Lagarto gigante de inúmeras patas, dragão-serpente com cabeça de galo ou cobra com coroa: as inúmeras descrições do basilisco pouco fazem diferença quando ele ainda está envolto pela dura casca de um ovo. Pois essa figura mítica outrora confinada na Idade Média foi novamente evocada no século XX em Aracataca, um pequeno município da Colômbia.
O causo deu-se na residência de Gabriel García Márquez. Relembra o escritor que chegara lá uma moça trazendo consigo a dúvida: por que esse ovo achado por ela tinha uma protuberância? A resposta veio da tia de Gabo: trata-se de um ovo de basilisco que deve imediatamente ser queimado. “Acendam uma fogueira no pátio”, disse. E assim se fez o espanto no futuro escritor, à época criança, maravilhado com a naturalidade e cara de pau de sua tia em inventar fábulas.
Garcia Márquez passou boa parte da infância ouvindo as histórias fantásticas de seus parentes. Na sua escrita, a influência não se dá necessariamente pelos folclores que escutou, mas pelo entendimento de que a linguagem literária deve ser inventiva, a fim de abranger o universo ficcional narrativo. Segundo Fernando Villarraga, professor do curso de Letras da UFSM, essa compreensão é comum aos demais escritores do chamado boom latinoamericano. Quando questionam por outras formas de narrar a realidade, colocam em xeque a escola realista, que buscou imitá-la à exatidão. Sendo assim, García Márquez e seus contemporâneos admitem que a literatura não é capaz de nomear ou compreender os fenômenos do mundo real, pois eles ultrapassam qualquer visão literária. O fantástico não estaria na obra, mas no próprio mundo, uma vez que nele “há coisas tão inacreditáveis que a literatura nunca vai poder dar conta”, explica Villarraga.
Explosões latinas
Quando viaja a Bogotá para cursar Direito, Gabo vivencia um processo de violência entre partidos políticos que assola a cidade, tendo como estopim o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, líder do Partido Liberal. Conhecido como El Bogotazo, esse período histórico durou de 1948 a 1957 e também viu surgir obras literárias que buscaram narrar os tempos de violência.
García Márquez, já vivendo na Venezuela, publica um ensaio sobre a novela da violência na Colômbia e diz que ainda não se escreveu a verdadeira obra ficcional literária sobre estes tempos. “Então ele começa a articular na sua mente o Cem Anos de Solidão”, diz Villarraga, referindo-se a uma das obras mais conhecidas do escritor. “Há uma discussão sobre que linguagem seria essa, que alguns chamam de real maravilhoso – quando os dados da realidade ganham caráter extraordinário – e que também pode ser entendido como fantástico. Já alguns dizem que realismo fantástico e real maravilhoso seriam duas coisas diferentes. Mas a questão é a seguinte: como nomear a realidade? E essa é uma discussão que se coloca para todos os escritores ligados ao boom. Carlos Fuentes tem justamente um livro chamado A Nova Novela Hispano-americana, no qual faz reflexões sobre isso – como nomear isto que está aí, essa realidade latinoamericana que nunca foi nomeada?”.
O chamado boom latinoamericano – um termo por si só controverso mesmo nos círculos literários – pode ser associado a dois fatores: o mercado e a necessidade de novas formas narrativas. Para Villarraga, o descobrimento da indústria editorial na América Latina explicaria em parte esse fenômeno, especialmente a partir de algumas obras seminais: O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, A Morte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes, Cem Anos de Solidão, de García Márquez, além de outros escritores como José Donoso, do Chile, Mario Vargas Llosa, do Peru, e Salvador Garmendia, da Venezuela. Este grupo, cujas referências são o mexicano Juan Rulfo e o brasileiro Guimarães Rosa, tem o primeiro reconhecimento de suas obras pelo público interno – leitores argentinos, colombianos, venezuelanos, mexicanos.
“Claro que nessa história toda algumas editoras são fundamentais”, acrescenta Villarraga, citando Losada e Sudamericana, da Argentina. Mas seria o boom uma mera jogada mercadológica? Para Teresa Cabañas, professora do curso de Letras – Espanhol da UFSM, a pergunta correta seria “quem saiu ganhando com isso?”. Com a massificação das obras para além de um grupo elitizado e restrito, a resposta aponta para uma vitória dos próprios leitores. Cabañas, que nasceu na Venezuela, lembra de ter lido diversos desses autores na sua adolescência. “A gente não entendia muito, mas lia Vargas Llosa, Carlos Fuentes, García Márquez, justamente porque estava na correnteza do mercado e você podia achar esses títulos em qualquer banca de jornal a cinco, seis reais. De fato, a jogada mercadológica está aí, mas eu acho que ela terminou sendo muito benéfica. Partiu-se para essa coisa chamada de fenômeno de massa – os escritores apareciam nos jornais, nos noticiários, e se fizeram comuns no cotidiano não só dessa pessoa elitizada, que lia por profissão, mas também do leitor comum”.
Tendo o reconhecimento do público a seu favor, a literatura que privilegiava o realismo mágico esbarrou na crítica. Parte dela já possuía um modelo estabelecido: o romance pelo viés da escola realista, tendo como pano de fundo as problemáticas sociais da América Latina, especialmente no período do Bogotazo e na iminência da Revolução Cubana. É por isso, explica Cabañas, que uma obra que se afastasse desse modelo de denúncia social não era bem visto – e García Márquez, por exemplo, exercitaria um mero “jogo lúdico” de fenômenos folclóricos.
Mas não se tratava apenas disso, como a crítica percebeu mais tarde. A denúncia social permanecia ali, mas contada de outro modo – pois “os modelos do realismo tradicional não davam mais conta da tremenda complexidade que a história da América Latina tinha”, esclarece a professora, e prossegue: “quando você precisa explicar a bizarrice da nossa história, chega um ponto em que você se livra de modelos pré-estabelecidos e percebe que há uma coisa que escapa dos nossos canais de interpretação. E a única maneira de lidar com isso, e talvez seja essa a nova proposta dessa literatura, é não via razão, mas via percepção sensível”. O projeto de García Márquez, portanto, giraria em torno da derrubada do antropocentrismo – indo além do homem como ser racional que tudo pode controlar e explicar.
Imaginar para subverter
O suposto destino que marcaria o homem na obra de García Márquez não foi nada bem recebido por parte da crítica – uma vez que tal determinismo pouco contribuiria para um projeto político de sociedade igualitária simbolizado na Revolução Cubana da época. No entanto, essa seria uma leitura parca das obras de Gabo, segundo Cabañas. Não se trata de uma simples determinação, mas de considerar fatores que vão além da mera vontade do homem, como, por exemplo, as relações de outros sujeitos que acabam influenciando na sua vida. Daí a universalização nas temáticas de García Márquez – ainda que permaneça fiel à condição latinoamericana, Gabo destrincha a natureza do homem, indo além de questões históricas e sociais para cunhar uma denúncia filosófica e existencial.
Isso se reflete na própria estrutura dos romances do escritor, já que em alguns o final da trama é antecipado nas suas primeiras linhas. É assim com o inevitável destino das malditas estirpes de Macondo, em Cem Anos de Solidão. Ou mais enfaticamente na autoexplicativa Crônica de Uma Morte Anunciada, que desde o seu começo desfere o fim da obra, violando uma regra básica do gênero policial. “E, no entanto, o romance mantém uma tensão narrativa no seu primeiro instante. Então você vê como uma matriz pode ser revirada, atualizada e nutrida”, explica a professora.
O caso de Crônica é notório pelo sucesso de vendas que foi a obra. A sua primeira edição, por exemplo, possui letras grandes e com maior espaçamento, segundo Fernando Villarraga. “São marcas editoriais que traduziriam um pouco a que leitor estava se dirigindo essa obra, porque me parece um projeto com direcionamento mais amplo e não somente ao setor tradicional da pequena elite de leitores na América Latina. Acho que, de alguma maneira, García Márquez queria conquistar novos leitores”.
Para Cabañas, o que fica da leitura de Crônica é o espanto perante o destino– não de forma pessimista, mas indo contra a prepotência do homem, “da gente se perceber como uma partícula minúscula que no fundo não pode nada contra nada”. No caso do extenso romance Cem Anos de Solidão, a criação de outro mundo recheado de fantasia chama a atenção pelo exagero – novamente, tanto no enredo mágico como na estrutura, contrariando o minimalismo de Crônica, com suas pouco mais de 100 páginas. O complexo universo de Macondo espanta pela imprevisibilidade e por desafiar o real – ou o que se pensa ser real. Gabo busca demonstrar que o fantástico e maravilhoso não se trata de invenção sua, mas de um abrir sentidos para o que está oculto na nossa vida cotidiana. “Talvez seja por isso que o projeto de García Márquez fascine tanto – porque é uma abertura para uma coisa que, com o racionalismo, a sociedade burguesa pega e mata: a imaginação”, define Cabañas.
Para a professora, a literatura possui o privilégio de não trabalhar com um modelo explicativo do mundo. Logo, ela pode oferecer possibilidades para se pensá-lo a partir de outros parâmetros que não as explicações racionais ou os dados científicos. “O que o capitalismo fez de mais importante e assustador foi formatar a sensibilidade do sujeito. Passamos a pensar e sentir de uma determinada maneira que é, sim, fruto de toda a existência social que temos. Então, a partir dessa determinação da sensibilidade, o que acontece com a literatura? Ela desnaturaliza isso, nos assustando, nos surpreendendo, nos dando uma imagem que não é a interpretação racional”. É então que o papel do imaginário na obra de García Márquez torna-se fundamental para uma nova leitura de mundo, uma vez que o próprio uso da imaginação vai contra os fins de um sistema que preza pelo produtivismo.“É o que se diz do ócio – porque o ócio criativo e a imaginação levam a um aspecto a ser desenvolvido no ser humano: indagação e questionamento”. É por isso que Cabañas salienta: a imaginação é perigosa. Sendo assim, o que a crítica anteriormente consideraria como um jogo lúdico onde o maravilhoso cumpriria um mero papel frívolo, parece não fazer tanto sentido agora. Com o leitor colocado frente a um mundo de imaginários diversos, vem o espanto – daí a indagação e o questionamento, não importando sobre o quê, e levando o leitor à realidade.
E o que fica da obra de García Márquez? Certa vez, o escritor, em entrevista ao amigo Plinio Mendoza, disse que o seu livro “único” era “o livro da solidão”. Teríamos no homem solitário o principal tema de Gabo? “Por mais que esse homem está rodeado de outros, e por mais que esse destino também possa estar sendo articulado por outros, ele está só”, finaliza Cabañas. É o homem que mergulha na solidão quando passa a vida à espera de algo que nunca vem, como o pagamento de sua aposentadoria. Um sujeito cuja única companhia é o seu destino, entendendo, por fim, que nem tudo está ao alcance do seu controle e que as estirpes de Macondo um dia desaparecerão. Mierda!
Do espanto, fez-se sensibilidade, pelo viés de Dairan Paul.