[uma breve recordação da história das mulheres]
Falar sobre a relação das mulheres com a literatura é uma necessidade que se coloca diante as relações que há na sociedade e qual a atuação da mulher nelas. E pensar na mulher na sociedade atual exige retomar um pouco da história para entender o que é ser mulher no patriarcado. Para isso, vou começar falando do sistema e, posteriormente, falarei brevemente das condições da mulher em três tempos: Renascimento, décadas de 1930 e 1940 e século XXI.
O sistema capitalista se utiliza das opressões, nesse caso, da opressão à mulher, para se consolidar. Isto é, a maneira como a opressão é feita e nos espaços em que é feita (casa e trabalho, por exemplo) reflete diretamente nas relações de poder e na economia. No entanto, assim como todos os tipos de exploração e opressão no sistema capitalista, as relações de poder foram sofrendo mudanças para se adaptarem às mudanças do capitalismo, antes conhecido como monarquia.
No Renascimento, as mulheres ficavam responsáveis pelo trabalho braçal enquanto os homens dedicavam-se à política e à filosofia, somente. Com o desenvolvimento tecnológico, a mão-de-obra passou a ser exigida de homens e mulheres em grande quantidade para sustento das monarquias. Essa relação de exploração se dá, sobretudo, nas classes baixas. Além de ficarem com as tarefas menos qualificadas e mais submissas da produção fabril, as mulheres recebiam metade do salário dos homens.
Segundo Branca Moreira Alves e Jacqueline Pintaguy, no livro O que é feminismo, “nos anos 30 e 40 valoriza-se, acima de tudo, a participação da mulher na esfera do trabalho, no momento em que se torna necessário liberar a mão-de-obra masculina para as frentes de batalha”, mais precisamente nos países industrializados e envolvidos nos conflitos, EUA e Inglaterra. E com o fim da guerra as mulheres voltam ao seu posto de “dona-de-casa, esposa e mãe”.
No século XIX, os movimentos socialistas viam a diferenciação de classes mais a critérios econômicos. As mudanças no capitalismo exigiram da esquerda a adaptação da sua crítica, incluindo debates antes considerados secundários. O capitalismo oprime não só pela exploração da mão-de-obra que gera desigualdade o mantendo fincado como quem não quer sair. Ele se consolida com o racismo, a homofobia e o machismo, temas raramente discutidos no auge do debate socialista no século XIX.
Observa-se, portanto, que houve mudanças na atuação da mulher na sociedade ao longo das transições políticas. Do feudalismo, para a monarquia e à contemporaneidade, o papel da mulher sofreu alterações. No entanto, elas se deram no intuito de manter o patriarcado, em prol do homem. Apesar disso, as mudanças culturais da atuação da mulher prova que a mulher não nasce com uma condição natural ou biológica de ser dona-de-casa, esposa e mãe, mas que ela deve ter o direito de ser o que quiser e não o que um sistema queira que ela seja.
Durante esse período entre Renascimento e o século XXI, as mulheres obtiveram direitos como o voto e melhores salários, no entanto, isso não é suficiente. A mulher ainda tenta conquistar o seu espaço, na política, na economia ou na literatura. Lugar de mulher é onde ela quiser.
[o que a literatura tem a ver com isso?]
O Prêmio Nobel da Literatura, criado em 1901, premia há 113 anos, dos quais 13 mulheres foram prestigiadas ao longo desse tempo. O Prêmio Miguel de Cervantes de 1976, existente há 38 anos, premiou 4 mulheres. O Prêmio Camões de 1989, premiou 5 mulheres durante seus 25 anos. Em 2014, foi a primeira vez que duas mulheres ganharam os principais prêmios do Jabuti, o Livro do Ano de Não Ficção e o Livro do Ano de Ficção, existente há 55 anos.
Bem como visto a partir dos fatores citados acima, em todos esses prêmios as mulheres receberam ou tardiamente ou em quantidades relativamente menores do que os homens. Obra do acaso? Segundo a escritora Jane Tutikian em entrevista à revista o Viés, vencedora de 16 prêmios literários, inclusive o Jabuti na categoria Infanto-juvenil, “se tomarmos a história da literatura na cultura ocidental, vamos ver que toda ela foi construída sobre um cânone de registro masculino, o que fez do homem o paradigma do humano em todos os sistemas de representação simbólica”.
A dificuldade que os padrões morais impunham às mulheres àquela época as distanciou da literatura. As que escreviam, assinavam com pseudônimo masculino, pois temiam ofensas e punições da sociedade. “É por isso que, até o século 19, poucas mulheres se atreveram a qualquer atividade que exigisse criatividade, como a literatura, e as poucas foram ridicularizadas. Florbela Espanca, ao apresentar-se como mulher, cantando o amor feminino, nesta mesma época, é mal vista”, relata a escritora.
É inevitável que muitas vitórias foram conquistadas ao decorrer da história, contudo, as situações que circundam nosso cotidiano, ainda que não dentro da nossa casa, provam que embora o machismo seja mais opressor em alguns países que em outros, em todos eles ele mata. E, nesse sentido, Jane afirma, “o panorama mais geral da movimentação feminina nos mostra, hoje, o fortalecimento da mulher. Mas ainda não é uma conquista consolidada. É o que esses prêmios nos mostram”.
Virginia Woolf, em Um teto todo seu, inicia seu texto afirmando que a mulher precisa “ter espaço próprio e dinheiro” para escrever ficção. Trata-se de uma alusão direta a justamente o que o patriarcado impede: a identidade da mulher e a sua independência. Sabemos que a condição da mulher foi durante muito tempo casar e ter filhos, sendo fortemente oprimida caso rejeitasse tal condição. Mas, ainda hoje, há sociedades que mantêm esse padrão de relação entre homens e mulheres. Na China, por exemplo, as mulheres solteiras após os 28 anos são – inevitavelmente – chamadas de “sheng nu” (“mulheres restantes” em mandarim). Há uma resistência nos países de todo o mundo que dificulta até mesmo a organização de debates sobre essa relação de poder e carrega consigo a distorção do sentido de libertação que o feminismo defende.
Tento identificar aqui o que é ser mulher, mas, especialmente, o que é ser escritora.
Como já citado, a atual situação da mulher em diversos espaços da sociedade, em diversas profissões e classes é fruto de uma construção cultural. Virginia Woolf faz um relato sobre uma manhã de outubro em que caminhava em Oxbridge em direção à biblioteca da faculdade, mas foi impedida quando “um cavalheiro desaprovador, prateado e gentil, lamentou em voz baixa, à medida que me dispensava com um gesto, que só se admitiam damas na biblioteca se acompanhadas por um estudante da universidade ou munidas de uma carta de apresentação”.
O fim do patriarcado possibilitará a identidade que a mulher tenta construir, mas é impedida pela naturalização do que não é natural. A falta de representação na literatura, fato descrito neste ensaio, é apenas um segmento da realidade feminina na atual sociedade. Nota-se a mesma situação no cinema, nas universidades, na televisão, em casa onde o homem tem responsabilidades diferentes das responsabilidades da mulher. Em que o primeiro é feito como uma opção e o segundo como uma obrigação.
À minha volta ouço mulheres – e eu sou uma delas – falarem que a voz firme e confiante e as palavras ditas confortavelmente são feitas em espaços dividido entre mulheres. Espaços em que, se houver um único homem, se torna um espaço propício a abafar ditos, opiniões, colocações, enfim, a voz da mulher.
Esses homens colocam o chapéu e vestem o casaco sob os raios agradáveis da manhã. Eles começam o dia, confiantes, seguros […] dizem a si mesmos, enquanto adentram o cômodo, sou superior à metade das pessoas aqui, e é por isso que eles falam com aquela autoconfiança, aquela autoafirmação que causou consequências tão profundas na vida pública e levou a anotações tão curiosas na margem da mente privada. – Virginia Woolf, em Um teto todo seu.
Situação esta proveniente de uma cultura criada durante séculos. Durante séculos as mulheres eram obrigadas a ficar caladas diante os homens, por respeito à voz masculina. Penso, com isso, que há reflexos concretos na escrita da mesma forma. Pois, assim como o direito de falar era restrito aos homens, a atuação política, o direito à escolha e a escrita, também eram.
O simples ato de uma mulher escrever já traz consigo, mesmo que involuntariamente, a essência e o sentido da nossa identidade. A escritora Jane Tutikian acredita que “as mulheres criadas ficcionalmente pelas mulheres estão lá a revelar e condenar a condição feminina no sistema patriarcal, denunciando sua objetalização, em livros que são atravessados pela consciência do feminino, e é isso o que importa, porque a consciência do feminino não quer a hegemonia, não quer a supremacia, não quer a autoridade, mas também não quer mais a igualdade, quer o reconhecimento da diferença e o respeito a ela, quer o direito à diversidade e esse, e o que é mais bonito de tudo, é um discurso que não se aplica apenas a elas, as mulheres, ele se aplica a todas as minorias”.
Escrever é, portanto, um ato político.
Os movimentos feministas consistem na busca por uma identidade a ser idealizada através das liberdades e direitos que o movimento defende para a mulher. Ser mulher talvez esteja compreendido numa identidade em construção e, possivelmente, ela esteja sendo construída com as trabalhadoras, com as escritoras e com as mulheres de modo geral na atuação que elas têm nos espaços em que ocupam. Ou então “que nada nos defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja nossa própria substância”. Que as mudanças sociais tragam consigo uma mudança de consciência, libertadora e não sexista. Por uma sociedade que repense suas maneiras de organização e compreenda que – inevitavelmente – as pessoas e suas concepções, o sistema político e a organização social mudam. E que entendamos que o presente é o tempo perfeito para mudarmos a sociedade e tornar o mundo um lugar agradável de habitar. Simone de Beauvoir entendia que “o presente não é um passado em potência, ele é momento da escolha e da ação”.
Para ser escritora é preciso ter independência. E não é algo com a qual nascemos. Pois, para o patriarcado existem papeis estabelecidos para cada sexo e à mulher cabem tarefas que a eximem da liberdade de decidir; aos homens a liberdade é inerente à sua existência. Eu não quero ter que ser a responsável pelas tarefas domésticas enquanto comigo moram homens e a eles essas tarefas “não cabem”. Quero o companheirismo para que ambos tenhamos a chance de decidir qual será o nosso papel na sociedade. Eu quero ser escritora, mas antes, que todas as mulheres de todos os povos, raças, classes e lugares tenham a liberdade de escolher sobre suas vidas e seus corpos. Beauvoir dizia: “a minha liberdade não deve procurar captar o ser, mas desvendá-lo”. Eu quero poder descobrir o que é ser mulher e escritora em uma sociedade feminista.
Ensaio sobre feminismo e literatura, pelo viés de Maiara Marinho.