Dia 20 de setembro marca para os gaúchos o dia da eclosão de uma guerra que se estendeu por dez anos, de 1835 até 1845, a Guerra dos Farrapos. Mas que história sabemos sobre esta guerra? Quem foram os vencidos e quem venceu? Quem lutou e como lutou? Era uma guerra de todo o Rio Grande do Sul contra o Brasil? E o gaúcho valente, mito de nosso consciente social, era um verdadeiro cavalariano que percorria os campos a lutar pela independência da província?
O que nos contam e o que foi parar nos romances ou nas crônicas do gauchismo pode não representar o que imaginamos sobre algo tão distante? O que nos ensinaram nas escolas, nos espaços do tradicionalismo e nas páginas de jornal está de acordo com o que dizem as pesquisas mais recentes da historiografia sul rio-grandense? E numa guerra onde grande parte dos homens está nos campos em luta, quem comandava as estâncias e os serviços das cidades? Seriam mulheres? Homens e mulheres em compasso?
Várias perguntas seguem com respostas maleáveis quando o assunto é a Guerra dos Farrapos. Por isso, a revista o Viés foi conversar com três professores de História da Universidade Federal de Santa Maria: José Martinho Rodrigues Remedi, Luis Augusto Farinatti e Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, os quais fizeram um apanhado geral sobre a situação do Rio Grande do sul durante os dez anos de guerra, sua realidade social, sobre as disputas pelo imaginário e pela ideologia da guerra, sobre o cotidiano de uma batalha prolongada e rude, onde quem vencia era o mais violento. O texto é acompanhado por artes de Luíza Bertuol.
NÃO FOI SÓ PELO CHARQUE
Sedimentou-se uma ideia de que a causa da guerra farroupilha vem em função do charque. Muitos aprenderam que a guerra aconteceu porque nosso charque estava desvalorizado ou que não oferece um preço competitivo em relação ao charque platino, o que é verdade por uma série de razões. Os países do Prata já contavam com outros esquemas de produção que barateavam o custo, algumas regiões inclusive já com transporte em trilhos, alguns já com cercamento de propriedades. A produção do charque platino acessava o sal importado pagando apenas uma taxa de importação, entrando pelo porto de Montevidéu ou de Buenos Aires. Mas no Rio Grande do Sul, não. Aqui se acessava o sal pagando pelo menos duas taxas de importação, primeiro ao chegar ao Rio de Janeiro, e depois, para chegar aqui, outra. Até aí tudo bem. Mas o nosso charque estar desvalorizado, preterido em relação ao que vinha do Prata, seria a causa da revolução? Isso não se verifica. Não era uma guerra que envolvia o Rio Grande do Sul como um todo, e justamente o setor dos charqueadores é exatamente o setor menos envolvido. Evidente que temos charqueadores envolvidos, como Domingos José de Almeida e Antônio José Gonçalves Chaves. Mas o grosso dos charqueadores não se envolve e permanece legalista. E se é possível fazer alguma delimitação geográfica do período da guerra, só podemos falar que o litoral teve a tendência a ser legalista. Mas então porque se fala tanto que o charque é o mote principal desta guerra? Porque de alguma maneira, para baratear o custo de produção, precisava-se repassar esse valor então a alguém: aos criadores. “Já que no sal a gente não consegue barganhar, vamos barganhar com quem oferece gado”, pensavam os charqueadores. Como se faz charque? Precisa-se de carne e de sal. O charqueador não é o produtor do gado, ele traz o gado dos criadores, que estariam mais pela metade oeste, sul e sudoeste do estado. São esses estancieiros, pressionados pelo cartel do preço determinado pelos charqueadores, que vão se amotinar num primeiro momento. É uma diferenciação importante: charqueador não é criador.
A guerra teve várias causas. Primeiro é necessário entender que a está inserida no processo de construção de independência do Estado brasileiro. Costuma-se ver o processo de independência do Brasil numa visão tradicional, como se fosse uma ruptura de um dia, que teria sido pacífica em relação às independências de outros Estados da América Latina. Mas tudo é um processo de construção, como o que está acontecendo na Europa no mesmo momento, mesmo processo de construção de Estados constitucionais e representativos, que vai da Revolução Francesa até 1848. No Brasil, não por acaso, há em 1808 a vinda da família real, em 1815 a elevação a Reino Unido a Portugal, ou 1822, quando há o rompimento com os lusitanos, ou 1848, com a Praieira, concomitante a uma série de revoltas em vários lugares do Brasil. Quais eram as questões daquele tempo? “Nós vamos construir mesmo o Brasil?” ou “vamos fazer parte disto ou nós vamos fundar um país autônomo?”. No nordeste do país, por exemplo, existiu a Confederação do Equador, que tinha a ideia de um país autônomo. Há, nesse contexto, discussão sobre federalismo e autonomia regional. Tudo isso estava em jogo no processo longo e conflituoso de independência do Brasil, dentro do qual a guerra farroupilha se insere. É só mais um ponto dentro disso. Entretanto, além dessa visão macro, precisamos ter a visão micropolítica.
Na província existia uma série de grupos, facções: charqueadores, estancieiros, criadores, padres e comerciantes. Entre farroupilhas e imperiais. Então qual é o estopim pra guerra? Qual é o movimento de 20 de setembro? É a retirada de dois comandantes da fronteira, um em Jaguarão, com Bento Gonçalves, e fronteira do Alegrete, com Bento Manuel. Controlar a fronteira era muito importante porque o norte do Uruguai era uma região onde criadores rio-grandenses tinham terras, e passavam o gado de lá para as charqueadas da província. Controlar a fronteira é muito importante e esses caras foram apeados deste poder. Bento Manuel diz que entra no movimento do 20 de setembro para retirar o presidente da província, que era indicado pelo Império, o Antônio Fernandes Braga. A tentativa dessa facção aqui do Rio Grande do Sul era ter alguma influência sobre o novo presidente. Mas vejamos bem: isso cola com o pessoal do Bento Manuel, que quer retirar o presidente da província, tirar o comandante de armas, que era o Sebastião Barreto, com o Partido Farroupilha, o partido liberal exaltado ao qual estão ligados Bento Gonçalves, João Manoel de Lima e Silva, Vicente da Fontoura e José de Almeida Corte Real. Era uma questão de micropolítica. Por que aderir à guerra farrapa? Alguns aderiram por ideologia, outros pela questão econômica, outros porque os inimigos aderiram o outro lado. Essa lógica faccional faz muito mais sentido para essas pessoas. Há uma interessantíssima frase do General Neto, no filme “Neto perde a sua alma”, quando ele está dançando com uma uruguaia e ela o chama por “general”. Ele responde: “eu sou só um estancieiro”, e ela repete provocando: “general”. E ele responde: “eu sou só um estancieiro, mas eu tenho muitos amigos e meus amigos têm muitos amigos”. Ele cerca de 600 homens nas mãos. Então, como recusar um chamado de um homem desses? É melhor atender. Essa micropolítica explica um pouco a adesão. Nem eram gaúchos com sentimento de identidade nacional de todos eles contra um centro, nem eram apenas gente furibunda com problemas econômicos, nem era exclusivamente pessoal ideologicamente de cunho liberal, ou federalista ou republicano. Existem todos esses níveis. O charque, entretanto, é um dos fatores que no fundo levou a fama.
O ABOLICIONISMO NÃO ERA HEGEMÔNICO ENTRE OS FARRAPOS
Saber que haviam escravos é um problema a menos. Sobre a estrutura de propriedade: havia grandes, pequenos e médios produtores. Havia um pequeno número de grandes estancieiros que corresponde ao estereótipo que a gente tem. Eles tinham a maior parte das terras, a maior parte dos escravos, do gado, eram uma maioria econômica. Mas uma minoria numérica. A maioria não era de despossuídos. Era de pequenos e médios produtores. Havia homens que se assalariavam nas estâncias, mas nas grandes estâncias havia uma conjugação de mão-de-obra livre e de escravidão. Porque ao contrário do que se dizia na década de 70, não havia só um monte de estancieiros e proletários que precisavam viver entre o crime e o assalariamento. Tinham pessoas que faziam contrabando, no início do século, e sempre. Mas também há pequenos produtores e seus filhos que vivem de eventualmente se assalariar nas grandes propriedades. Não há uma massa de proletários prontos a responder aos chamados dos estancieiros. Tem escravos trabalhando a cavalo, com faca na cintura, no costeio do gado. Há uma combinação. Nas pequenas e médias estâncias há inclusive trabalho escravo e mão-de-obra familiar ao mesmo tempo. Um mundo com laivos de campesinato. Algo impensável na historiografia de quinze anos atrás.
Os dois lados tinham escravos. Existe um proselitismo com o fato de os farroupilhas serem abolicionistas. Os escravos eram considerados batalhão de elite. Ao contrário do senso de que a cavalaria seria o batalhão mais importante. Há uma tese de que os escravos, com a promessa de liberdade, teriam aderido muito à luta como soldados. Mas é uma tese, não há documentação que a comprove. Os imperiais usaram escravos e os farroupilhas também. Alguns farroupilhas eram abolicionistas, mas hegemonicamente o movimento não tinha esse caráter. No projeto de constituição farroupilha mantém-se a escravidão. A maioria deles não libertou seus escravos durante a guerra, libertavam um ou dois para ir lutar. Eles libertavam eram os escravos dos legalistas que eles tomavam. Tomavam e traziam para guerra com promessa de liberdade, que não necessariamente era cumprida. Essa promessa de liberdade, durante uma guerra, é preciso ser vista por outra perspectiva: você está armando esses escravos. Como você pode armar escravos e não dizer nada? Pelo menos uma promessa de liberdade era necessário apresentar. O Neto é a figura mais representativa, que levou a fama como abolicionista. Bom, ao fim da guerra, Neto volta para sua estância no Uruguai com 200 negros que seriam livres, porque não havia mais escravidão, oficialmente, naquele país. Havia, mas disfarçada. Esses negros vão para trabalhar pra ele, com medo. É uma questão bem delicada.
Sabe-se que Domingos José de Almeida, ministro da Fazenda na República Rio-Grandense vendeu alguns escravos para financiar o movimento. Outros ele manda de navio para Montevidéu para que não confisquem, mas o navio afunda. Ele também pede em cartas que mandem alguns escravos porque ele está ficando sem capital. Domingos era o caixa da guerra. Ele precisava vender escravos para ter dinheiro. A venda de escravos só compõe uma gama de maneiras encontradas por eles para patrocinar a guerra. Existia o confisco de bens alheios, dos legalistas, por exemplo. O próprio recrutamento e mobilização de recursos, ou seja, homens, cavalos, munição, roupa, é muito descentralizado. Os coronéis e majores têm essa capacidade de articular os seus, mas também precisam descobrir fórmulas de vestir, alimentar toda aquela gente. Do lado imperial ainda existia alguma uniformidade, ainda que andassem tão bem vestidos – havia pelo menos um fornecedor básico de uniformes. Não podemos esquecer que foi uma guerra que durou dez anos. Havia uma economia muito bem organizada. Como a administração era itinerante, muito da documentação se perdeu. O Estado farroupilha usou do sistema de arrecadação de impostos, que antes ia para o governo federal, como maneira de angariar recursos.
NEM SEPARATISTAS NEM GAÚCHOS CONTRA O BRASIL
Não, não era uma guerra do Rio Grande do Sul contra o Brasil. Era uma guerra cujos dois lados, o farroupilha e o imperial, reuniam um corte social vertical, desde a elite até escravos, passando por peões, pequenos lavradores, pequenos comerciantes. Não há tampouco nenhuma localização geográfica majoritária para delinear quem era os farroupilhas exclusivamente. Era uma guerra de parte dos rio-grandenses contra o Império brasileiro, com outra parte destes gaúchos.
O separatismo estava como uma das pautas possíveis, assim como o federalismo, com mais autonomia. Isso estava como pauta de grupos dentro dos farrapos que puxavam mais para este lado. Existiam algumas conjunturas dentro da guerra que favorecem a emergência de movimentos separatistas, outras não. Mas certamente não foi a causa principal da guerra. Uma característica local, pelas fronteiras, é a ligação com os debates que aconteciam nos países do Prata. Ao longo dos dez anos de guerra, são quatro tratados que a República Rio-Grandense faz com líderes vizinhos. Funcionava como uma articulação de apoio, reconhecimento do Estado recém-fundado. Não se pode analisar a história da época, entretanto, como se fosse hoje, com estados brasileiros bem definidos e países platinos. Eram vários projetos em disputa.
Quando Neto decide por proclamar a república, ele dá um susto bem grande em seus colegas. Não era todo mundo separatista.
Em ambos os lados há uma vontade por um Estado. Ainda não se sabe que tipo de Estado, mas o espírito de se constituir um Estado existia. Havia a questão de se unir com o norte, com o Rio de Janeiro, ou com o sul. Não podemos analisar a guerra de costas para os países do Prata. Existe uma grande influência platina nesse movimento todo. Bento Gonçalves e Bento Manuel foram retirados dos cargos de fronteira também porque eles também tinham um contato mais próximo com os platinos. Dentro desse movimento, também existia o debate sobre construir um Estado federalista ou uma confederação. Chegava até aqui a constituição estadunidense, por exemplo. É preciso ver a Guerra Farroupilha sempre em comunhão com o que acontecia nos vizinhos do Prata. Por aqui essa constituição de um Estado Brasileiro, com os conflitos acontecendo por todo o brasil.
FARRAPOS: ENQUANTO ISSO, NOUTRAS PARTES DO BRASIL E DA AMÉRICA DO SUL
Não foi a mais valente, não foi a mais honrosa. Nada. Não é a com mais número de combatentes. Talvez tenha sido a mais extensa e mais constante por ter criado uma identidade política alternativa mais estável, que foi a efêmera República Rio-Grandense, que foi ainda assim muito instável. Se formos comparar, a participação de classes populares é menor. A própria repressão do império aqui foi mais suave. Na Cabanagem houve um massacre da população amotinada, na Balaiada houve um massacre porque as elites pularam para o lado do Império ligeirinho. Aqui, não: a guerra nunca saiu do controle da elite farroupilha. Então, para o Império negociar com a elite era mais fácil do que negociar com os pretos da Baianada, que era uma insurgência que sugeria a rebelião de escravos, pobres querendo modificar algo. Era uma revolução social.
Aqui ficou mais na discussão do poder político e de algumas questões econômicas, sem plano social por trás. Havia uma disputa por autonomia política que vem através do federalismo. É impossível eleger uma grande bandeira da guerra farroupilha. Os farrapos não eram em maioria abolicionistas, o separatismo também não é uma verdade absoluta. A própria ideia de republicanismo é complicada de se analisar. Ao pensar em Revolução Farroupilha, temos que fazer comparação. Quando temos outras realidades em comparação, a gente consegue se livrar do ranço provinciano, se somos mais “machos”, mais valentes. O que fica de memória, por exemplo, era que não era um grupinho qualquer, mas sim um grupo discutindo com o Império, com os outros grupos que estão na região, e inclusive discutindo conceitualmente, se o melhor sistema político é federalismo ou confederação. Aí se consegue perceber coisas mais interessantes da Revolução Farroupilha do que heroísmo tacanho de carga de lança.
Na violência e na barbárie vai vencer quem é mais violento. É isso que queremos recuperar dos farrapos? Talvez o que queiramos recuperar é a disputa de projetos políticos alternativos e as dificuldades disso nesse tempo. O diálogo com o Rio de Janeiro, o diálogo com os países do Prata – com os projetos de países. Ter a visão de que muitos países estavam em projeto, discutindo simultaneamente, se sobrepondo e se estruturando ao atravessar as fronteiras. Não só nós temos nossos mitos fundadores. O Uruguai, por exemplo, tem Artigas. Ele é renegado e depois volta à história já morto. Perceber essa diferença é a coisa mais importante.
A GUERRA COMO MITO FUNDADOR
Anos depois, quando começa o republicanismo no Rio Grande do Sul, Assis Brasil escreve um livro falando sobre a Revolução Farroupilha. Ele, já em 1880, quarenta anos depois, vai querer dizer que os gaúchos sempre foram republicanos: “olha o exemplo da grande revolução”. Pra defender um projeto político republicano, liberal mas não positivista, porque ele era um republicano sui generis. E depois o próprio governo positivista vai defender e se utilizar da ideia de que fomos republicanos antes, de que nossa essência é republicana, porque o mito de origem do rio-grandense e também do gaúcho – porque já na República Velha começa-se a utilizar esse termo – é ser republicano. E aí se hegemoniza a Guerra Farroupilha como se fossem “os gaúchos” ou “os rio-grandenses” que fizeram a Revolução Farroupilha.
Porque por natureza seríamos republicanos, amantes da liberdade e por natureza insubmissos. É uma coisa que só se constrói cinquenta anos depois da guerra ter terminado. E aí calha muito bem com vontade de querermos nos ver como diferentes do Brasil. A gente constrói uma entidade homogênea chamada de “brasileiro” e constrói uma identidade homogênea chamada “gaúcha”. Uma nós pegamos como reflexo do outro. Enquanto o brasileiro é mestiço, malemolente, dengoso, preguiçoso e desonesto, o rio-grandense é todo o contrário: branco, trabalhador, viril, honesto. Brasileiro por concessão. “Até sou brasileiro”, mas muito diferente. Mas por que diferente? Aí a gente vai e busca no mito de origem.
Só pode separar se tiver uma alteridade, “eu sou diferente dos outros”. Ninguém se separa dos iguais. Como ficar diferente? Constrói-se a ideia do gaúcho. Nos primeiros romances – a Divina Pastora, por exemplo, de 1847 (primeiro romance escrito no Rio Grande do Sul) – não fala em gaúcho. Fala em sul rio-grandense, não tem gaúcho. Aos poucos, várias tendências políticas começam a atribuir esse valor. Até porque, como já disse o Jorge Luís Borges, falando dos gaúchos na Argentina: só pode falar do gaúcho depois que ele morreu. Não existe mais nenhum perigo desse gaúcho reaparecer com sua valentia e botar a justiça na mesa, dizer que os pobres não vão mais passar fome, os ricos não vão mais judiar de ninguém. Então tu podes encimá-lo. Esse mito surge quando não há mais gaúcho, quando os campos são cercados, as relações de trabalho – para o bem e para o mal – estão minimamente reguladas, a polícia está ali. Esse gaúcho valente e altaneiro pode ser cantado em prosa e verso porque não vai mais bater na porta e entrar. Essa literatura inclusive vai obscurecendo, para nós historiadores, esse outro gaúcho, o habitante do RS, que tentamos recuperar. É muito mais fácil achar que todos eram iguais. Ele não anda sempre a cavalo, não come só carne, não é hermafrodita – tem mulher também. A gente tem muito trabalho porque há camadas de informação obscurecidas.
É interessante que há romances de 1850 que inclusive levantam o dado de que não é legal falar sobre Revolução Farroupilha. “Essa revolta que aconteceu, precisamos anos para não criar mais inimizades”. Como se tivesse que pacificar. Por que levantar aquela chama? Os romancistas mesmo foram dizendo isso. Por que tivemos a Casa das Sete Mulheres? Porque pode ser qualquer coisa, cometer qualquer pecado temporal, não tem problema. Esse gaúcho, essa criação, começa mais ou menos nesse período, mas pode ser apropriada a qualquer momento, porque é um mito. Vira o mito da criação do Rio Grande do Sul. Não quer dizer que “o gaúcho é um mito, porque não existe”. Mito no sentido de uma narrativa que explica a origem de alguma coisa, que pode ser ressignificada e atualizada a qualquer momento. Porque ela suspende o tempo, voa sobre ele, é anacrônica. Não tem compromisso com realidade histórica, tem compromisso com uma coisa que faça sentido.
O mito do imigrante trabalhador também entra aí. Os mitos não são excludentes e se sobrepõe, também. Eles pegam o que há de mais interessante em cada um. Caxias do Sul, por exemplo, é um lugar repleto de CTGs, é o lugar com mais lugares estabulados no estado, pelos dados da Defensoria Veterinária. E lá ocorre a Festa da Uva, que é a maior representação simbólica da pujança do imigrante italiano. Como se explica isso? Essas coisas que poderiam ser contraditórias, no mito elas não são. Existiu um gaúcho histórico em algum momento. Mas ele também não é único, ele muda com o tempo, o espaço, planta uns pés de abóbora por aí. Não come só carne. Já conseguimos relatos de panelas sendo carregadas com os arreios. O gado daquela época não é o mesmo do que o de hoje. Não tem carne marmorizada. Por que se comia a carne quase crua? Porque era o único jeito que se poderia mastigá-la. Era um gado selvagem, de carne dura. Até a nossa alimentação está padronizada nessa explicação mítica, do carreteiro, da carne. O arroz chega no século XX. Não obscurece só as explicações políticas e de formação de Estado. Obscurece quase tudo. Obscurece para nós pesquisadores. Para as pessoas que estão vivendo esse mito isso dá uma estabilidade. Essa é uma das funções do mito. Vocês só pode fazer essas perguntas porque já há décadas de discussão, pouco a pouco. Começou como uma crítica marxista nos anos oitenta, no caso da história, e vem se aprofundando e se complementando ao longo do tempo. Por exemplo: o churrasco. Churrasco vertical se faz no campo. O horizontal, na cidade. A churrasqueira não existe no campo. A grelha – ou parrilla – não existe no campo. O churrasco ficou horizontal e urbano. O churrasco é uma grande celebração do nosso passado mítico do campo. Tem todo um rito com uma coisa mítica. Há muita gente que critica o aparato do CTG mas faz todo um ritual sobre o churrasco. É só uma decalagem diferente. O problema é ter “verdade”.
Dentro dessa construção do mito – há uma coisa que já está mais batida: a própria palavra “gaúcho”. Há uma ressignificação da palavra. A professora Mariana Flores Thompson Flores trabalha com o criminoso do século 19. “Para mim é muito claro, a palavra representa um sujeito marginal e ser qualificado como tal não é nada meritório. Pelo contrário. A palavra vem do vagabundo, vagamundo, a pessoa que vive ‘ao galdio’, que é uma expressão castelhana, que virou o gaucho, ou o nosso gaúcho. No século 19, vejo claramente. Ser gaúcho não é motivo de orgulho. Há uma ressignificação da palavra nessa ressignificação do mito no período da República”.
No livro “A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação”, do antropólogo Ruben Oliven, tem uma entrevista com o Barbosa Lessa, que participou do movimento que inventa os CTGs. Onde o autor pergunta: de onde vocês tiraram o vestido de prenda? Ele responde que “é o seguinte: a gente ia participar de um festival em outro país, e para participar de um festival de folclore a gente tinha que apresentar roupas típicas, masculina e feminina, e danças típicas. A gente não tinha nada disso. Aí começamos a pesquisar.” A chinela dos bascos, o vestido não sei de onde. Eles montaram assim. Na cara dura. Depois, Paixão Cortes vira um pesquisador, com uma preocupação mais antropológica. A fazer anotação coreográfica. Mas em um primeiro momento é muita invenção, muito achismo. Eles falavam sobre o que o gaúcho estava vestindo em 1945 ou 1950, quando eles fundam o CTG. Já se viu descrições do tirador (espécie de avental de couro macio que os laçadores usam pendente à cintura, do lado esquerdo, para proteger a bombacha e a perna na lida campeira) dizendo que eles deveriam ser curtos. Outras que ele deveria ser longo. Outros que deve ser um pelego. Ou seja: ele muda ao longo do tempo e da região. Mas qual o problema? Ele é um monólito. Congela tudo em uma situação única. O CTG é um clube social com suas regras de vestimenta, de etiqueta. Ele só não deve ter uma relação com o Estado ou com a explicação total do Estado.
A MULHER E A GUERRA FARRAPA
Não se faz guerra sem mulher. Ainda mais uma guerra que durou dez anos. Os líderes atrasavam movimentos militares porque as mulheres não tinham chegado. Elas são corpo de enfermaria, são cozinheiras e também combatem, em momentos de necessidade. E principalmente a pé. Mas é principalmente no apoio às tropas que elas atuam. É como uma peça fundamental na máquina militar dos farroupilhas e dos imperiais. O que hoje seria “intendência”. E fazem isso de ambos os lados.
Nenhum dos lados se locomove sem as vivandeiras, que são as mulheres que vivem ao redor dos exércitos. Esse fato diverge largamente do livro e da série “A Casa das Sete Mulheres”, escrito pela gaúcha Letícia Wierzchowski e adaptada pela Rede Globo, na qual elas ficam fazendo tranças umas nas outras, olhando pela janela e esperando os homens voltarem. As esposas de combatentes que ficavam administravam as fazendas e os negócios efetivamente.
Entre outras referências, há o diário do Vicente da Fontoura (rio-pardense, um dos principais líderes não militares dos farrapos). São cartas que ele escreve para a mulher. É explícito: a mulher do Fontoura negociava gado e negociava escravo. A mulher de Domingos José de Almeida, que foi o ministro da Fazenda na efêmera República Riograndense, também. Manejava o gado dentro da estância e nas cartas trocadas discordava do marido em alguns pontos relacionados aos negócios.
Obviamente, há configurações familiares diferentes. Não há uma resposta única para nada. Na família de Bento Manoel, por exemplo, a mulher – Maria Amâncio – tem pouca participação, porque ele tem filhos em idade militar e deixa cuidando das estâncias. O irmão escreve debochando desse filho: “tu tem uma patente de tenente. Mas segue cuidando desse fundo de campo, então vou te chamar de tenente capataz”. Debocha do irmão, que era advogado.
Mas com a filha do Bento Manoel, a Dorotéia, era diferente: o marido às vezes era chamado pelo sobrenome dela. Ela batiza 34 crianças em Alegrete. Ele batiza seis. Ele vai pra Caçapava e ela fica em Alegrete. Numa das três vezes que o Bento Manoel troca de lado eles fazem uma festa na cidade. Dorotéia borda a bandeira do Império. Vinte anos depois, quando queriam emancipar São Jerônimo de Triunfo, perguntando-se como fariam, diziam: “falem com a dona Dorotéia, filha de Bento Manuel”. Porque ela tem relações na presidência da província. Uma mulher que age no espaço político. A mãe dela, não. A única coisa que a mãe recebe são “dois bugrinhos” do norte do Rio Grande do Sul que Bento traz com ele e dá de presente a ela. Provavelmente matou seus pais. Ela cria. A indiazinha foi chamada de “a moura velha do Jarau”, em Quaraí.
A HONRA FOI MOMENTO DE EXCEÇÃO
Não existe guerra limpa. Os historiadores se deparam com descrições de passar mal, como se passa mal com os relatos da Palestina de hoje em dia. Aqui em Santa Maria, por exemplo, conta-se a história do Rincão da Mortandade. O Coronel Valença, farrapo, primeiro presidente da Câmara de Vereadores, teria feito uma chacina daqueles que não quiseram dar os filhos para o exército farroupilha. A guerra no formato “greco-prussiana”, isto é, de pelotões, ocorre só em um momento. Depois se arrebentam a correr os que sobreviveram. Líderes mortos em emboscadas são comuns. O João Manuel de Lima e Silva, general farroupilha, vai num batizado em São Luís Gonzaga. Na volta, matam ele fora da guerra. Fora do teatro de operações.
Essas insurgências todas muitas vezes não tinham recursos econômicos para fardar e armar todos como um exército perfeito. Porque havia muitas relações ligadas ao montante das tropas: passam pelas redes, pelos compadrios, pelo tipo de trabalho, pela sazonalidade. Eram homens chamados à guerra por estancieiros. Culturalmente, muitos destes homens fazem parte de um grupo para o qual a guerra é o momento de tentar recuperar coisas perdidas, de confiscar, em partes.
Não é nem na construção de um poder político, é uma questão concreta. Por exemplo, o Aparício Saraiva estava arrinconado com um batalhão esperando o momento propício para atacar. Mas havia a pressão da peonada esperando, querendo atacar de uma vez. “Mas não, não foi lançado um manifesto em Montevidéu” diz ele, mas os soldados diziam que “tá vindo a geada, tá frio”. Eles estão lá só com o chiripá, descalços, mal armados. Eles querem atacar porque o pessoal do outro lado tá um pouquinho melhor que eles. O outro lado tem poncho, bota e cavalos melhores, então eles querem saquear. Há luta e saque ao mesmo tempo. Não é uma guerra bonita. Todos os lados da fronteira idealizaram a guerra como heróica. Existem momentos heroicos, de gauchada. Tem momentos em que um código de honra se estabelece, como no famoso duelo do Bento com Onofre. É um código de honra que pertencia à elite militar, e eles fazem valer aquele código. Por mais que o duelo seja proibido no Brasil. Mas o resto, era o terror. Emboscada, degola, ataques. Era um salve-se quem puder.
Sete traços farrapos, pelo viés de Bibiano Girard e Gregório Lopes Mascarenhas.