Há ratos por todas as partes. Ratos de trinta, cinquenta, doze anos. Alguns fumam crack sob os canais invisíveis da cidade, outros são levados para a jaula por porcos famintos em carros iluminados por sirenes. Na esquina, um gambá se segura na porta do bar enquanto um macaco bebe. Aqui a lei é a do cão, e rato que sai da linha acaba preso, com as mãos nas grades a pedir migalhas. Os ratos vivem nas sarjetas, e não vivem, mas sobrevivem. Aparecem pelos bueiros, tendo a cidade como sua casa. Enquanto isso, uma perua bebe champagne do outro lado da urbe, e sua empregada, a égua corcunda, espera na fila do supermercado para ser atendida, depois de oito horas de trabalho. Os ratos sabem a lei da rua, espiam os porcos no bar do garça, e sem querer convivem com o gambá da noite nos Bombeiros.
Quem conhece a lei da rua, convive com ela e com as personagens que surgem de canos sujos ou de propagandas de candidato na televisão. Douglas se sente assim. Nem tudo o que pinta vive na carne, mas convive de perto com quase todos os seus personagens. “Um porco grunhe e pede votos na frente de um cromaqui verde, aquele tecido que estendem atrás das pessoas quando gravam propagandas para televisão”. Com nanquim, esboça hienas repugnantemente gargalhantes, vestidas com colete à prova de balas. “A hiena só ataca em bando, ou se a presa é menor do que ela. Existe comparativo melhor ao que o cara passa na rua, quando está sozinho e os policiais zombam da tua cara, da cara da tua namorada? Riem porque estão em grupo e em maioria. É a ironia de quem deveria apenas proteger”.
Douglas percebeu que a truculência da polícia, que muita gente conhece porque simplesmente está andando na rua, era uma coisa que mexia com seu viés social e artístico. Assim, vários fatores contribuíram para que os bichos tivessem peso em seu trabalho, explica. Em uma imagem pintada com tinta guache sobre papel pardo, um rato de rosto escondido no escuro se prepara para torturar um porco gordo. “É aquela sensação que todo mundo sente um pouco, de reverter a situação, de ver os grandes nas mãos dos pequenos”. Estudante de Artes Visuais na Universidade Federal de Santa Maria desde 2011, Douglas pinta, desenha, imprime e modela ratos e outros animais em pinturas, desenhos, gravuras e esculturas.
“Se tu para e pensa, essa noção de pintar situações do cotidiano com rostos de animais é uma demonstração de como nós mesmos, seres humanos, convivemos. Meu pai é torcedor do Internacional e sempre convivi com essa graça do macaco. Eu queria pintar um macaco então, e pintei”. De blusa vermelha, um macaco de semblante desinteressado observa o ateliê de escultura, no prédio de Artes e Letras da UFSM, onde Douglas compõe seu trabalho artístico, fortemente marcado por uma identidade conceitual.
“O porco, todo mundo chama assim o policial. A perua, as peruas visitando o Bar do Garça. Eu olhava para aquela cena, de duas peruas faceiras por tirarem foto com o Garça, no bar dele, enquanto eu esperava ser atendido. O ser humano tem essa imagem animal, né? Quando estudava essa relação do homem com a própria natureza na volta, vi uma imagem do Bosch, de mais de 500 anos, onde um padre com cabeça de porco lê um livro escuro”. Ali Douglas percebeu que havia uma vertente da qual se sentia parte e precisava estudar. Para ele, a cabeça do padre representava a corrupção da igreja. “As tentações de Santo Antão”, a obra a qual cita, convive no imaginário do artista junto a um livro que ganhou de uma amiga, porque ela teria lembrado da arte dele. “É o ‘ A Revolução dos Bichos’, sabe?”.
A partir daí, Douglas se focou no que gostava de fazer. Percebeu que uma arte crítica e bastante interpretativa chamava muito sua atenção. Era o que fazia quando parava por duas horas para iniciar uma nova arte. “Os animais com semblante de gente cabiam em todos os cenários, porque era algo que me instigava mesmo. Fiz um painel grande onde os seres dentro de um ônibus lotado têm cara de cavalo. Foi a partir de uma foto. Mas eu sentia aquele semblante das pessoas, cabeça baixa, engarrafada no trânsito, os braços estendidos para se segurar, o calor”. Em outro painel de dimensões muralistas, Douglas pintou cabeças de éguas em corpos humanos numa fila como a do supermercado. “Todos estão amarrados, em fila. Um olha a hora no relógio. Pode ser a fila do mercado, depois de um dia de trabalho, só para comprar o pão”
“A revolução dos bichos”, o livro do inglês George Orwell citado por Douglas, é uma narrativa satírica onde porcos lideram uma revolução em uma fazenda para fundar uma sociedade nova e mais igual. No livro, um dos porcos líderes, seduzido pelo poder, atraiçoa a utopia de uma sociedade melhor e estabelece uma ditadura corrupta. Aclamado como um dos melhores romances do século XX, o livro ironiza a União Soviética comunista e a política stalinista através dos olhos de Orwell, membro do Partido Trabalhista Independente. “Eu trabalhava num laboratório. Decidi fazer vestibular. Desde criança, o que eu gostava mesmo era de desenhar. O primeiro dia de aula foi também o último dia de férias do trabalho. Quando cheguei lá, disse: ‘estou indo. Vou fazer Artes Visuais, com aula de manhã e de tarde. Me demito’. Na verdade, eu tinha decidido que não queria mais ter patrão”, explica.
O ateliê virou seu ambiente de trabalho e os custos com o curso e o material para seus projetos tenta obter através de apoios da universidade. Na tarde da quarta-feira, dia 27, Douglas corria entre o Centro de Artes e Letras e a Reitoria preenchendo documento, carregando papel timbrado, recolhendo histórico escolar para demonstrar no pedido, assinatura daqui, dados dali. “Agora eu preciso de tinta acrílica e de rolinhos. Fazer pinturas maiores requer rolinho, o pincel às vezes dificulta”.
Uma das esculturas sobre as mesas de seu ateliê chama atenção. Um busto de rato em tamanho avantajado, com braços e feições humanas, tem os braços cruzados na altura dos olhos. “Essa história é diferente. A escultura é um tipo de arte que antigamente subiu o pedestal. Ficava na altura do peito de quem via, diz a História da Arte. Daí eu pensei: ‘e por que não fazer a escultura ir para o esgoto?’. Conheço tanto rato que vive se escondendo, mas que ao mesmo tempo vive numa boa, com essa cara de sossego. Porque tanto homens quanto ratos sobrevivem assim, nos cantos, no jeitinho”.
Douglas adicionou ao nome de sua página numa rede social uma marca de pertencimento ao bairro onde sempre viveu, o Tancredo Neves, uma das regiões mais densamente populosas da cidade e que esbanja particularidades, como sua vida local quase independente do resto da cidade. “Quando perguntam de que cidade o cara veio, a gente responde: da T. Neves”. Depois disso, Douglas virou Tenevis [clique aqui para acessar a página]. “Lá onde morei desde criança, a gente conhecia alguns amigos pelo apelido de rato, porque cada um se escondia da sua maneira, uns eram presos, ou sumiam pelos cantos da cidade pra dar um jeito na vida, ou por qualquer outra coisa. Por isso o rato, esse bichinho que se esconde por aí”. Com o bicho no bueiro, chamando a atenção de um senhor que passava, o estudante segue relatando a relação da fisionomia e da vida dos animais e das pessoas. Segundo ele, sobre sua arte incômoda e questionadora, “parece que todo mundo entende um pouco”. E talvez seja verdade. Porque você seria um animal se não compreendesse como funciona todo esse galinheiro chamado vida.
Há ratos por toda parte, pelo viés de Bibiano Girard.