Lá pelo fim de agosto e início de setembro, despertam, no Rio Grande do Sul, duas palavras-chave em campanhas publicitárias, artigos de jornal, publicações em redes sociais: cultura e tradição. ‘Defender as tradições’. ‘Ensinar a cultura gaúcha às novas gerações’. ‘Cultivar nossas tradições’. Não se costuma pensar muito além de um suposto amor triunfante pelos pagos e, assim, o par cultura-tradição é usado desordenadamente e acaba sendo tomado por evidente, como se seu significado fosse uma questão lógica inescapável, e enclausurado num grupo muito bem definido de práticas, símbolos e origens que comporiam a essência do Rio Grande do Sul e do seu povo.
Esta semana, em que se celebra o Dia do Gaúcho, no dia 20 de setembro, requer, a meu ver, uma análise não necessariamente de quais deveriam ser os reais ou os mais corretos significados das palavras tradição e cultura em especial mas um esforço em se entenderem justamente as implicações dos seus usos. Ou seja, não adianta só discutir o que significa tradição e cultura no Rio Grande do Sul sem se prestar também atenção às consequências desses significados na sociedade. Já de pronto, no entanto, é preciso deixar bem claro que a crítica não é intrinsecamente depreciativa nem generalista de quaisquer expressões, práticas ou valores que se associem à imagem do gaúcho. A crítica vem como um esforço de justamente não se perderem de vista, numa onda de euforia e fanatismo, as condições em que se fala das tradições gaúchas ou da cultura gaúcha. A partir daí, claramente, tampouco se podem deixar imaculadas concepções e práticas que, de uma forma ou outra, não sejam simplesmente expressões culturais à medida que se tornam estopins para controlar e regular indivíduos e grupos — como parece ser bem o caso do poder da cultura gaúcha institucionalizada sobre, por exemplo, o papel das mulheres, a posição dos negros na história do Rio Grande do Sul e a completa abjeção de sexualidades minoritárias.
A cultura não é desculpa para questões que são mais do que folclore — cultura também é política.
O primeiro ponto que vem à tona quando se analisam as menções, feitas com mais força nesta semana, à cultura e à tradição gaúchas é a questão do que eu sugiro ser uma imobilidade cultural. De fato, uso a palavra imobilidade, mas caberia aqui também uma certa teimosia característica dessa imobilidade, que entende o Rio Grande do Sul como uma entidade cuja essência seja tão suigenérica, tão pura a ponto de se dever protegê-la de tudo aquilo que parecer ou quiçá se referir a um espaço exterior à essência gaúcha, aonde é portanto lançada a totalidade das experiências e expressões humanas sob a tachação dicotômica do não-gaúcho. Em outras palavras, a imobilidade cultural ou resiste em considerar laços do Rio Grande do Sul com outros grupos ou, por outro lado, seleciona os grupos com cujos laços o estado deva se associar ativamente. Na prática, por exemplo, isso significa, entre outras coisas, uma exagerada conexão da cultura gaúcha com o Cristianismo e um descaso com religiões de matriz africana que compõem o espectro da gauchidade tanto quanto.
A imobilidade, no entanto, não se refere somente ao passado mas também a possibilidades futuras de desenvolvimento e complexificação dos entendimentos do par cultura-tradição gaúchas. Paira uma noção de que, para se ser gaúcho deveras, há uma gama limitada de valores, práticas e símbolos a serem adotados e seguidos. Aqui, confunde-se a cultura com a tradição à medida que tradição procura a recorrência e a preservação de modos do ser enquanto que cultura, no entanto, é virtualmente infinita: ela muda, mistura-se, ressignifica-se. Num lugar como o Rio Grande do Sul, onde ainda são relativamente recentes os cruzamentos culturais, deveria ser bem clara a noção de que cultura não pode ser entendida como a petrificação de condutas e mentalidades de um período que não só era do século 19 por si só, como é a imagem do gaúcho-farroupilha, mas que também surgiu num contexto de guerra, em que a razão e o pensamento crítico já de pronto dão lugar a demagogias e a reforços de supostas incompatibilidades culturais entre os dois lados do campo de batalha.
O segundo ponto é consequente dessa manufatura de incompatibilidade cultural. A partir do momento em que cultura e tradição são vistas como sinônimos não só entre si mas também sinônimas a uma essência quasi-natural, falar em ‘cultura daqui’, ‘nossa cultura’ ou, então, regular as pessoas dizendo ‘mas a nossa cultura é assim e não daquele jeito’ na verdade serve para desviar a atenção dos aspectos políticos, sociais, econômicos, enfim, dos aspectos que não são forçosamente só uma questão de cultura. Ou seja, quando se fala de uma suposta ‘cultura gaúcha’ durante a Semana Farroupilha, reforçam-se concepções de cultura como algo estanque, imutável, negando-se, portanto, a legitimidade de outros valores, outras práticas com base numa essência que deve ser preservada quando, de fato, o que existe nessa negação não é uma indissociável característica do Rio Grande do Sul, uma predisposição natural a se pensar e a se agir de tal forma e não de outra, mas uma tessitura de relações de poder que se sustentam sobre a manutenção dessa cultura gaúcha ‘verdadeira’.
Um exemplo bem simples: a imagem do Rio Grande do Sul de lavouras e pastagens se refere ao que foi estabelecido com a invasão de europeus [que, lembremos, não são só os colonos italianos e alemães] e a subjugação dos povos indígenas. Se tomarmos essa imagem como a nossa característica cultural e, portanto, natural(izada) do estado, podemos ignorar os atuais clamores dos indígenas gaúchos como se esses não fossem de fato cabíveis — a noção é, afinal, de que as culturas se fundem harmoniosamente na construção do gaúcho, dando sequência ao mito da democracia racial brasileira. O que isso mascara, dessa forma, é a estrutura de latifúndios e poder econômico e político que provêm do poder sobre a terra. Logo, nem sempre aquilo a que nos referimos só como cultura é, de fato, só cultura. A cultura não é desculpa para se apoiar concentração de terras sem perceber o êxodo rural; não é desculpa para se defender a família sem se considerarem as desigualdades de gênero; não é desculpa para se falar em união e igualdade esquivando-se do racismo. A cultura não é desculpa para questões que são mais do que folclore — cultura também é política.
Isto é, nessa mais-uma Semana Farroupilha de exaltação das coisas ‘culturais e tradicionais’ do Rio Grande do Sul, vale também se tomar uma distância do furor emocional que domina essa época e prestar-se atenção a como, por exemplo, nós já não temos sido os mesmos da época dos farrapos desde justamente aquela época porque a cultura muda, pois mudam as pessoas, os espaços, as plataformas de interação. Esta semana não precisa ser de escárnio dos sentimentos exaltados pelo Rio Grande do Sul, mas aquilo de que certamente não precisamos, especialmente face a eventos recentes, é de reforço às ideias de que existem formas historicamente apropriadas de se ser gaúcho.
RIO GRANDE DO SUL: CULTURA NÃO É DESCULPA, pelo viés de Gianlluca Simi
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