Quem transita pelas ruas centrais da cidade de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, pode notar uma paisagem urbana com alguns prédios antigos, cheios de histórias. Porém, em meio a essa arquitetura, é possível encontrar também outras histórias, como a de Falcão e Sofia.
Faltava pouco para o inverno e uma brisa quase gelada já rondava a tarde de sábado. Pra completar, a fumaça vinda de uma chaleira e o aroma de café granulado feito na hora, pairava pelo ar. Era a combinação perfeita para uma boa prosa e uma tímida abordagem. Na sua sala de estar, em plena calçada, Falcão me fitava desconfiado. A companhia do cigarro de palheiro lhe dava um ar corajoso e misterioso. O costume de fumar começou aos 18 anos. Já ganhei muita carteira de cigarro, mas não me mata a vontade. Para matar a minha vontade, sento no chão morno de cimento. O sol acabara de passar por ali. Cada quadradinho cinza que compõe a calçada possui uma agradável simetria. Claro, além do belo serviço que alguém fez naquela rua, é a limpeza de Falcão que deixa isso evidente.
O homem magro, de pele morena e traços cansados examina se a água para o café está quente. Pra dar atenção à minha conversa, desliga o velho fogareiro de brasa que ganhou de uma amiga, senta na cadeira de praia, ajeita a almofada e pede para eu ir direto ao assunto. Sofia já estava bem deitada em cima de um cobertor. Fico eu aqui, fingindo estar bem despretensiosa. Vou prestar atenção na conversa desse menino de óculos e bochechas vermelhas. Qualquer movimento brusco, aviso Falcão.
Nascido em Bagé, hoje com 49 anos de idade, Falcão relembra quando começou a sua vida de andarilho:
– Foi aos 15 anos. Em 29 anos, já andei pelo país todo.
– Qual lugar tu mais gostou de conhecer?
– Todo litoral brasileiro. O que eu mais adoro é Camboriú, em Santa Catarina. Tenho uma paixão.
– Por quê?
– Acho maravilhosa a praia, as pessoas… A Sofia fez viagem comigo desde 2005. Em 2002 foi a última vez que viajei até perto de São Paulo, mas dei a volta. Tem muita violência embaixo da ponte.
Geralmente Falcão e Sofia viajam a pé. Ela já viajou comigo para Porto Alegre umas oito vezes. Quando não tinha ela, demorava vinte dias. Com ela, levo até um mês. Carona só pegou três ou quatro vezes. Contundente, o andarilho conta que já dormiu com bandido e traficante, mas que nunca fizeram nada para ele. Apesar disso, já se livrou da morte umas dez vezes. Quando vou viajar, só levo o essencial. No carrinho só vai duas cobertas e um lençol, além de dois camburão de água pra Sofia e um pra fazer comida. Percebendo que estamos falando dela, a cadela de pelagem preta com tons bege chama atenção:
– Tô de colchonete, pai.
– Não deixa eu perder o fio da meada, Sofia, responde Falcão.
A relação dos dois é muito especial. Percebe-se isso no olhar. O andarilho cuida dela como uma filha. Há quem diga que Falcão maltrate a companheira, por isso a submissão de Sofia. Eu vi amor. E nos olhos de ambos. Falcão conta a história do nome Sofia. Tudo começou com a sobrinha. A menina inventou de fazer uma competição no pátio de casa quando a cadela tinha apenas seis meses. Falcão a chamava de Lassie e ela atendia. A sobrinha cismou que o nome tinha que ser Sofia e quando cada um chamou a cadelinha pelos nomes que gostavam, Sofia virou Sofia. Acredito que mais para contrariar Falcão.
– Brigo com quem maltrata a cachorra na rua, duas vezes já tentaram nos colocar fogo, uma aqui na frente do palacete e outra quando estava na frente do Supermercado Nacional. Se não fosse essa cadela…
A mudança para frente do Palacete aconteceu há mais de cinco meses. Desde que voltou para Bagé, Falcão fixou residência embaixo da marquise do Supermercado Nacional. Em uma tarde como essa, eu tava com a Sofia lendo gibi, quando uma turma de engravatado veio me dizer que eu tava enfeiando a frente do mercado. Me correram dali. O jeito foi caminhar para outro lugar. Não foi preciso ir muito longe. O Palacete fica ao lado do supermercado. A razão pelo pouco deslocamento pode estar nos joelhos de Falcão. Há 15 anos, em Porto Alegre, o andarilho conta que foi atropelado por um carro. De lá para cá, caminha pouco, só o suficiente para catar algumas latinhas. O dinheiro em parte vem daí. A outra parte é das pessoas que doam mesmo. É só ler a placa grudada na barraca.
***
Levantando da cadeira, Falcão vai em direção a uma pilha de caixas de papelão dentro de um carrinho velho de supermercado, atrás da barraca. Foi acender o fogareiro. Novamente vai esquentar a água para o café. Pergunto sobre sua família. Falcão me avisa:
– Não me perguntando o porquê que eu tô nessa vida, de resto pode perguntar tudo.
Insisto sobre sua família e numa certa melancolia no olhar. O andarilho revela que considera apenas Sofia e a irmã de criação, que mora no bairro Fênix. O resto não existe pra mim. Silêncio. Observo os olhos marejados do anfitrião que me recebeu abertamente em sua casa, paro, respiro e mudo rapidamente de pergunta.
Os raios de sol começam a baixar por entre as folhas das várias espécies de árvores que habitam o pátio do Palacete. É uma vista privilegiada da “janela” da casa de Falcão. Nessas alturas, Sofia está lambuzando um belo prato de ração. O porta-retrato na mesinha improvisada chama minha atenção. São fotos que o pessoal tira.
– Oi, Falcão, como anda a moça? Não tem mais filhotinho pra dar?
– Acabou. Já doei tudo.
Sofia já ficou grávida mais de duas vezes. Só dou pra quem eu sei que vai cuidar. O zelo se estende para comodidade que a cadela tem na barraca. A morada é do tamanho perfeito pra duas pessoas. Ali cada um tem seu travesseiro. O maior e mais macio é de Sofia. Cobertores têm aos montes. As pessoas são boas, nos presenteiam bastante. Sofia ganhou esses dias uma almofada e um guarda-sol. Em época de carnaval, Falcão não dorme. Fico fumando. Em dias normais, quem fica acordada é Sofia. A fumaça da água quente saindo do fogareiro invade a nossa conversa. Nesse momento, em cima da toalha branca de renda, junto a três plantas bem cuidadas, percebo um gibi.
-Tu gostas de ler, Falcão?
-Adoro TEX. Trouxe dois, tenho uns quarenta lá na minha irmã. Lendo ou varrendo, não posso tá muito tempo parado. Ou as pernas tão ocupadas ou a mente tá.
-Tu lê jornal também?
-Sempre gostei de ler jornal velho, revista. Sempre pedi pras pessoas não botarem fora.
O andarilho com sorriso de guri estudou até a oitava série, na cidade de Rio Grande. Sempre atento a tudo que acontece, o rádio também é seu companheiro. Sem o aparelhinho, se sente pelado, como ele diz. Adora escrever cartas para a rádio local. Diz que vai se candidatar a vereador em 2016. Para isso precisa arrumar os dentes e encontrar um financiador para a campanha.
– E eu vou me candidatar e saio da rua. Não gosto de política, mas gosto de contrariar.
Que nem Sofia, que só não é mais Lessie porque resolveu contrariar Falcão. Com o sol já distante, o andarilho de boné vermelho serve o café num copo de plástico amarelo. Não me oferece. Pergunto a origem do seu nome.
– Falcão é nome que eu ganhei, batizado com um punhal em brasa em meia lua, pelo andarilho mais velho do país, no Ceará, o capitão Satanás.
– O que tu aprendeu com ele?
– Bom, ele me ensinou a conhecer muitas coisas. Me ensinou a conhecer as pessoas só no olhar, de longe de perto, de lidar com todo tipo de bicho.
Talvez Satanás tenha predestinado Sofia na vida de Falcão. De repente, foi o bicho que o andarilho mais soube lidar. E amar. Em setembro, Falcão pretende fazer a última viagem para Porto Alegre. Tô preparando uma carrocinha de madeira. Só falta comprar as rodas. Até lá, ele quer comprar uma máquina fotográfica para registrar o percurso. Quero fazer uma coleção de fotos. Tem gente que duvida.
Vestindo o casaco vermelho xadrez, Falcão vai procurar papelão no contêiner do meio da rua. Com a barriga cheia de ração, Sofia nem hesita em levantar do colchonete. Levanto-me do chão já gelado pela ausência do sol e aceno um tchau para Falcão. Em minha direção, coloca o palheiro na boca e aperta minha mão. O homem de voz rouca e timbre grave agradece a minha atenção. De soslaio vejo o bocejo feliz de Sofia. Até que esse menino é simpático. Aproveitei a conversa e papei todo prato de ração.
Falcão e Sofia, pelo viés do colaborador Felipe Laud*
*Felipe é estudante de jornalismo na UFSM, repórter da TV Campus e do Radiojornal Ecolândia.