tão grande quanto o brasileiro, mas expressam – cada qual a sua maneira – ideais políticos que rompem a ordem estabelecida e projetam novos horizontes para a grande parcela da população cotidianamente explorada pelo capitalismo. Além dos três candidatos da esquerda tem ainda uma entrevista com um anarquista, que contrapõe as candidaturas da esquerda como ferramenta política. Quatro versões do debate a respeito dos temas que nos são caros para você decidir votar (ou não). Boa leitura.
A seguir a entrevista com Luciana Genro, candidata do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) à presidência. A entrevista foi concedida à revista o Viés em visita da candidata à Santa Maria (RS).
Você diz que sua candidatura é de esquerda e que se diferencia das candidaturas de direita, ou “da ordem”. O que define uma candidatura de esquerda?
Eu acho que o fundamental na definição de uma candidatura de esquerda é que tipo de economia a gente defende para o país. Hoje nós temos uma economia voltada para os interesses do capital, dos grandes bancos, dos especuladores, das empreiteiras e das multinacionais. A defesa do famoso tripé econômico que é feita pelos três candidatos “do sistema”, como tenho definido – a Dilma, o Aécio e a Marina – é o que garante os interesses do capital. Questionar essa lógica da economia voltada para sustentar o lucro dos bancos e das grandes empresas é pra mim a essência do questionamento do próprio sistema capitalista. É isso que nós estamos fazendo.
Já é a segunda eleição presidencial na qual uma frente de esquerda que reúna os partidos socialistas do Brasil não é viabilizada. Onde esbarra essa união dos partidos de esquerda? E o que diferencia a proposta do PSOL para a presidência das outras candidaturas da esquerda socialista (Mauro Iasi e Zé Maria)?
Primeiro, preciso dizer que foi lamentável a gente não ter conseguido construir essa frente de esquerda. Eu fiz todos os esforços para isso, inclusive enquanto estava ocupando a posição de vice do Randolfe. Fui colocada nessa posição justamente pelo embate interno que havia tido o PSOL, quando disputei com ele a indicação. Para garantir a unidade do PSOL fui indicada como vice dele. E eu fiz inclusive o gesto de abrir mão dessa função de vice garantindo a unidade do PSOL mesmo estando ausente da chapa para poder oferecer a posição ao PSTU ou ao PCB, para que não nos acusassem de hegemonistas e de que estávamos com a chapa pronta, para que eles aderissem. Só que não adiantou. Eles não quiseram abrir o diálogo. O PSTU chegou a se manifestar dizendo que tinha divergências programáticas com o PSOL. Nós não sabemos quais são essas divergências, porque nunca fizemos uma reunião com as direções dos dois partidos para fazer a discussão do programa. Eu acho que, na essência programática, temos muitas semelhanças com o PSTU e com o PCB. Nós temos diferenças na hora de expressar o nosso programa. Nós achamos que é preciso expressar nossas propostas de forma que elas sejam compreendidas pelo povo. Não adianta fazer apenas propaganda socialista na campanha eleitoral. A gente precisa dialogar a partir do nível de consciência das pessoas e buscando apresentar medidas de transição que possam apontar para um modelo socialista. Não adianta simplesmente a gente reafirmar a ideia da revolução e do socialismo porque isso não dialoga com o sentimento médio do povo e dificulta muito para ganharmos algum apoio.
Um dos argumentos centrais contra os projetos da esquerda socialista para o Brasil versa sobre o forte caráter ideológico de debate enquanto, em contrapartida, existiria uma ausência de propostas que realmente possam ser colocadas em prática como forma de governo. Como você vê um projeto socialista viável para o Brasil hoje?
Eu vejo que nós precisamos em primeiro lugar construir um governo que signifique um poder popular. No sentido de que o povo se aproprie do poder e possa determinar os rumos do país. A partir daí poderemos tomar medidas de transição que apontem no sentido de um modelo socialista. Até porque não se constrói o socialismo a partir de um processo eleitoral. Essa é uma velha tese da social-democracia que acabou virando liberal, inclusive. O socialismo se constrói a partir da luta, da mobilização e do enfrentamento. O processo eleitoral pode abrir as portas para esse processo. No momento em que um governo popular chegue ao poder e comece a tomar medidas que enfrentem o interesse dos capitalistas e se fortaleça junto ao povo, a gente cria condições para construir um modelo socialista. Mas isso é um processo, não será do dia para a noite e não vai ser resultado de uma vitória eleitoral.
Existem muitos projetos de democratização da mídia por meio do financiamento, por parte dos governos, de mídias alternativas, mas sem alterar as concessões às grandes corporações de comunicação. Seu governo pretende manter essas estruturas? Como funcionaria sua proposta de democratização da mídia?
Funcionaria, em primeiro lugar, revendo todas as concessões, inclusive fazendo auditoria sobre concessões dos canais de televisão, principalmente, que é a mídia mais poderosa, para verificar possíveis irregularidades nessas concessões e impedir a propriedade cruzada dos meios de comunicação. E pulverizar: não aceitar que uma família controle vários meios de comunicação, como vemos hoje. E, além disso, estimular e apoiar, inclusive financeiramente, os meios de comunicação alternativos. Jornais, rádios e também televisão, pois embora tenhamos a internet – que é um meio de comunicação muito mais democrático – as televisões ainda tem uma força muito grande. Eu tenho sentido muito isso durante a campanha eleitoral. O fato de que a gente não tem a cobertura da maioria das grandes redes de televisão. Preciso fazer uma ressalva aqui: a Record é a única que está nos fazendo uma cobertura decente, digamos assim. As outras somente de vez em quando nos dão espaço, enquanto que para os outros três principais candidatos do sistema eles dão cobertura diária. Isso acaba gerando uma sensação em uma parte significativa da população de que só existem três candidatos. Televisão ainda é uma mídia chave para a democratização real do país, não só dos meios de comunicação.
Outra proposta defendida por sua campanha é o fim da guerra às drogas. No seu programa você cita a maconha, mas não trata de outras drogas. Descriminalizar a maconha seria o suficiente para coibir, nas palavras do seu programa, “o mais poderoso instrumento de criminalização da pobreza e de instigação ao racismo”?
Não, acho que a descriminalização da maconha é suficiente para atenuar, mas não para resolver. A minha posição pessoal é pelo fim da criminalização de todas as drogas, porque acho que a guerra às drogas só provoca mais violência e mais corrupção policial. Mas essa não é uma posição que tenha um acúmulo de debate no próprio PSOL, então nós optamos por fazer uma denúncia da guerra às drogas e por propor a descriminalização da maconha, por ser uma droga mais leve e com efeitos colaterais semelhantes ao do álcool e do cigarro – alguns dizem até que mais brandos do que os do álcool e do cigarro –, porque é uma droga com maior aceitação social maior e cuja descriminalização implica em riscos menores. Além de que temos o exemplo do Uruguai, que também ajuda a avançar nesse debate da descriminalização da maconha. Nós propomos que a maconha seja tratada nos mesmos patamares do álcool e do cigarro, e isso não significa fazer apologia. Até porque sabemos que ela tem efeitos colaterais que podem ser danosos. Mas a criminalização só joga o usuário nas mãos do traficante, inclusive propiciando que ele tenha contato com outras drogas muito mais perigosas, como é o caso do crack, que é muito mais lucrativo para o tráfico. Mas eu não tenho dúvida que para acabarmos completamente com a criminalização da pobreza é preciso acabar com a guerra às drogas. Mas isso só se pode fazer com uma política de segurança pública que não seja mais uma política calcada no combate ao pequeno traficante, mas sim calcada em buscar os grandes traficantes internacionais, inclusive os nacionais que estão em postos da institucionalidade, como vimos naquele caso do helicóptero do senador. E parar de trancafiar os pequenos traficantes que em geral são jovens, pretos, semianalfabetos, réus primários e que são presos inclusive sem ter cometido nenhum tipo de violência contra pessoas. Então essa política precisa ser denunciada fortemente e a descriminalização da maconha é um primeiro passo no sentido de se questionar a guerra às drogas e no sentido de garantir também ao usuário de maconha mais informação sobre as consequências da maconha e também uma droga de melhor qualidade, porque ela causa mais danos do que causaria se tivesse um mínimo controle de qualidade.
Um dos principais agentes da guerra às drogas são as polícias. Quais são as propostas para essas instituições?
Sim, a gente apoia a PEC 51, que é a proposta de desmilitarização, de carreira única para a polícia – porque hoje nós temos duas portas de entrada para a polícia: uma para os oficiais e outra para os soldados, e muitas vezes o oficial nunca foi soldado, nunca viveu essa realidade. A desmilitarização é fundamental porque a lógica militar é uma lógica de guerra. E a lógica da polícia não deveria ser uma lógica de guerra, deveria ser de proteção. Por isso que a desmilitarização é um elemento fundamental para se ter uma polícia com um treinamento voltado para a garantia dos direitos humanos, e não para a violação dos direitos humanos. Ao mesmo tempo também uma reforma nessa estrutura policial, com salários dignos e com ciclo completo, que é o fim dessa segmentação, na qual o policial que começa o trabalho de investigação não vai até o final. Isso acaba fazendo com que o índice de esclarecimento de homicídios do Brasil seja um dos mais baixos do mundo. Porque não temos uma polícia com competência, estrutura e aparato de investigação, que deveria ser o principal aparato, e não o aparato bélico.
Antes da entrevista buscamos e não encontramos no seu programa de governo disponível no seu site suas propostas para o avanço da laicidade do Estado. Há propostas para essa questão? Quais são elas?
Isso não consta no nosso programa porque vivemos em um Estado laico. O que a gente precisa é combater as tentativas de fazer com que crenças ou dogmas religiosos interfiram nas políticas públicas. É isso que a gente vem vendo acontecer a partir da iniciativa de alguns segmentos evangélicos, das bancadas evangélicas no congresso nacional, que sistematicamente têm tentado impor as suas convicções religiosas na operação de políticas públicas. Infelizmente o governo da presidente Dilma tem cedido a essas pressões, como foi o caso de ter terminado com o programa Escola Sem Homofobia. Foi por pressão dessas bancadas. A nosso ver, defender a liberdade religiosa é defender o Estado laico. A garantia para que todas as religiões possam coexistir e para que aqueles que não têm religião também tenham seus direitos assegurados é a laicidade do Estado e é que as políticas públicas não estejam submetidas a nenhuma religião.
Seu programa de governo para a Economia prevê, entre outras propostas, a auditoria da dívida pública, a reforma do sistema tributário incluindo a taxação de grandes fortunas e a tributação maior sobre o capital do que sobre os rendimentos do trabalho. Isso seria, obviamente, alvo de retaliação dos mais ricos. Como você pensa evitar que essas medidas afetem a vida e o bolso dos trabalhadores pela inflação e pelo desemprego?
Bom, primeiro a gente tem que saber que enfrentar os interesses do capital não é uma tarefa fácil. Supõe justamente um enfrentamento. A nossa proposta de auditoria da dívida, suspensão de pagamento aos bancos e aumento da tributação sobre o capital e sobre as grandes fortunas é uma proposta que dialoga com uma necessidade premente, que é o Estado brasileiro se apropriar de recursos públicos para sustentar o “bolsa-banqueiro”. Esse é um enfrentamento necessário. Se houver retaliações por parte das grandes empresas e dos capitalistas, nós tomaremos medidas necessárias para enfrentar essas retaliações. Se for necessário promover expropriações, nós vamos promover, se for necessário organizar grandes mobilizações do povo para sustentar o governo diante de uma tentativa de desestabilização, nós faremos isso. Só diante da situação concreta é que se pode saber exatamente o que é necessário fazer.
No seu projeto você cita a expressão “democracia real” e diz pretender “refundar as instituições apodrecidas e vazias de representatividade, para que correspondam à vontade popular” além de implantar medidas de “democracia direta”. Quais seriam essas medidas?
Fundamentalmente valorizar a mobilização, os plebiscitos e os referendos. Mas o que me parece ser estruturante desse processo é uma assembleia popular constituinte que rediscutisse toda a estrutura política do país. Nós entendemos que isso seria um processo ao longo do nosso governo. Não poderia se ter uma medida imediata porque precisaríamos, antes de tudo, mudar a fórmula eleitoral. Porque se a gente eleger uma assembleia nacional constituinte com as mesmas regras eleitorais das vigentes hoje, nos depararíamos com o mesmo tipo de deputado que temos hoje. Em primeiro lugar, precisaríamos iniciar processos de mudança para poder ter uma assembleia popular que fosse eleita de uma forma diferente da que temos hoje. Sem o poder econômico determinando. E inclusive possibilitando a sindicatos e organizações populares que apresentassem seus candidatos sem estar necessariamente vinculados a partidos políticos, para que haja uma expressão mais genuína dos movimentos sociais dentro dessa constituinte. Então a ideia seria construir as condições para rediscutir estruturalmente as instituições do país. E valorizar as manifestações populares para que possamos aprovar mudanças nas leis. Precisaremos dessa mobilização. Um congresso eleito não teria maioria do PSOL, mesmo que a gente eventualmente ganhasse a eleição. Nós precisaríamos da mobilização e da pressão. Eu fui deputada federal por oito anos e percebi que sempre que havia pressão entre os deputados, a correlação de forças interna mudava completamente. E essa pressão pode se expressar tanto em mobilizações multitudinárias, como em junho de 2013, como simplesmente lotando as galerias do plenário da Câmara ou através das redes sociais. A pressão realmente funciona. É assim que entendemos que é possível construir uma democracia real, com as pessoas participando realmente da política e pressionando, tensionado os parlamentares e o próprio governo a tomarem as medidas necessárias para atender aos interesses da maioria.
Sua campanha defende o financiamento público de campanha, mas recebeu recursos do Zaffari e, em eleições passadas, de outras empresas como a Gerdau e Taurus. Você não acha que existe uma contradição entre as bandeiras que sua candidatura defende e o financiamento desses grandes grupos empresariais?
Não, não acho. Primeiro porque o estatuto do PSOL é muito claro no sentido de proibir doações de empreiteiras, bancos e empresas multinacionais. O estatuto sempre foi cumprido. Em segundo lugar: nós defendemos o fim do financiamento privado, mas o financiamento privado continua existindo. Terceiro: nós nunca fizemos negociações com esses grupos. O caso da Guerdau, por exemplo, foi excepcional num momento em que a empresa ofereceu o mesmo valor para todos os candidatos a prefeito que tinham alguma viabilidade eleitoral. Nós aceitamos sem sequer sentar em uma mesa com a Guerdau para estabelecer algum diálogo. O Zaffari é uma empresa que foi pioneira em apoiar o PT, na época em que o partido ainda era visto como um partido de esquerda radical. Nunca nos pediu nada em troca. Nunca assumimos nenhum compromisso com o Zaffari. Inclusive fazemos na Câmara de Vereadores de Porto Alegre a luta contra os grandes supermercados multinacionais que tentam ganhar espaço na cidade tentando terminar com as pequenas redes. Então a gente tem muita tranquilidade nesses casos excepcionais, como o do Zaffari, de que nos possibilitam ter um mínimo de estrutura de campanha. E realmente é um mínimo. Nosso orçamento de campanha é de 900 mil reais, enquanto o da Dilma é de 290 milhões de reais. Não há nem comparação com a quantidade de recursos que as grandes empresas investem nas candidaturas do sistema e o pouco que nos oferecem que nos possibilita minimamente funcionar na campanha eleitoral.
Mesmo campanhas mais conservadoras se apropriam do legado de junho de 2013. Qual a importância politica de junho se ela pode ser tão maleável? O que representaram as jornadas de junho para você?
Eu vejo que junho foi um movimento do povo. Nenhum partido, entidade ou sindicato foi dono do movimento. Foi muito autônomo, espontâneo. Isso teve um lado extremamente positivo, porque nenhum partido conseguiu controlar. E o PT, que era o tradicional partido que controlava os movimentos sociais perdeu o controle, assim como os outros partidos da esquerda tradicional. Ao mesmo tempo, ao não ter uma direção política e não ter uma pauta clara, se abre essa maleabilidade para que qualquer partido possa dizer que apoia. Mas acho que isso não tira em nada o valor do movimento, no sentido de que a grande lição que ficou foi que as pessoas s deram conta de que a mobilização é possível – e isso estava duvidoso na cabeça das pessoas. Porque ao longo de todos essas anos do PT no poder, as mobilizações foram abafadas pelo governo, até porque as direções foram cooptadas em sua maioria. Que é possível se mobilizar e que a mobilização funciona. As pessoas viram que as elites políticas tremeram, tiveram que dar respostas, prometer coisas. Tivemos vitórias como o preço das passagens. Isso foi uma vitória objetiva. Conseguiu-se a votação a respeito do voto secreto na Câmara, que era uma batalha de muitos anos também. As vitórias foram muito pequenas em relação ao tamanho da mobilização justamente porque não havia uma pauta clara, uma organização maior, interlocutores para dialogar com os governos. Acredito que foi um enorme primeiro passo que se deu para que um movimento de massa se libertasse dos grilhões das velhas direções. A partir daí, dessa negação do velho, começa a surgir algo novo. Para nós, do PSOL, e acho que é o desafio de todos os partidos de esquerda socialista, é ser parte desse processo de organização da indignação. A juventude espanhola usava muito essa palavra de ordem: necessidade de se organizar a indignação. Essa é a nova etapa na qual entramos depois de junho. Nós estamos tentando colaborar pra isso, não só no processo eleitoral, mas também no dia-a-dia das lutas sociais, nos sindicatos, nos movimentos, na juventude onde atuávamos com muita força. O movimento Juntos é parte desse processo de organização da indignação da juventude. A gente está tentando colaborar nesse processo. Não depende só de nós, mas é um desenvolvimento da correlação de forças e do próprio surgimento de lideranças no movimento que começam a se postular.
Para saber mais acesse o Programa de Governo da candidatura.
Eleições 2014: Entrevista com Luciana Genro (PSOL), pelo viés da Redação.
Veja também as outras entrevistas da série sobre as eleições 2014:
Zé Maria
Mauro Iasi
Um olhar anarquista sobre as Eleições