A agenda LGBT cada dia encontra mais espaço nos debates sobre direitos humanos e liberdades individuais, no entanto ainda tem gente que se surpreende com a importância que a pauta assume em períodos eleitorais. “Só se fala na agenda gay nessa eleição. Será que o Brasil não tem nada mais importante pra discutir, não!?”, dizem alguns. Bem, enquanto o Brasil continuar sendo responsável por 44% dos assassinatos homotransfóbicos do mundo – uma morte motivada por homofobia a cada 28 horas – nunca se é demais discutir a situação de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans*.
E foi nessa pauta que Marina Silva deu seu primeiro passo em falso em sua ascensão meteórica. Cedeu a uma ridícula ameaça em quatro tuítes de uma das vozes mais reacionárias do país, Silas Malafaia, e mudou seu plano de governo, retirando questões caras ao movimento LGBT, como a Lei João Nery, sobre o direito à identidade de gênero; a PLC 122, que criminaliza a homofobia e como o casamento civil igualitário.
Em entrevistas dadas após a mudança no plano de governo, Marina tem dito que apóia a união civil de casais homossexuais, mas não o casamento, pois a Constituição definiria que essa instituição seria exclusiva para relacionamentos entre homens e mulheres. Errou feio! Errou rude! Para começar, quando se fala em direitos a conjugabilidade, não se fala em união civil e, sim, em união estável. A união estável é considerada um passo abaixo ao casamento civil, pois, embora disponha sobre os direitos patrimoniais entre os cônjuges, não engloba os direitos afetivos (adotar o nome do companheiro, mudar o estado civil para “casado” e o direito à adoção), e é reconhecida aos casais homoafetivos desde que foi julgada e aprovada unanimemente no Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011.
Dois anos depois, em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça publica a Resolução número 2626, que impede que cartórios de todo o Brasil se neguem a converter uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo em casamentos civis, garantindo assim a igualdade de direitos de conjugabilidade para a população LGBT.
Marina Silva, no entanto, segue repetindo que apóia a união civil (sic) entre pessoas do mesmo sexo, como se isso fosse um avanço. Com o perdão da comparação tosca, mas Marina defendendo a união civil homossexual é como alguém defendendo a Lei do Ventre Livre após a assinatura da Lei Áurea. Não vale nem como demonstração de simpatia.
Após o recuo de Marina em seu plano de governo, o coordenador do PSB para políticas LGBT, Luciano Freitas, abandonou a campanha de Marina, que também perdeu apoios importantes, como o do escritor Milton Hatoum. Por outro lado, angariou a simpatia de conservadores, como o do deputado federal pelo PSC, Marco Feliciano, e do próprio Silas Malafaia, que já declarou seu voto e apoio para o segundo turno, quando o candidato Everaldo, do PSC, estiver fora do pleito.
E teve gente que acreditou – e se encantou – quando o plano de governo de Marina foi lançado. Esqueceram que Marina foi uma das primeiras políticas de fora da Frente Parlamentar Evangélica a sair em defesa de Marco Feliciano, dizendo que ele estava sofrendo perseguições apenas por ser evangélico. Enquanto isso, Feliciano barbarizava na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. barrando projetos pró-minorias e fazendo com que outros, considerados recuos pelos movimentos sociais, avançassem, tais como o Projeto de Cura Gay, que permitiria que profissionais da psicologia propusessem terapias de reversão da sexualidade.
Esqueceram também da ambiguidade – sua marca registrada em todos os assuntos, parece – com que Marina sempre responde quando perguntada sobre o ensino da teoria criacionista nas escolas. No programa Roda Vida, ao ser perguntada sobre o tema, ela respondeu: “Eu não sou criacionista. Isso foi um criacionismo que criaram para mim. Acredito que Deus criou todas as coisas, inclusive as contribuições trazidas por Darwin”. Gente, preciso de ajuda para entender aqui.
Se o plano de governo de Marina tivesse sido originalmente publicado tal qual está hoje – conservador e retrógrado – o barulho não teria sido tão grande de fundamentalistas religiosos comemorando sua influência sobre os presidenciáveis (durma-se com esse barulho). Porém, a trapalhada do PSB serviu para mostrar que, de “Nova Política”, Marina só tem o lema (nem tão novo ou original assim se lembrarmos que esse também era o discurso de Collor) e que, entre a polarização direita/esquerda que ela tanto critica, ela tem um lado muito bem definido.
Marina criou o caos, mas eis que ressurge Dilma Rousseff para nos salvar. Em entrevista realizada um dia após a mudança do plano de governo do PSB, a presidenta disse: “O que eu estou dizendo é que se deve criminalizar a homofobia. A homofobia não é algo [com] que a gente possa conviver”. Desde então, Dilma já repetiu o discurso mais algumas vezes e sua página oficial no Facebook o replicou. Ela parece realmente oferecer um contraponto à política de Marina Silva…
Mas espere um minutinho…
Não foi Dilma quem orientou o Senado a anexar o PLC 122 à reforma do novo Código Penal, adiando o projeto por sabe-se lá quantos anos? Sim, foi! Tal manobra – que agradou à Bancada Evangélica e frustrou os militantes LGBTs – protegeu Dilma de lidar com os dividendos políticos do projeto, que poderiam fazer com que ela perdesse votos de conservadores nessa eleição de 2014. Apensando o PLC 122 a votação do Código Penal, Dilma poderia fazer exatamente o que faz agora: lidar com o assunto conforme sopra o vento. Ela traz agora a Criminalização da Homofobia como se fosse uma bandeira histórica sua, apenas para lucrar sobre a gafe política (e falha moral) de Marina Silva.
Porém, sua orientação de enterrar o PLC 122 não foi a primeira traição de Dilma ao movimento LGBT, do qual recebera grande apoio nas eleições de 2010. Dilma já flertara com os mesmos fundamentalistas com quem Marina flerta agora ao acabar com o Kit Escola Sem Homofobia, que pretendia distribuir materiais educativos para professores e jovens do Ensino Médio, facilitando o debate em sala de aula de temas ligados à diversidade sexual. Dilma, no entanto, vetou o material em troca de que parlamentares da Bancada Evangélica não chamassem o ex-ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, para depor sobre sua evolução patrimonial em uma CPI. Sobre o “Kit Gay” – como ficou erroneamente conhecido – Dilma disse: “Não aceito propaganda (sic) de opção (sic) sexual”. E os fundamentalistas piram!
E não parou por aí. Em 2012, Dilma e seu ministro da Saúde, Alexandre Padilha, vetaram uma propaganda para TV voltada à prevenção da AIDS entre o público gay durante o carnaval. Não à toa, naquele ano ambos ganharam o Troféu Pau-de-Sebo, do Grupo Gay da Bahia, que “premia” de forma irreverente os inimigos do movimento LGBT brasileiro.
Por fim, já que citamos uma pérola de Marina, vale citar aqui a última da Dilma, replicada orgulhosamente como material de campanha em sua própria página de Facebook: “O estado brasileiro é um estado laico, mas, citando o salmo de Davi, queria dizer que feliz é a nação cujo senhor é Deus”. Já pensou que legal seria viver em um país em que sua chefe de estado não coloca um “mas” após um princípio constitucional?
Avaliando cuidadosamente as trajetórias das duas principais candidatas à presidência, podemos dizer que cada uma tem lidado de seu jeito com as pautas LGBTs apenas para terem ganhos eleitoreiros: Marina Silva renegando-as em troca de apoio conservador e Dilma dizendo-se favorável a elas apenas para contrapor à Marina visto que seus quatro anos de governo demonstram uma total falta de interesse e sensibilidade com essa parcela da população.
Vamos ser sinceros? A discussão dos direitos LGBTs só será feita de verdade durante o primeiro turno, enquanto ainda estiverem na disputa candidatos nanicos que realmente são orgânicos aos movimentos sociais – alguns deles que nem espaço nos debates televisivos têm.
E em relação ao segundo turno? Bem… Teremos que avaliar segundo outros critérios, porque, se depender apenas da pauta LGBT, será como escolhermos se preferimos apanhar com uma soqueira ou um taco de basebol. Triste, mas verdade.
P.S.: Embora a situação como está seja desfavorável, como é bom poder ignorar neste texto a existência do PSDB e seu candidato, Aécio Neves, que teve inclusive que chamar uma coletiva de imprensa apenas para lembrar a todos que ainda estava concorrendo.
ELEIÇÕES: MARINA, DILMA E OS GAYS, pelo viés de Felipe Severo
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