A primeira vez que ouvi Raul Seixas eu era ainda um moleque de calças curtas desinteressado por sociedades alternativas e maluquices do gênero. Não lembro bem da ocasião; mas levando em conta que minha infância se passou nos anos oitenta – período de altos e baixos na carreira do cantor e compositor baiano -, é bem provável que eu o tenha visto num daqueles programas de tevê que garantiam quinze minutos de sobrevida para astros decadentes.
Não diria que foi amor à primeira vista. Raul pode ter despertado minha atenção com a canção do carimbador maluco, naquele vídeo em que voava como um super-herói de terceira categoria enquanto cantava mensagens subliminares de protesto para crianças hipnotizadas diante dos monitores de tevê. Mas foi apenas anos mais tarde, já em seu ocaso alcoólico no fim daquela década perdida, que comecei a sentir os efeitos da passagem turbulenta daquela figura curiosíssima não somente sobre minha vida, mas nas de pelos menos três gerações de brasileiros.
Hoje, vinte e cinco anos depois do desaparecimento de Raul, talvez faça sentido relembrar que seu lugar na música brasileira é bem maior que a familiaridade com as canções mais conhecidas daquele tipo caricato pode nos levar a imaginar.
Raul Seixas se fez envolver por uma mística que lhe garantiu a adoração de milhares de admiradores (e imitadores), mas reduzi-lo ao simples charlatanismo seria injustiça com a obra que concebeu. Se foi um charlatão, fez um tipo genial de trapaceiro. Foi ele quem, nos anos setenta, melhor absorveu e reorganizou as heranças do tropicalismo – ainda que negando-o – e de um jeito desaforado colocou no mesmo caldeirão a canção de protesto debochada (Ouro de Tolo, As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor), os versos ocultistas e os textos sagrados (Gita, Água Viva, Eu nasci há dez mil anos atrás), as odes aos amores românticos e libertários (Ângela, A Maçã, Medo da Chuva) e os manifestos hedonistas (Sociedade Alternativa, Metamorfose Ambulante, Novo Aeon). No baralho de cartas misturadas de Raul cabiam o rock n’roll a la Elvis e Beatles, o baião de Luiz Gonzaga, o folk de Bob Dylan, o lamento sertanejo, o samba do Recôncavo, a ladainha da capoeira, as profecias de Nostradamus e as epifanias bíblicas – e sempre convém lembramos da sua tese que atribui ao coisa ruim a paternidade do rock.
Uma das maiores contribuições de Raul para a música pop brasileira foi, também, um dos motivos pelos quais é comumente difamado: seu mais completo desrespeito pelo tabu da originalidade – termo que simplesmente não deveria ter lugar em qualquer equação que envolva a variante pop – rendeu pastiches deliciosos, subversões de canções gringas, melodias afanadas e repaginadas para o universo místico e embriagado do Maluco Beleza. Claro que a Jovem Guarda já fazia isso com mais de uma década de antecedência – mas enquanto Roberto Carlos e companhia tratavam de replicar fielmente os hits de conjuntos norte-americanos, Raul se apropriava da cultura dos colonizadores com um apetite canibal para depois vomitar suas idiossincrasias, atualizando a validade do Manifesto Antropofágico assinado pelos modernistas brasileiros.
Raul se interessava por tudo que não era dele, e tal qual um tupinambá orgulhoso ostentava como troféus o produto de seus saques contra os estrangeiros que admirava.
Das parcerias que Raul cultivou, algumas alcançaram fama ainda maior que a dele, enquanto outras precisaram se contentar com a meia-luz da História. Paulo Coelho, o antigo cúmplice de composições e receitas de magia negra, é hoje um dos autores mais lidos no mundo, um tipo de popstar da literatura esotérica incensado por estadistas e atores de Hollywood. Já Sergio Sampaio, um dos colegas na Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (cujo único e genial disco foi praticamente um atentado furtivo de terrorismo poético que Raul engendrou malandramente nos tempos em que trabalhava na gravadora CBS) e músico de talento visionário, acabou relegado à obscuridade e somente há pouco tempo tem merecido o resgate por pesquisadores musicais que elegeram sua discografia como pérola cult. Findou a vida sozinho com seu bloco melancólico na rua.
Tanto os que foram alçados ao estrelato quanto os que desapareceram no semi-anonimato, entretanto, carecem daquele estranho magnetismo que fez de Raul mais que um artista eventualmente bem-sucedido, mas um marco da contra-cultura, um modelo a iluminar as rotas de fuga do sistema, ícone das estampas populares que gerações de pais prudentes e filhos desgarrados compartilham sem contradição. Muita gente largou o emprego, caiu na estrada e decidiu experimentar um baseado inspirada naquele jeito de filósofo bandido que Raul imortalizou; assim como muita gente também prefere o iluminado ao maldito, digerindo o Raul dos temas de auto-ajuda barata e dos aforismos de botequim.
Longe de ser um consenso entre seus contemporâneos, Raul se recusava a ocupar o seu lugar no chá de comadres em que havia se convertido o ambiente da MPB no fim da década de setenta. Com a ditadura militar dando sinais de esgotamento e os artistas outrora combativos cada vez mais domesticados e apartados da plebe por uma aura esnobe, a ele só restava reivindicar seu papel de bufão e chutar a lona do circo. Dos baianos da turma tropicalista, nunca foi um chegado, talvez pela suposta falta de refinamento estético; com o intocável João Gilberto, adorava fazer chistes em que ridicularizava o ar blasé e os complicados acordes bossa-novistas. Enquanto Belchior dizia preferir as coisas reais aos romances astrais, Raul dizia que também ia reclamar para ficar na moda, e não tinha vergonha nenhuma de conciliar angústias mundanas com a espera pelos discos voadores.
Já nos tempos em que seu vício destrutivo pelo álcool havia quase o devastado, Raul ensaiou um retorno sob a tutela do fã e amigo Marcelo Nova. Com um disco novo gravado e momentaneamente revitalizado pelo estímulo da parceria com o então vocalista do Camisa de Vênus, Raul voltou a ser notícia, teve música em trilha de novela e encarnou o símbolo renascido da irreverência musical brasileira. Durou pouco. No meio tempo entre o ressurgimento triunfal e a parada cardíaca que o vitimou no dia 21 de agosto de 1989, Raul invocou o diabo em horário nobre na televisão, subiu ao palco de pileque para cantar desafinado e decerto experimentou a sensação de imortalidade enquanto ria desdentado diante do próprio fim.
Naquela fatídica manhã no mês dos cães danados, Raul Seixas – parafraseando uma de suas últimas canções – deixava o plano físico para se tornar, enfim, um carpinteiro do universo.
Texto escrito no dia 21 de agosto de 2014, dia do aniversário de 25 anos da morte de Raul.
Raul Seixas e o dia em que a Terra parou, pelo viés de Atílio Alencar