A mais nova ideia do ilusionista britânico Harry Kipper soava irreal para qualquer um que a ouvisse: vagar de bicicleta pela Europa traçando linhas imaginárias entre cidades e formando a palavra ART. Surto de demência ou mais uma peça com algum conceito artístico por trás? O caso é que ela deu errado. Kipper desapareceu em Trieste, cidade italiana, quando estava prestes a completar a letra T. Os amigos do artista comunicaram seu sumiço para o programa Quem o Viu?, um reality show exibido no canal RAI 3, da Itália, que busca encontrar pessoas desaparecidas – de adolescentes que fugiram de casa a pacientes que escaparam de hospícios.
O caso de Kipper rapidamente interessa a equipe de Quem o Viu?, que viaja até Bolonha para entrevistar um dos amigos do ilusionista. Seguindo diversas pistas e buscando simular os passos do britânico, os jornalistas vão até Udine, cidade da região nordeste da Itália que Kipper passou durante sua viagem. Lá, conversam com mais alguns de seus conhecidos, como os artistas Piermario Cioni e Federico Guglielmi. A última e derradeira parada é em Londres,onde Stewart Home, outro amigo de Kipper, mostra a casa do ilusionista, filmada pelo reality.
Com farto material para exibir e prestes a ir ao ar, a edição de Quem o Viu? é vetada de última hora, quando se descobre que tudo – desde Kipper até seus amigos – não passava de uma farsa. O fiasco, no entanto, não pôde ser evitado: um release sobre o programa fora enviado vinte dias antes à imprensa, que aguardava assistir o desaparecimento do inexistente Harry Kipper. A fraude foi confirmada quando os ‘amigos’ do artista soltaram um novo comunicado, dizendo se tratar de uma piada, uma peça que serviria para escancarar o quão fácil era ludibriar os jornais com notícias falsas.
Harry Kipper, Piermario Cioni, Federico Guglielmi e Stewart Home: todos eles também podem ser chamados de Luther Blissett (L. B.). Esse nome, criado na primeira metade da década de 1990, uniu diversos estudantes, ativistas e hackers. A ideia era criar uma “identidade compartilhada” – qualquer pessoa poderia ser Blissett, bastando declarar-se como tal. E foi justamente sob a alcunha desse nome que grupos de diversos ‘Blissetts’ eram formados, tendo início na Itália, em 1994, e depois se disseminando, como o caso de Stewart Home, um L. B. da Inglaterra.
O porquê da escolha do nome é desconhecido. Existe, de fato, um Luther Blissett em carne e osso – trata-se de um jogador de origem jamaicana que atuou em clubes de futebol da Inglaterra. A figura de L. B., no entanto, pouco tem a ver com a sua versão real, já que Blissett era uma situação aberta: a pessoa que adotasse sua identidade poderia utilizá-la para qualquer coisa. Daí a variedade de ações que surgiram assinadas com seu nome – teatro de rua, rádio pirata, manifestos teóricos. Desse último ponto, por exemplo, surgiu o texto Guy Debord está realmente morto, escrito logo após o suicídio do teórico francês (chamado pelo Blissett que escreveu a crítica de Guy, The Bore – ou seja, o chato). Um dos pontos fundamentais na criação de L. B. fica explícita nesse escrito: o intuito de utilizar a construção do “nome múltiplo” em um sentido positivo, como um mito de luta, contrariando o suposto pessimismo nas teorias de Debord, para quem tudo seria uma manifestação do espetáculo.
É por isso que a filosofia em torno de Luther buscava agir dentro da mídia e utilizá-la a seu favor. Assim, surgem os trotes que o tornaram famoso – histórias falsas, implantadas por diversos Blissetts, que foram noticiados pelos jornais da época como verdadeiras. Trata-se de ações de guerrilha midiática: um modelo de resistência que age dentro dos meios de comunicação, utilizando as suas próprias armas para que eles se tornem vítimas de si mesmos. Ou seja, criar fatos, atrair jornalistas e confrontar o poder midiático dos profissionais da informação. O que vira notícia? Quem pode falar o quê nos jornais? Quando a queda da mídia é causada por ela própria, valores como credibilidade e verdade são postos em xeque. Tudo isso é permeado pela ética do it yourself, a do faça você mesmo, num convite que sugere ao cidadão protagonizar o “furo de amanhã” dos jornais.
Dos centros sociais às manchetes italianas
A ideia de criar o nome múltiplo Luther Blissett nasce nos Centros Sociais italianos, em 1994. Os CSOA – Centri Sociali Ocuppati e Autogestiti -, como eram conhecidos, são o resultado de uma série de revoltas operárias que a Itália vive durante a década de 1970 e que culmina no “movimento de 77”, o ano em que estudantes passam a ocupar universidades e locais abandonados. É o embrião dos Centros Sociais: naquele ano, existiam 55 em Milão. A principal reivindicação dos que ocupavam estes espaços refletia-se nas altas tarifas impostas pelo governo, seja no transporte, energia elétrica ou mesmo lazer, como entradas para cinema e apresentações musicais.
No entanto, entre 1979 e 1980, milhares de militantes são presos – dentre eles, o cultuado filósofo Antonio Negri, exilado na França por dezessete anos. O movimento conhecido como autonomista definha a passos largos, em parte devido à retomada da empresa Fiat ao poder e à demissão de diversos operários politicamente ativos. Com o enfraquecimento das mobilizações sociais, a década de 1980 resulta em certa apatia. Os Centros Sociais, reduto do movimento autonomista, voltam à cena no início dos anos 1990, especialmente devido à corrupção que assola a Itália. Em 1992, por exemplo, a operação Mãos Limpas (Mani Pulite) investiga mais de 6.000 pessoas, entre empresários, parlamentares, administradores locais e primeiros-ministros suspeitos de pagamento de propina para contratos públicos. Destes, 2.993 recebem mandados de prisão e 10 cometem suicídio.
Em um período de extrema corrupção, dívidas públicas, ascensão da máfia italiana e fim de diversos partidos, a geração mais jovem do país – desempregada devido à estagnação da economia – vive também a descrença na política tradicional. É nesse contexto que os Centros Sociais aparecem como símbolos de resistência à crescente exclusão social oriunda do modelo de desenvolvimento neoliberal. Jovens e ativistas de esquerda voltam a ocupar propriedades públicas abandonadas (os squats, que podiam ser hospitais, escolas, fábricas) para discutir questões globais, além de preparar iniciativas políticas relacionadas a seus bairros e promover eventos culturais – como shows undergrounds e exibição de filmes.
Nesses espaços também se desenvolve uma infraestrutura independente de comunicação graças à profusão da Internet, celulares e câmeras digitais na década de 1990. O barateamento desses aparelhos estimula a produção amadora, permitindo que diversos integrantes fundadores do nome Luther Blissett tornem-se “profissionais da mídia”, ainda que nem todos fossem estudantes de comunicação, mas de artes, sociologia, literatura e filosofia. Espalhados em três cidades – Roma, Viterbo e Bolonha -, os primeiros Blissetts trocavam mensagens em listas de discussões através das BBS (Bulletin Board Systems), um software que servia como forma embrionária da Internet, atuando tal qual um provedor. A partir dessa organização primária, em rede, as ações envolvendo Blissett poderiam finalmente ser articuladas.
Essa revolução não tem rosto
Na primavera de 1996, nas páginas do jornal de Bolonha Il Resto del Carlino, é publicada, na íntegra, a carta enviada à redação por uma prostituta soropositiva que confessa usar, já há muito tempo, camisinhas furadas para se vingar da infecção pelo HIV, contraído durante a prática profissional. O periódico dedica duas páginas inteiras ao acontecimento, mostrando os pareceres dos “especialistas” (o sociólogo, o psicólogo, o criminólogo, o teólogo), instigando, sem vergonha alguma, o pânico moral.
Depois de alguns dias, chega às redações de todos os jornais nacionais uma segunda carta. A prostituta em questão é fruto da fantasia de alguém que assina como Luther Blissett. No entanto, a chave do engano já estava contida na primeira carta, rubricada com as iniciais L. B.
O ataque contra Il Resto del Carlino é motivado devido aos discursos de ódio que o jornal incita contra prostitutas, gays e transexuais. Sem o menor compromisso de checar a realidade dos dados contidos na carta, Carlino a publica e ainda busca analisá-la através de pessoas legitimamente autorizadas a entrar no universo midiático – afinal, quão séria pode ser a análise de um psicólogo buscando a motivação de uma prostituta inexistente que fura a camisinha de seus clientes?
As listas de discussões geradas a partir da cultura difusa e em rede das BBS eram um prelúdio da chamada plataforma 2.0 da Web, ou seja, aquela baseada no conhecimento compartilhado, como as comunidades wiki. Ainda, a organização dessas redes de relacionamento – as networks, hoje amadurecidas em forma de Facebook e Twitter – é uma herança de experimentações artísticas nos anos 1960.
Tatiana Bazzichelli, pesquisadora italiana que estuda arte e mídias sociais, entende que a principal característica das networks não é a incorporação da tecnologia, mas a capacidade de criar a partir delas plataformas de compartilhamento entre usuários. É por isso que a primeira network tem como principal ferramenta o correio: trata-se da mail art, que nasce ao longo da década de 60 e constitui uma rede de artistas da Europa, Japão e América do Norte que trocam fotografias, desenhos e textos. Mais do que isso, é nesse meio que surge Monty Cantsin, uma criação de Al Ackerman e David Zack, dois mail artists que tinham o objetivo de cunhar um nome que funcionasse como um popstar aberto.
Trata-se de uma experiência de nome múltiplo, tal qual Luther Blissett. A intenção era que músicos desconhecidos se apresentassem como Monty Cantsin até torná-lo famoso (dado o número de Cantsins que surgiriam). E, de fato, o nome se popularizou, disseminando-se principalmente em Montreal, no Canadá, e em Baltimore, nos Estados Unidos. Além disso, fez surgir durante a década de 80 outros nomes múltiplos, como Karen Eliot, Mario Rossi e Bob Jones. Segundo o pesquisador Stewart Home – que também foi um Luther Blissett -, estes projetos tinham por objetivo “subverter o star system e questionar as noções burguesas de identidade”, atacando a ideia do gênio da arte incompreendido e enclausurado em si mesmo.
Cantsin é simbolicamente creditado como o fundador do Neoísmo, um movimento que brinca com as vanguardas artísticas juntando o prefixo neo com o sufixo ismo. Stewart Home foi um dos seus principais entusiastas, escrevendo manifestos que celebravam os dois elementos principais da estética neoísta: pseudônimos coletivos e plágio. Se, por um lado, o objetivo de criar nomes múltiplos perpassa a necessidade de recriar identidades, o uso do plágio busca ressignificar e remanipular ideias.
Tendo em vista essa oposição à rigidez daquilo que já está cristalizado, não foi à toa que uma das ações de Blissett se chamou Ônibus Neoísta. Tudo começou com a Rádio Blissett, um veículo comunitário de Bolonha em que todos os redatores se chamam Luther Blissett. A rádio transmitia ao vivo o “patrulhamento” de diversos L. B. pelas ruas da cidade, que ligavam para o estúdio através de cabines telefônicas e obedeciam as direções propostas pelos ouvintes. A experiência deu certo e foi levada até Roma, contando também com o uso simultâneo de celulares. No dia 17 de junho de 1995, dezenas de Blissetts, entre artistas e performers, entraram em um ônibus à noite carregando confetes, bebidas e sons portáteis. Uma verdadeira festa rave móvel foi armada e transmitida ao vivo na Rádio Blissett pelas pessoas que portavam celular e realizavam a cobertura. O acontecimento dura até que a polícia bloqueia a passagem e obriga os participantes a descerem do ônibus. Devido às discussões, dezoito pessoas são detidas e quatro acabam sendo processadas por desacato à autoridade, sendo absolvidas apenas em 2002.
Fake you
Entre 1996 e 1997, a cidade de Viterbo é atravessada por uma onda de pânico moral. Polícia e cronistas locais, previamente alertados por ligações anônimas e pichações misteriosas, encontram, nos campos da região, restos de missas negras com várias bugigangas satânicas: galos pretos, velas, pentagramas e quinquilharias afins. Nesse período, chegam aos jornais locais inúmeras cartas de cidadãos que assinalam outros rastros da presença satanista nos arredores de Viterbo, e até levantam a suspeita de que os adoradores do demônio têm relações com a prefeitura local.
Aos jornalistas é comunicado o nascimento de um Comitê para a Salvaguarda da Moral: os caçadores de satanistas, cujos comunicados encontram espaços nas páginas da imprensa local. O pânico cresce, o clima esquenta, o bispo de Viterbo é forçado a gastar mais de uma palavra em seus sermões a respeito da difusão do satanismo na cidade. Em seguida, chega uma fita de vídeo às redações dos telejornais. São imagens feitas às escondidas em um ritual satânico, ainda que pouco se possa enxergar: tela negra, farfalhante, e uma luzinha distante entrecortada pelos gritos de uma moça. O vídeo é acompanhado por uma carta de um membro do Comitê para a Salvaguarda da Moral, que revela ter seguido os satanistas até o local do encontro e não ter se aproximado mais por medo de ser descoberto.
Tanto o telejornal público como a TV privada exibem o vídeo, acompanhado pelos comentários sensacionalistas de seus apresentadores. Uma semana depois, no entanto, a versão completa do vídeo é enviado à imprensa. Os elementos são os mesmos: escuridão e gritos. Mas a câmera se aproxima cada vez mais até chegar às figuras encapuzadas em volta de uma fogueira. De repente, elas tiram os capuzes e começam a dançar uma tarantela, dança típica italiana, e mostram um pôster de Luther Blissett. Das cartas aos jornais ao Comitê para a Salvaguarda da Moral, as pichações e as missas negras: tudo orquestrado pelos Blissetts.
Finalmente, em 1999 parte do grupo que originou Luther Blissett nos Centros Sociais comete um “suicídio simbólico” do nome múltiplo para criar a Wu Ming Foundation – um coletivo de escritores que lançaram romances de cunho histórico e lutam contra os direitos autorais. Mas Blissett não deixa de existir – àquela altura, o nome já se disseminara para muito além dos seus fundadores. Sua última aparição no Brasil, por exemplo, é recente.
Em outubro de 2013, uma nova construtora imobiliária chamada Compagnia Luther Blissett chega à Porto Alegre com o projeto de implantar Rédemption Parc, complexo de três torres residenciais. O local: no meio do Parque Redenção. Panfletos são distribuídos e prometem um conjunto que representa “a vanguarda do luxo contemporâneo”.
“As redes sociais emplacaram mais uma brincadeira nesta segunda-feira”, escreve o jornal Zero Hora, revelando a farsa do projeto que supostamente destruiria um dos símbolos da capital gaúcha. Rédemption Parc foi uma ação artística do arquiteto Alexandre de Nadal para chamar a atenção do público e debater a especulação mobiliária de Porto Alegre. O projeto chegou a irritar o prefeito José Fortunati, que considerou a história um ataque político ao seu governo.
É possível que o aspecto mais espantoso nas histórias bizarras de Luther Blissett seja a sua longevidade. Criar uma parábola envolvendo missas negras com caçadores de satanistas e conseguir persuadir a mídia a noticiar isso nos dias de hoje pode parecer um trabalho difícil. É claro que, no contexto da década de 90, deve-se levar em conta os meios possíveis para se checar um fato, certamente inferiores aos de hoje – a Internet, por exemplo, recém se popularizava. No entanto, quem adivinharia que, em pleno ano de Copa, um jornalista poderia confundir o ex-técnico Luiz Felipe Scolari com seu sósia? Se por um lado as possibilidades para apurar uma notícia cresceram nitidamente, por outro, redes sociais também podem funcionar como um belo palco para a proliferação dos hoax – nome dado às mentiras que circulam por e-mail ou sites de relacionamento. O Twitter, por exemplo, tornou-se uma corrida desenfreada por furos de notícia e, não raro, assassina previamente suas vítimas, como aconteceu com o dramaturgo Ariano Suassuna. Passados vinte anos de sua criação, as histórias mirabolantes de Blissett ainda parecem ter muito a ensinar ao jornalismo.
*As histórias de Blissett que iniciam cada subtítulo foram retiradas do livro Guerrilha Psíquica, assinado pelo próprio L. B. e lançado em 2001 pela editora Conrad.
Ninguém sabe onde está Luther Blissett, pelo viés de Dairan Paul.
Muito bom e completo o seu texto sobre Luther, também já escrevi sobre ele em http://zonacurva.com.br/luther-blissett-de-olho-na-grande-midia-brasuca/ Abs,