— Bruno, se eu pudesse viver apenas como nesses momentos, ou como quando estou tocando e também o tempo muda… Você percebe o que poderia acontecer num minuto e meio… Então um homem, e não só eu mas também essa aí e você e todos os rapazes, poderiam viver centenas de anos, se a gente encontrasse a maneira poderíamos viver mil vezes mais do que estamos vivendo por culpa dos relógios, por causa dessa mania de minutos e de depois de amanhã…
Trecho de “El Perseguidor” p.99
O saxofonista problemático Johnny Carter descreve sua obsessão pelo tempo para o crítico Bruno – sua teoria de imortalidade e de prolongação de momentos. Esta parte no conto “El Perseguidor” explica os motivos e os estilos de percepção que Julio Cortázar quer que entendamos. Muitas de suas frases em seus trabalhos podem detalhar extasiadamente ou desenlaçar pateticamente um momento brusco. Assim, o trabalho de esquematizar um conto pode ser tal qual como escrever uma partitura musical. Seguindo à risca sua estrutura, não deixando de improvisar nas sutilezas. Deste jeito, o jazz influenciou muito na vida, no estilo e nos livros de Julio Cortázar.
Neste dia 26 de agosto, celebraremos o centenário do escritor argentino Julio Cortázar. Notório pelos livros “Rayuela”, “Todos los fuegos el fuego” e mais registros, o escritor sagrou-se como um dos contistas mais inovadores e versáteis da era contemporânea. No conto “El Perseguidor” podemos ver claramente a história da relação de Johnny Carter, um saxofonista viciado em maconha, e Bruno, um crítico de jazz que o acompanha para escrever um livro sobre o jazzista.
De acordo com a professora e mestranda Carolina de Pontes Rubira, Cortázar considerava o jazz, junto com a música indiana, a música de todas as músicas, por sua capacidade de representação de mais pura inspiração. Cortázar completa que o jazz “corresponde à essa grande ambição do surrealismo em literatura, é dizer, pela escritura automática, a inspiração total, que no jazz corresponde à improvisação, uma criação que não está submetida a um discurso lógico e pré-estabelecido, mas sim que nasce das profundidades […].”
“Como ouvinte de música sou um melómano e se me fizer a pergunta da ilha deserta – acho que dizia em uma entrevista recente a Jacques Chesnel – entre levar livros ou discos, levaria discos. Já vê que para um escritor é uma afirmação um pouco violente, digamos, e que sai um pouco fora do comum”
Trecho de “Conversaciones con Cortázar” p. 101
Além da música jazz, Cortázar era ouvinte de música erudita, da qual também ajudou a influenciar as criações do escritor. “Dizia que não se tratava de ouvir a música e escrever sobre ouvir, mas de uma inspiração gerada por um trecho, uma frase, que o ‘lançava sobre o texto’, que o fazia escrever. A descoberta dos Cronópios, conhecidos personagens do livro ‘Histórias de Cronópios e de Famas”, ocorreu depois da audição de uma peça de Igor Stravinsky. No intervalo da peça, Cortázar diz que ‘viu’ os Cronópios no teatro. Assim teriam surgido esses personagens” afirma a professora Carolina Rubira.
Cortázar prezava pela importância da música em si, tanto que quando ele ouvia um disco, não fazia nada mais e somente ouvir as músicas, por não deixar que a música sirva de cenário para uma outra atividade. Cortázar, citando o termo do pianista Erik Satie, falava que há músicas-móveis. “Tu pões a música ali como se fosse uma cadeira ou um vaso de flores. Quantas discussões cordiais meus amigos tivemos e quando ao sentarmos a ceiar me pedem que ponha música. Isso é insultar a Bach e a Mozart, escutá-los enquanto comemos spaghetti. Não compuseram música para chegar a isto” criticava Cortázar.
“Sim (toco o trompete), para grande desespero de meus vizinhos. Eu o tenho como procedimento higiênico. Quando estou cansado, fatigado, por haver escrito ou lido muito, tocar um pouco o trompete é um exercício respiratório formidável”
Trecho de “Conversaciones con Cortázar”. p.107
Na mais vaga das horas, Cortázar ensaiava seus conhecimentos musicais em instrumentos. Desde os oito anos até os treze, o escritor tocava piano, mas num momento decidiu fechar a tampa e não tocá-lo mais. Para aspirar aos jazzistas, o escritor começou a tocar trompete, mas dizia que não tinha a vocação para isso. Então decidiu se dedicar à literatura. “A relação com o jazz e a música de maneira geral (pois não devemos deixar de lembrar da importância do blues e da música erudita) está na base da formação de Cortázar como escritor/narrador. Em minha opinião, ela permeia toda a obra do autor”, afirma Rubira.
No disco “Giant Steps” do saxofonista John Coltrane há um comentário do seu amigo trompetista virtuoso Miles Davis: “O que John Coltrane faz é tocar cinco notas de um acorde e então ficar mudando, tentando ver quais diferentes maneiras podem soar”. Essa fala é recordada no livro “Último Round” de Cortázar, demonstrando que o jazz está no cosmos literário do escritor. Deixando para posterioridade, Cortázar prolongou seu estilo de narrativa à imortalidade, assim como seu personagem Johnny pensava.
Jazz: a arma secreta de Julio Cortázar, pelo viés do colaborador Leonardo Cortes*
*Leonardo é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria.