A Escócia surge de complexas relações entre celtas, anglo-saxões, vikings e romanos. Apesar de se poderem traçar as várias origens étnicas e culturais do país, isso em si não esclarece a atual situação do referendo sobre a independência escocesa do Reino Unido, pois a consulta que ocorre no próximo mês não pode ser entendida como uma tentativa de preservar uma suposta pureza — o que, por si só, já seria um argumento falho já que todos as etnias e todas as culturas podem ser historicamente conectadas umas às outras. A questão da independência da Escócia gira em torno de dois eixos: política e economia.
Antes de tratarmos desses eixos, precisamos entender o atual arranjo político. O nome oficial do Estado soberano é Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, o que gera algumas confusões. No noroeste da Europa, há duas ilhas: a ilha da Irlanda e a ilha da Grã-Bretanha. A ilha da Irlanda inclui dois países: a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. A República da Irlanda fez, até um processo que se findou em 1931, parte do Reino Unido. A ilha da Grã-Bretanha inclui três países: Inglaterra, País de Gales e Escócia. Juntos, os três países da Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte compõe o que sobrou de um dos mais fortes impérios da história moderna.
Politicamente, a Escócia foi um Estado soberano por aproximadamente 800 anos até 1707, quando o Reino da Escócia e o Reino da Inglaterra (que já havia anexado o País de Gales) se unificaram através do Tratado de União. A partir de então, começa a surgir a ideia de uma identidade britânica, que nunca suprimiu as identidades nacionais irlandesa, galesa, inglesa nem escocesa.
A questão de uma possível independência escocesa sempre foi um assunto muito forte, apesar de delicado, nos cenários político e cultural do país. Em 1979, foi feito um primeiro referendo sobre a possível criação de uma assembleia escocesa, pois talvez o ponto principal dos clamores por independência seja justamente a concentração de poder em Westminster, região de Londres onde fica o Parlamento Britânico. Naquele ano, 51.62% dos escoceses votaram a favor da criação de uma assembleia nacional, mas o número não alcançou a condição de que 40% do número absoluto de eleitores deveriam votar pela proposta para que ela passasse — num universo em que 63.8% dos eleitores comparecerem, a cifra não foi suficiente.
O assunto ressurgiu quando, em 1997, foi feito um segundo referendo com relação a uma distribuição mais justa de poderes políticos para os escoceses. Dessa vez, o resultado foi favorável à Escócia e levou ao Ato Escocês de 1998, que criou, portanto, um Parlamento Escocês. Este parlamento ainda está subjugado ao Parlamento Britânico, mas ganhou autonomia para legislar sobre certos temas, os chamados devolved matters (assuntos transferidos), que incluem questões relacionadas à moradia, à educação e ao turismo, mas não compreendem assuntos maiores, como imigração, previdência social, política externa e tributação — estes assuntos continuam nas mãos de Londres.
É nesse cenário de predominante má distribuição do poder político — que favorece sempre a Inglaterra e, mais especificamente, Londres — que surgiu o atual movimento pela independência, liderado pelo primeiro-ministro escocês Alex Salmond, líder do Partido Nacional Escocês, maioria absoluta no parlamento nacional. A campanha do Yes Scotland (Sim Escócia) se baseia em críticas a Londres que podem ser organizadas da seguinte forma. A Escócia se posiciona contrária a tendências crescentes no Parlamento Britânico de: (1) euroceticismo, ou seja, ceticismo com relação à União Europeia (o partido de extrema-direita UKIP, por exemplo, defende que o Reino Unido abandone a união); (2) anti-imigração, com a aprovação de leis cada vez mais restritivas à imigração de cidadãos de fora da União Europeia e tentativas de barrar certas nacionalidades de dentro da União, como os romenos, os poloneses e os búlgaros e (3) encolhimento do estado de bem-estar social, um dos grandes golpes da crise que se inicia em bancos e no sistema financeiro, explode em 2008 e acaba sendo cobrada dos mais pobres. Por outro lado, a mesma campanha do Yes Scotland propõe certas manutenções: a libra esterlina continuaria sendo a moeda da Escócia, a rainha da Inglaterra seguiria sendo a chefa de Estado e a Escócia manteria sua filiação à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Além disso, surgiu uma série de propostas extra-oficiais que se dizem neutras, mas apontam para uma melhor aplicabilidade numa Escócia independente. Essas propostas foram organizadas num documento chamado Common Weal (uma antiga frase escocesa que significa ‘riqueza compartilhada em comum e para o bem-estar de todos’). Esse documento foi elaborado por acadêmicos, sindicalistas, economistas e escritores de todo o país e propõe medidas mais ousadas, entre elas: semana de trabalho de quatro dias, criação de uma renda cidadã (um valor a ser recebido por todos os cidadãos escoceses independentemente de estarem empregados ou não), maior tributação de latifúndios e de grandes fortunas e corte de gastos com exército e com armas nucleares.
A grande crítica à independência é feita através de uma perspectiva econômica. Da parte dos ingleses, já ficaram bem claras as ameaças de que a Inglaterra não aceitará uma união monetária com a Escócia caso os escoceses votem pela independência. De uma maneira geral, economistas, analistas e muitos polemistas preveem um cenário catastrófico para a economia escocesa fora do Reino Unido. Ao que outros tantos analistas escoceses respondem que a economia da Escócia é forte o suficiente para se manter sozinha até mesmo sem a renda do petróleo, do qual o país tem grandes reservas. No entanto, as incertezas econômicas levarão muitos escoceses a votar contra a independência mesmo que, política e culturalmente, eles desejassem ver seu país absolutamente autônomo. As pesquisas de intenção de voto sempre dão como certa a vitória do Não: a última pesquisa, do dia 15 de agosto, mostra que 51% das pessoas votariam Não, 38% votariam Sim e 11% não saberiam em que votar.
Quando as críticas saem do plano econômico, chegam os estigmas e os apelos culturais. Não é incomum ouvir de ingleses algo como: ‘Que se tornem independentes mesmo. Eles só nos tomam dinheiro’. Isso, se fosse verdade, só serviria como mais um argumento pró-independência: se o problema é que a Escócia ‘toma’ dinheiro da Inglaterra, nada melhor que os ingleses se livrem logo dos escoceses. No entanto, esse tipo de frase mostra que a preocupação da Inglaterra não é nem com a economia nem com a política escocesas em si, mas com o que elas representam para o Reino Unido no sentido de manterem um certo sentimento relacionado ao antigo Império Britânico, que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, despenca em queda-livre mas é mantido vivo por uma certa supremacia inglesa latente.
Por outro lado, se o ataque voraz não convence, começam os apelos culturais de que o Reino Unido é uma grande comunidade cultural e de que, portanto, a identidade britânica depende da união dos países, como fica explícito na campanha anti-independência Better Together (Melhor Juntos). Na prática, esse apelo leva a duas constatações. Em primeiro lugar, a Escócia é associada a misticismo, kilts, gaitas de fole, clãs e uma certa aura de mistério. Existe um preconceito contra a cultura escocesa à medida que ela é ligada a um folclore primitivo em contraponto ao suposto cosmopolitismo centralizado em Londres. São piadas com o sotaque escocês, as roupas, a grande quantidade de ruivos, a ‘similaridade’ com a Irlanda. Aos olhos do sul, a Escócia é uma terra em que se mantém uma chama de bestialidade que vem lá da época em que o Império Romano não conseguia avançar sobre essa parte da Grã-Bretanha e que se traduz hoje com uma petrificação da cultura e da identidade escocesas em termos de um quasi-provincianismo. Em segundo lugar, confunde-se cultura com política: culturas nunca se prenderam dentro de fronteiras políticas. É, inclusive, uma contradição histórica dizer que o Reino Unido vai perder em matéria de cultura, pois a independência não implica corte de relações, tampouco seria bem sucedida nessa tarefa se assim se propusesse.
Em suma, a independência da Escócia é um clamor histórico por autodeterminação que tenha um reflexo sobre o poder político que os próprios escoceses têm em decidir os rumos do seu país. O antigo apelo a uma identidade escocesa combativa da inglesa, que nutria muito do nacionalismo escocês, já não basta e dá espaço a considerações mais pragmáticas. No próximo dia 18, os escoceses terão que, de uma forma ou de outra, encontrar a resposta para o dilema da independência: a autonomia política se sobreporá às incertezas econômicas?
Leia e veja mais:
Common Weal: the people’s plan for an independent Scotland
Scotland: a rocky road to independence
Scotland the free: time for Scottish independence?
YES OR NO? O DILEMA ESCOCÊS, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
Imagem de capa: Flickr/Prabhu B Doss