Sinos tocam, fazendo as vezes de deixa para a entrada de um coro infantil especialmente composto por vozes femininas. Na tela surge um homem de fala mansa, cabelos compridos e barba. Sobre meia espalda, um manto vermelho. Abaixo, uma túnica branca. À testa, uma coroa de espinhos. O sujeito começa, então, a transmitir sua mensagem, e ela versa sobre velha política, poder, regalias e corrupção. Ao término, o xará do filho de Maria pede seu voto e sua confiança para que ele ocupe uma das mais de mil cadeiras distribuídas entre as 27 Assembleias Legislativas de todo o Brasil.
Esse homem, contudo, não está só. São muitos os ex-atletas, cantores e cantoras, atrizes e atores, celebridades e até o que convencionou-se chamar de subcelebridade (aquelas que desfrutaram sequer 15 minutos de fama). Indo mais além, surge uma nova categoria entre as mais corriqueiras, a dos covers e sósias (geralmente de atletas e ex-atletas, cantores e cantoras, atrizes…). É fato e inegável que concorrer a um cargo eletivo é um direito conquistado a duras penas e garantido pela Constituição Federal, a partir de critérios apontados pelo Artigo 14, Parágrafo 3 – e não é a intenção desse texto defender a limitação do número de candidaturas. Contudo, é igualmente evidente a presença, a cada eleição, de uma espécie de candidatos que trazem em primeiro lugar qualquer elemento que não aqueles diretamente ligados à pautas, programas, propostas e posturas essencialmente políticas. São a fama, ou quase ela, os feitos no esporte, no teatro, na TV e na música, e até a semelhança física. Nesses casos, tudo vale e acresce na conta das urnas, menos pautas, bandeiras, compromissos e propostas. E nessa soma eleitoral, é fundamental dizer que tais candidatos podem assumir papel de protagonistas, já que nem sempre nas urnas 2+2 é igual a 4.
A presença dessas figuras nas eleições não é por acaso. Na maioria das vezes, cientes do descrédito do processo eleitoral perante a população, e da possibilidade desse sentimento se converter no que convencionou-se chamar de “voto de protesto”, muitos partidos investem dinheiro e visibilidade em tais candidatos celebridades e/ou “exóticos”. Isso se dá porque os “votos da piada” ou da “fama” acabam sendo somados em um bolo total, e puxando, em muitos casos, uma bancada inteira que ocupará a Câmara Federal, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores. Além disso, a matemática eleitoral pode permitir que uma candidatura com poucos votos seja vitoriosa, caso pertença a um partido ou coligação com forte votação, enquanto um postulante com grande número de votos, até maior que outros, pode ficar de fora da “festa da democracia”. Parece confuso e ilógico, mas estamos falando de algo cotidiano em nossas vidas, ao menos a cada dois anos.
Quem você está elegendo
Para começo de conversa é importante destacar que o sistema eleitoral no Brasil é dividido em dois modelos. O Sistema Majoritário, que é responsável pela eleição de presidente, senadores, governadores e prefeitos (os cargos do Executivo – com exceção do Senado), e o Sistema Proporcional, que escolhe deputados federais, estaduais e distritais, e vereadores (o Legislativo).
No caso do Sistema Majoritário, a matemática é bastante simples, embora esse modelo ainda seja dividido em outras duas possibilidades. Uma delas é o Sistema Majoritário Absoluto, que rege as eleições para governadores e presidente, conforme o Art. 77. da Constituição. Nesse cálculo, vence as eleições aquele que somar metade dos votos válidos (e nos quais não são computados votos em branco e nulos) mais um. Ou seja, em uma eleição com dois candidatos e na qual participam 100 votantes, sendo que todos os votantes comparecem e não há votos em branco ou nulos, o candidato que receber 51 votos é o vencedor. Vale salientar que não se trata de 51% dos votos, e sim 50% mais 1 voto. A necessidade de que se vença por maioria absoluta, conforme já diz o nome do sistema, é o que implica na necessidade da realização de segundo turno, por exemplo. Aliás, o Sistema Majoritário Absoluto também é o vigente em eleições para prefeitos municipais em municípios com mais de 200 mil eleitores, que podem ter segundo turno, também conforme a Constituição.
Já a segunda opção é a do Sistema Majoritário Simples, aplicado especialmente para as eleições de prefeitos municipais em cidades com menos de 200 mil eleitores, e também na eleição de senadores. Nesse caso, o cálculo não é simples apenas no nome, já que vence, conforme a Constituição Federal, aquele que obtiver mais votos entre todos os candidatos independente da porcentagem. Se entre três candidatos, em um pleito com 100 votantes, o candidato A recebe 40 votos, o candidato B 35, e o candidato C 25, o candidato A não alcançou 50% mais 1, mas, pelo Sistema Majoritário Simples, está eleito.
Quem chega lá…
Até aí tudo bem, contas fáceis e resultados óbvios. E é aí que entra o Sistema Proporcional, que, embora de simples compreensão, retira um pouco da lógica da matemática eleitoral. O Sistema Proporcional também é definido pela Constituição Federal e complementado pelo Código Eleitoral Brasileiro, Lei Nº 4.737, de 15 de julho de 1995, que garante o “exercício de direitos políticos precipuamente os de votar e ser votado”. E é no Art. 106 que o Código Eleitoral nos brinda com o Quociente Eleitoral, o cálculo que regulamenta as eleições para deputados distritais, estaduais e federais, e vereadores.
O Art. 106 do Código Eleitoral aponta então como Quociente Eleitoral a divisão do número de votos válidos (que, lembrando, não abarcam nulos e brancos) pelos lugares que serão ocupados. Sendo assim, o valor obtido a partir dessa conta representa o mínimo de votos que um partido ou coligação deve alcançar para garantir ao menos uma cadeira. Além disso esse valor será fundamental para entender quantas vagas cada partido ou coligação terá. Por exemplo, em uma eleição na qual são disputadas 10 vagas e se soma, ao final do processo, um total de 600 votos válidos, o cálculo 600 dividos por 10 resultará em um Quociente Eleitoral de 60 votos. Sendo assim, todos os partidos que alcançarem 60 votos garantem ao menos uma vaga. Já os que fizerem até 59 votos estão fora. Ainda é importante dizer que o quociente eleitoral tem um critério bastante simples de arredondamento, já que, caso a fração após a vírgula seja menor que ½, o valor é mantido, enquanto frações que ultrapassem a metade são arredondados para cima. Já a distribuição do número de vagas de cada partido ou coligação se dá a partir de um novo cálculo, o do Quociente Partidário.
…e quem leva mais?
Feito o cálculo do Quociente Eleitoral, e definido qual é o mínimo de votos que cada legenda ou coligação deve atingir para garantir uma vaga, passamos então para o cálculo do Quociente Partidário, que definirá quantas cadeiras cada um terá. O Quociente Partidário está descrito no Art. 107, também do Código Eleitoral, e tem um cálculo bastante simples, já que trata, basicamente, da divisão do número de votos recebidos pelo partido ou coligação (somando os votos em cada candidato e também os na legenda) pelo valor do quociente eleitoral. Ou seja, se o quociente eleitoral é de 60 votos e a coligação A recebeu 300 votos, o cálculo 300 divididos por 60 aponta um resultado de 5 vagas alcançadas pela coligação A. Essa lógica representa, em primeira instância, que o eleitor não vota no candidato, e sim no partido ou coligação. No caso do quociente partidário, o critério de arredondamento trata-se de ignorar a fração, sendo que mais ou menos que ½ após a vírgula não altera o valor.
A partir de então, o que rege a escolha de quem ocupa cada vaga é o critério de Lista Aberta, o que representa que as cadeiras serão ocupadas a partir da votação de cada candidato. Bem simples: os 5 mais votados da coligação A (que atingiu o quociente eleitoral e, a partir do quociente partidário, alcançou 5 vagas) estão eleitos. O 6º será suplente e assim por diante.
Contudo, ainda existe a possibilidade, mesmo que remota, de não serem preenchidas todas as vagas. Por exemplo, caso existam 10 vagas e apenas 3 legendas tenham atingido o Quociente Eleitoral, sendo que o Quociente Partidário garante à coligação A 5 vagas, ao partido B 2 vagas, ao partido C 1 vaga, e à coligação D 1 vaga, num total de 9 vagas ocupadas, ainda resta uma cadeira disponível. O cálculo para o preenchimento da sobras eleitorais ocorre da seguinte maneira, conforme o Art. 109 do Código Eleitoral. Para início de conversa, novamente só participam da distribuição das sobras aqueles que atingiram o quociente eleitoral. A partir daí, divide-se o número de votos válidos em cada legenda ou coligação de legendas pelo número de lugares já ocupados mais um. Aquele que atingir a maior média fica com a primeira vaga livre. Exemplificando, se a coligação A tem 5 vagas e recebeu 300 votos, o cálculo será de 300 divididos pelas 5 cadeiras mais um, ou seja 300 divididos por 6. Nos resultados desses cálculos, o que tiver a maior média leva a vaga que está livre. Caso permaneça outra vaga disponível, o processo é refeito mas já contabilizando o cargo ocupado no primeiro momento da distribuição das sobras.
O resultado final
Em princípio, e no papel, o Sistema Proporcional e o cálculo dos Quocientes é um artefato importante da democracia, já que garantiria a proporcionalidade e a representatividade mais ampla possível no Legislativo. Contudo, o oportunismo de partidos puramente eleitoreiros, que promovem o inchaço de suas chapas com candidatos não alinhados a partir critérios como programas políticos (como os citados no início do texto), faz com que os cálculos dos Quocientes representem uma grande armadilha ao eleitor. Por exemplo, em uma legislação eleitoral que premia a realização de coligações, às quais os partidos atendem também para somar mais tempo no programa eleitoral de rádio e TV, e em muitos casos coalizões que não possuem afinidade programática alguma, o cálculo do Quociente benefícia, como já dito, todo o partido ou toda a coligação. Sendo assim, partidos historicamente adversários promovem alianças temporárias exclusivamente com objetivos eleitorais, e os votos personificados somam em um número total que acaba por eleger diferentes figuras com distintas posturas e propostas (ou nenhuma proposta, em alguns casos). Esse inchaço fica evidente no período eleitoral não apenas por conta dos “candidatos celebridades” ou aqueles de duvidosa veia humorística, mas também quando vemos que, por exemplo, todos os vereadores já eleitos de um determinado partido, mesmo não tendo cumprido por completo seu mandato, se lançam a deputados estaduais ou federais. Talvez esses até se elejam, e talvez até tenham projetos e queiram alçar novos espaços na política, é verdade, mas na lógica eleitoral oportunista essas candidaturas não representam nada além da possibilidade de contar cada voto na soma total. Aliás, sobre as coligações, é importante destacar que, segundo a legislação eleitoral, essas são consideradas de forma unificada apenas durante a campanha, sendo que após as eleições nada obriga que todos os partidos que compuseram aquela coalizão, sigam atuando unitáriamente (em muitos casos, depois de eleitos, muitos vão até para a oposição). Ou seja, o voto ajuda a somar e eleger candidatos de uma determinada legenda mas não exclusivamente de um mesmo partido e que, em muitos casos, nem sequer possuem afinidades e propostas para além do pleito.
Além disso, o cálculo dos Quocientes permite, por mais ilógico que seja, que um candidato de péssima votação seja eleito caso esteja em uma coligação ou pertença a um partido com boa votação. Por exemplo, uma coligação que alcança um número de votos 10 vezes maior que o o Quociente Eleitoral, tem grandes chances de puxar, lá no rabo da canoa, um candidato com número de votos inferior ao de vários outros, mas que, por sua vez, não atingiram o Quociente. Isso é muito grave e influencia diretamente na representatividade do Legislativo.
Política só para doutores
Como já dito na introdução do texto, a proposta de abordar, mesmo que rapidamente, a matemática eleitoral, não necessariamente representa a defesa da limitação do número de candidaturas, inclusive por esse ser um direito constitucional. Além disso, historicamente a política é majoritariamente ocupada por um estrato muito bem definido da sociedade (geralmente homens, brancos, heterossexuais e ligados às elites, seja empresarial ou agrária – os tradicionais “doutores” e “coroneis”), e a limitação do número de candidaturas provavelmente teria um impacto muito maior naqueles que não pertencem às classes que sempre ocuparam e monopolizaram a política. Contudo, como já foi abordado também no decorrer do texto, o inchaço das candidaturas pode representar também esse revés na ilógica matemática eleitoral. O que fica então de recomendação sobre a postura mais próxima da ideal, é de que o eleitor se informe sobre os programas políticos defendidos pelos partidos e coligações. Além disso, sobre as próprias coligações é fundamental fazer o esforço de ler as letrinhas miúdas e saber todos os partidos que fazem parte da coalizão. Essa postura não elimina a possibilidade de que o cálculo do Quociente pregue uma peça no eleitor, mas com certeza minimiza as chances de que os oportunistas sigam ocupando os espaços políticos e excluindo desses uma representatividade mais próxima da real. Além disso, vamos combinar, ler os programas e saber o que toda a coligação ou partido defende com certeza garantirá um voto muito mais convicto. Inclusive ser for para votar em branco, o que é válido, legítimo e também deve ser respeitado.
Um olho no padre, outro na missa, pelo viés de Rafael Balbueno