Ensaio sobre o "voto gay"

“Agora não é hora de se abster. As eleições vão acontecer, e o voto no Brasil é obrigatório. No dia 5 de outubro, a gente tem uma oportunidade real de mostrar força. Agora, mais do que nunca, a nossa força é necessária.” (Manifesto “Acorda, Alice”, Vote LGBT 2014)

O título deste texto é mais estopim do que conclusão. É a forma que encontro, atualmente, de compartilhar alguns apontamentos pobremente reunidos num ensaio. É também um desdobramento do ensaio anterior, publicado aqui na revista o Viés em oito de agosto. Nele falei do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e da sua configuração e desafios atuais. Aqui vou para um terreno bem mais movediço, o da conexão entre voto e esta “comunidade imaginada” que é a população LGBT.

Já escolheu? (Foto: Ana Paula Hirama/CC BY-SA 4.0.)

Por “voto gay”, então, quero me referir ao voto de pessoas LGBT. E aqui é necessária uma premissa com a qual quem me lê precisa lidar para que o texto produza a reflexão necessária. Ei-la: a distinção entre movimento LGBT e população LGBT. No trecho do manifesto que colei acima, quem tem a “oportunidade real de mostrar força”? O movimento LGBT ou a população LGBT? Ou ambos? Ou nenhum?

Bem, tive oportunidade de discutir distinção entre movimento e população com mais calma num trabalho acadêmico [1], e aqui proponho uma ordem de grandeza: população LGBT > movimento LGBT. Isso significa dizer que os indivíduos que compõem o movimento LGBT (genericamente: ativistas) são uma fração daquelas pessoas que “são” lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (falo da noção de “ser” logo abaixo). Assim, o movimento LGBT é composto, majoritariamente, por indivíduos da população LGBT, mas esta possui um tamanho muito maior cuja proporção em relação ao movimento desconhecemos. Serão ativistas do movimento apenas 5% dos que são LGBT na sociedade brasileira? Menos? Mais? Incógnita.

A complexidade de se constituir amostras de pesquisa sobre pessoas LGBT em Ciência Política já foi registrada por alguns trabalhos nos Estados Unidos [2], e um elemento central desta complexidade é a distinção entre “ser” e “identificar-se”. Entre pessoas que se autoidentificam como LGB (sem o T) e pessoas que, por exemplo, mantiveram relações sexuais com alguém do mesmo sexo/gênero, os percentuais sempre variam [3]. E isso cria imensos problemas para uma pesquisa sobre comportamento eleitoral (ou sobre o voto).

Quando se analisa o voto de mulheres, constrói-se uma amostragem baseada na demografia de mulheres de uma dada sociedade (incluso o número de crianças meninas; para o estudo eleitoral, este percentual de meninas é excluído, e então se tem o universo de mulheres votantes). Já deve estar claro que para pesquisar o voto de pessoas LGBT, é preciso lidar com vários problemas, dentre os quais:

  1. a ausência de pesquisas sólidas sobre percentual da população que “é” (ou se identifica como) LGBT;
  2. o dilema quanto a construir a pesquisa sobre pessoas que se autoidentificam como LGBT ou sobre aquelas que mantiveram práticas sexuais com alguém do mesmo sexo. Cada escolha interfere nos números, quando existem, com os quais se vai trabalhar.

Nesta quinta (12 de setembro), participamos Bárbara Zen (cientista econômica e mestranda) e eu de uma conversa sobre “eleições e LGBT” no programa Ruído, da revista o Viés na rádio web Supernova. Lá mencionei alguns tópicos que aparecem neste ensaio.

O primeiro deles, e que ilustra a complexidade deste tema, tem a ver com a premissa que expus mais acima. Num estudo compilatório feito Gary J. Gates (2011) para o The Williams Institute, da Escola de Direito da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), aparecem os seguintes dados sobre população LGBT estimada nos Estados Unidos. Tome-se a população total daquele país como sendo de 313 milhões de habitantes:

  • Estimados 3.5% dos adultos nos Estados Unidos identificam-se como lésbicas, gays ou bissexuais, e estimados 0.3% dos adultos como pessoas transgêneras [travestis e transexuais no Brasil];
  • Isso implica dizer que há aproximadamente 9 milhões de LGBT nos Estados Unidos [uma quantidade quase similar à população de Pernambuco ou do Ceará];
  • Estimativas sobre aqueles que relatam algum comportamento sexual com pessoa do mesmo sexo e alguma atração sexual por pessoa do mesmo sexo ao longo da vida são substancialmente mais altas do que as estimativas daqueles que se identificam como LGBT. Estimados 19 milhões de estadunidenses (8.2%) relatam que se envolveram em comportamentos sexuais com pessoas do mesmo sexo, e cerca de 25.6 milhões (11%) reconhecem pelo menos alguma atração sexual por pessoas do mesmo sexo.

Com estes números em mãos (de nove pesquisas sobre o tema, feitas com adultos; cinco nos EUA, e as demais no Canadá, Reino Unido, Austrália e Noruega), é possível compreender o tamanho do problema na discussão sobre comportamento eleitoral de pessoas LGBT.

Transpondo estes números de Gates (2011) para o Brasil, apenas para efeito argumentativo, teríamos um cenário em que: 6.9 milhões de pessoas identificariam-se como LGB e aproximadamente 600 mil identificariam-se como travestis e transexuais (e/ou outras identidades trans). Ou seja, 7.5 milhões de pessoas (3,8%) num universo de 198 milhões de brasileiras e brasileiros.

Esses números, apenas ilustrativos (porque baseados em dados de outro país), não ajudam a pensar sobre o “voto gay” propriamente dito. Se excluirmos a fração de população infantil e jovem que não vota (vou estimar em 30% adotando os dados do IGBE para população de 0-19 anos), teríamos um conjunto de estimados 5.3 milhões de pessoas que se identificam como LGBT no Brasil. Como o dado é fictício, não há muito que fazer com ele. Até que as pesquisas nacionais e censitárias comecem a incluir tópicos sobre orientação sexual e identidade de gênero, não será possível debruçar-se sobre a questão de maneira efetiva. E aí recoloco a pergunta sobre o trecho do manifesto na epígrafe do ensaio: de quem é essa força que poderíamos demonstrar durante as eleições?

Partindo disso, voltamos ao princípio do texto: afinal, como votam as pessoas LGBT? Não se sabe. O que me arrisco a registrar aqui é o seguinte: a ideia de que a orientação sexual e a identidade de gênero minoritárias compartilhadas com outras pessoas sejam fatores relevantes (com algum grau de influência na decisão de voto) na eleição é apenas uma hipótese. Ela carece de pesquisa que a teste.

Se considerarmos as setoriais LGBT dos partidos políticos no Brasil, fica claro um primeiro aspecto: há profundas divergências quanto à identificação política (neste caso, uma eventual filiação partidária) de pessoas LGBT. Isso reforça a possibilidade da hipótese anterior não se demonstrar real. Ou seja, talvez a orientação sexual e identidade gênero minoritárias não sejam fatores relevantes (não influenciem) na decisão de voto. Tudo isso, é claro, tendo como pano de fundo a problemática que apresentei da não continuidade entre “ter desejos ou práticas homo/bissexuais” e “identificar-se como gay/lésbica/bissexual”. Um exemplo da complexidade: talvez um homem adulto que não se identifica como gay, mas que mantém relações sexuais com outros homens, leve em consideração a posição de candidatos(as) sobre direitos para pessoas LGBT na sua decisão de voto. Aí cabe retomar a questão da formulação das pesquisas neste âmbito: é o comportamento eleitoral de pessoas que se autoidentificam como LGBT que está em estudo, ou o comportamento de outros indivíduos (heterossexuais, por exemplo) em relação a certos tópicos associados à diversidade sexual?

O que isso ilustra, em síntese, é que não é possível produzir uma análise sobre comportamento eleitoral de população LGBT que não adote alguma dimensão identitária quanto à orientação sexual e à identidade de gênero (não discuti este tópico aqui, mas há pessoas transexuais que, após procedimentos cirúrgicos e o reconhecimento legal de suas identidades, passam a se apresentar apenas como mulheres e homens, sem qualificar esse pertencimento ao gênero feminino ou masculino como associado à transexualidade/transgeneridade). Portanto, tais pesquisas vão refletir um universo (e amostra) específico de pessoas que adotam, na linguagem, identidades sexuais e de gênero relativamente estáveis na cultura brasileira hoje: ou seja, a homossexualidade, a bissexualidade e a transgeneridade em suas diversas manifestações.

Além desses aspectos que apresentei, há outro mais amplo, e que serve de background para minha posição e conclusão maiores neste ensaio: é provável que um ou mais fatores, dos mais prosaicos aos mais complexos, influenciem nas decisões de voto (comportamento eleitoral) de qualquer eleitor. Aí os estudos de comportamento político-eleitoral precisam ser específicos diante de marcadores sociais específicos e contextuais (um eleitor judeu na Síria não é o mesmo que um eleitor judeu no Brasil; ou nos EUA), além de fatores ambientais produzidos ou potencializados pela imprensa (um escândalo político, por exemplo).

Com isso, quero dizer o seguinte: a idade, a situação socioeconômica, as visões de mundo (ideológicas, pragmáticas), a raça/etnia, o local de residência, o pertencimento a certos grupos de interesse (ONGs, sindicatos, partidos políticos), a escolaridade, o acompanhamento da cobertura da mídia, a religião, a estrutura familiar (etc.) também são fatores que concorrem, potencialmente, para influenciar o voto.

A orientação sexual e a identidade de gênero são dois fatores. E ambos e todos os demais precisam ser objeto de consideração em pesquisas desta ordem. Um exemplo: os cientistas políticos brasileiros já produziram um número expressivo de pesquisas sobre o eleitorado dito evangélico, mas não tenho condições de discutir aqui esses resultados, mesmo porque são muitos e divergentes em alguns casos. Entretanto, já há um conjunto de pesquisas que procuram analisar a variável “religião” neste complexo cenário eleitoral da democracia brasileira.

O “voto gay” ainda seguirá uma incógnita por muitos anos. Um bom começo é desenvolver pesquisas com variáveis como “gays universitários de centros urbanos” para avaliar a decisão de voto destes jovens eleitores; e/ou de “mulheres lésbicas em cidades médias”; e assim por diante, coordenando variáveis que possam expressar algum refinamento teórico e serem exequíveis numa pesquisa.

Campanha #VoteLGBT. (Foto: captura de tela/reprodução)

O projeto #VoteLGBT, neste cenário, é certamente importante pela intencionalidade política que engendra. Ainda que não entendamos, pela ausência de pesquisas descritivas e analíticas, como votam hoje as pessoas que se identificam como LGBT (para além do que já se sabe sobre como votam “os brasileiros” em geral, inclusos os LGBT obviamente), a construção de uma cultura política participativa é essencial. Colocar no centro do debate a importância de se observar candidaturas que estão comprometidas com o avanço das reivindicações por direitos para as pessoas LGBT é qualificar tal cultura política.

Ao invés de recordar a ideia de “analfabeto político” que Bertolt Brecht registrou em célebre poema, encerro o ensaio com a frase político-pajubá [4] do manifesto Acorda, Alice apresentado no começo do texto – afinal, essa frase provoca o mesmo sentido do poema de Brecht, mas é muito mais rápida e fechativa: “fazer a egípcia não resolve nada”.  

ENSAIO SOBRE O “VOTO GAY”, pelo viés do colunista Luiz Henrique Coletto

Referências

[1] Luiz Henrique Coletto (2013). O movimento LGBT e a mídia: tensões, interações e estratégias no Brasil e nos Estados Unidos.

[2] Como em: Meyer e Wilson (2009); Pruitt (2002); Gates (2011) e Lewis, Rogers e Sherrill (2011).

  • Ilan H. Meyer and Patrick A. Wilson (2009). Sampling Lesbian, Gay, and Bisexual Populations. Journal of Counseling Psychology, Vol. 56, No. 1, 23–31.
  • Matthew V. Pruitt (2002). Size Matters, Journal of Homosexuality, 42:3, 21-29.
  • Gary J. Gates (2011). How many people are lesbian, gay, bisexual, and transgender? The Williams Institute (UCLA).
  • Gregory B. Lewis, Marc A. Rogers and Kenneth Sherrill (2011). Lesbian, Gay, and Bisexual Voters in the 2000 U.S. Presidential Election. Politics & Policy, Volume 39, No. 5: 655-677.

[3] Cf.: Gates, 2011.
[4] Cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pajub%C3%A1
 

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