O suéter azul formal que o Brasil vestia naquela manhã refletia no espelho do corredor de seu apartamento, ressaltava o quão avantajada era barriguinha e quanto tempo não tomava coragem de encarar-se de frente. Resolveu ceder, e por um instante percebeu que sua imagem e seu formato lembravam o de um vaso de flores. Um enorme vaso azul formal, estático, objeto da ação do tempo e dos acontecimentos; um objeto avariado, sem requerer muita distância para perceber suas imperfeições e defeitos óbvios. Era difícil para o Brasil ser um jornalista no Brasil.
Mais do que uma questão estética, era uma questão de ritmo. Havia dias em que os lindos e floridos campos da faculdade bailavam na sua mente, embaralhavam seu dia a dia, a semana inteira, enquanto dirigia, no retorno e no cruzamento, na rotatória, nos elevadores, até o escritório, em um piscar de olhos, em um bom dia a todos, atravessando a sala, com a bunda mole cravada na cadeira de sua velha mesa e a caneca suja; quem de fato se tornara? Olhou longe no escritório e centimetrou cada pedaço da sala com um olhar incisivo. Estava vivo, sabia que era uma piada, que os mais novos o detestavam e que a vida para ele havia se fechado de oportunidades. Talvez por isso se lembrasse dos tempos da faculdade onde poderia sonhar e caminhar nos campos lindos e floridos. Mas tinha que ficar atento a sua volta, à rapina, para vencer e pagar as contas. Tinha medo de ficar sozinho escrevendo um blog de nenhum leitor. Na verdade, ninguém o conhecia e poucos um dia chegaram a se interessar brevemente por sua figura. Uma questão de clique. Mas estava ali, com a bunda cravada, mas, porra, que diabo era aquilo? Aquele vídeo lhe saltara aos olhos e ele deu play. Parou no meio e abriu outra aba no navegador e iniciava uma nova postagem no facebook. E continuou a assistir.
As imagens era do linchamento da doméstica Cláudia Maria de Jesus, 33 anos, no Guarujá. Baseado em um boato de uma página do facebook, populares acreditavam que uma bruxa capturava crianças para rituais de magia negra, promovendo um falso retrato falado que lastimavelmente se assemelharam naquela tarde com as feições de Cláudia. Resolveram o caso com pedras e pauladas, ali mesmo, para aquela suposta sequestradora de crianças. Essa era a lei do justos. A mesmíssima lei de quem acorrenta meninos negros em postes, expostos, nus, à humilhação e ao vexame público. A mesma lei de quem defende os justiceiros na TV. Dois dias depois duas meninas estariam órfãs de mãe e o Brasil que estava ali parado, assistindo e escrevendo idiotices na internet não sabia naquele exato instante, mas mesmo assim emitia mais uma opinião generalizante e preconceituosa, não respeitando o tempo certo dos fenômenos, tentando sair na frente de uma concorrência egoísta e cega com idiotas virtuais muitas vezes anônimos. Estava atônito. Esquecera que meses atrás repreenderia quem defendia o bandidinho, que queria a redução da maioridade penal, a pena capital, e que achara um absurdo as represálias à jornalista Shaherezade e que ele, como cidadão de bem, não adotaria um bandido! Agora estava ali, criticando os outros, o outro, nesse caso, com palavras fortes sobre a ignorância, condenando a pobreza de espírito e a mesquinharia do ser humano e generalizando, tornando este incidente como auto explicativo para o caos social e coletivo. Era tempos de guerra para o Brasil, ferrenhos tempos de guerra para ele, onde o facebook era o único elo com o social, o que normalmente é um espaço de convívio se tornara um campo de batalha virtual, transcendendo a realidade. E foram clicadas e mais clicadas para mais uma aberração óbvia, e ele continuava ali, existindo amorfo e indiferente ao que realmente acontecia fora de seu trabalho e apartamento. Um objeto acomodado e inútil, atrapalhando a passagem e a abertura dos móveis.
Parece que o tempo para gente monótona e indiferente, que chega de fato a ser maldosa de tão mesquinha, passa rápido. Para os chatos o tempo voa, mas para o Brasil não era só isso, é que ele era acima de tudo incapaz, oculto em em si mesmo e deslocado, fora do eixo, um ovo de avestruz dentro de um galinheiro. O mês de maio ele passou se despedindo do então adágio “imagina na Copa”. Estádios velhos e emporcalhados, hospitais caindo aos pedaços, escolas demolidas, tudo imaginar-se-ia na Copa, era um superlativo esse bordão, um viral que se incorporou ao seu estilo blasé de criticar o mundo e o governo. Alguma coisa até poderia conter uma coerência lógica, como imagens de estádios faraônicos e monumentais e as que encontrou quando escreveu “pobreza” no google, mas o discurso era o de um tucano de bico rachado, como o de velhote de fraldas geriátricas.
O tempo se alastrou por sua rotina. Rapidamente era doze de junho. Dia dos namorados. Pra quem se importava, pelo menos, era dia dos namorados. O Brasil coincidentemente vestia o mesmo suéter formal que lhe deixavam com uma aparência de vaso de flores, sendo sua sala desta forma disposta por um televisor grande recém-comprado de uma promoção do Ponto Frio aparafusada no centro da sala, uma caixa de papelão e plásticos, uma TV velha perto do corredor, da porta de entrada e da entrada para a cozinha, um móvel com alguns livros, que lembrava um hack desses de sala mesmo só que coberto de comilanças do final de semana e daquela quinta-feira e finalmente um vaso de flores azul formal disposto em cima do sofa. Era final do dia e o Brasil já estava de pantufas para assistir a estreia da Copa do Mundo no Brasil. Depois uma oposição ferrenha a realização dos jogos no Brasil desde as jornadas de junho, era hora de baixar a guarda, relaxar, curtir e gozar a Copa do Mundo. Oêêêêêêêa. De fato, aquela felicidade não era hipocrisia do Brasil, o tempo passou magicamente repetidas vezes nos milhões de sofás e tvs improvisadas, o que foi o maior espetáculo do futebol em décadas, a Copa do Mundo do Brasil. O Brasil não estava lá, no Maracanã, mas pra todo mundo em algum momento era como se fosse. Estava pra baixo, na verdade, vendo a estreia do Brasil, depois de ter saído do trabalho infeliz de assessor de imprensa, a sabatina da vida mediana lhe pesava sobre o corpo quando Marcelo fez o gol contra, numa piscadela de atenção que fizera. Que coisa. Além de tudo era a zica. O condomínio da América Latina estremeceu, crianças pularam, cachorros latiram, janelas se abriram aos coices para berrar alguma brasilidade pela janela durante três vezes naquele mesmo dia. O Brasil assistiu indefectível, não gritou gol, levantou e foi mijar no primeiro gol, no segundo buscou água, no terceiro amendoim.
A Copa do Mundo não serviu para lhe lembrar velhas frustrações, como o fato de não ser um protagonista dentro de sua área de atuação profissional, mas afirmar o quanto falhara com a vida. Ele estava de fato acabado. Reconhecia-se como tal. A vida dele era o próprio zero a zero entre Brasil e México durante a Copa do Mundo. Um jogo, uma cilada de gato e rato com foi Brasil contra Camarões. No máximo uma conquista mais na sorte do que no talento como Brasil e Chile. De fato, a vida do Brasil era uma disputa de penalidades diárias, reais e virtuais, em casa, no escritório e na internet, com cada post uma intenção inconsciente de reconciliação consigo e com o mundo dentro de um processo doentio e deprimente. Sentiu-se pequeno, biruta e gagá quando encontrou hordas de gringos festejando um verdadeiro carnaval fora de época no bairro onde morava. Australianos, holandeses, argentinos beriricando pelos cantos, comendo nos restaurantes, lotando as filas da padaria. Ele nunca pensara que viveria para ouvir aquele eco de vozes em outros idiomas. Se sentia tão desconfortável a ponto de sair correndo da fila do mercado, e caminhar alguns quarteirões para comer em um lugar longe de torcedores. A Copa do Mundo era um merda, infestara seu cotidiano com pessoas de um monte de lugares. No escritório eram frequentes os relatos das moças e rapazes que se conhecia na vida lá fora. Ele estava cada vez mais pra dentro, abotoado no mundo como um botão na manga longa de uma camisa. Um caso raro de sofrimento e agonia no século XXI, obsoleto, tristonho e perseverando na intenção de chamar atenção. Oêa.
O Brasil de maio/junho, pelo viés de Calvin Furtado.
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