Há coisas que o Brasil tenta esconder, mas são mais fortes, se sobressaem. Sempre acaba aparecendo nas entrelinhas, entre uma frase e outra, um pouco de sua personalidade. Uma análise de discurso sobre o que publica na timeline seria um desperdício de tempo com tudo que não vale a pena. Ainda que curioso e hilariante, seria uma perda de tempo. O Brasil é o tipo de pessoa que reflete a mudança do tempo: sua geração não é mais a geração do momento, está livre e despretensiosamente vive uma vida do presente, cômoda, com cada móvel no seu lugar, de segunda à sexta-feira, sem almejar grandes coisas.
O Brasil foi um apedeuta tecnológico e teve de suar frio até aprender a manusear um computador, muito antes de surgirem as redes sociais e o ativismo digital. Não casou, não tem filhos e come salgadinho enquanto rola o feed de notícias do facebook. Apesar do antigo desejo de trabalhar com jornalismo esportivo, acompanhar o time no coração em excursões internacionais, fazer a cobertura de um grande título de dentro do gramado, o contato máximo que tem com esporte é quando a meninada do condomínio resolve jogar bola no estacionamento do condomínio. Aí ele espia pela janela, olha pro seu carro, um Fiat Uno 98 que já teve seus momentos de glamour, olha pra redonda que rola de pé em pé pro delírio dos moleques, volta a olhar pro Uno e não pensa no futuro do país, na alegria do povo e no sorriso das crianças, ele pega o telefone, liga pro apartamento do síndico e reclama que a bola bateu no seu carro, que seu carro foi riscado… Esse é o pensamento do Brasil – cujo sonho mesmo era apresentar o JN.
Depois do texto que fizera a respeito da morte do cinegrafista da Band, o pessoal do sindicato lhe deu alguma moral. Uma dúzia de curtidas em suas postagens subsequentes, é verdade. Uma faculdade do interior o contatara para uma palestra na semana acadêmica. Estava tudo certo até ele defender a Sheherazade. O Brasil estava por cima com seu sucesso nas redes sociais, e se lembrava muito bem de como as coisas aconteceram.
Primeiro, ele havia ido ao supermercado, estacionara o carro fora do estacionamento privativo, em um ponto escuro da rua. Pizza e lasanha de micro-ondas, alguns refrigerantes dietéticos, pão fatiado e patê de frango com ervas finas; prontinho, tudo na sacola. Pagou e nem olhou para a atendente do caixa. Normalmente ele escapava a locais públicos, sabia falar ao telefone com os editores dos jornais, mas seu relacionamento interpessoal era zero. Na saída do supermercado, com as duas mãos ocupadas por sacolas, se aproximou do carro. Ao ouvir o grito de “bem cuidado”, um suor frio desceu-lhe pela espinha e o Brasilzão apressou o passo, mas, opulento que era, não conseguiu evitar o contato. Largou uma das sacolas no chão e começou a procurar a chave no bolso, deixando cair algumas moedas. A chave batia na fechadura da porta e demorou segundos para se acomodar e liberar a porta. Estava cego, surdo e mudo. O Brasil jogou as compras no banco do carona, ligou a ignição e arrancou o carro sem dizer pensar duas vezes. Pelo retrovisor, avistou um menino, devia ter uns trezes anos, recolhendo as moedas que deixaram no chão e ao fundo, uma mulher com uma criança no colo reparando o que o menino fazia. Dois bandidinhos, pensou enquanto ligava o sinal para entrar à direita. Dois bandidinhos que já poderiam estar presos.
As redes sociais, especialmente a timeline do Brasil, estavam tomadas por um sentimento de revanche. Todas as pessoas que uma vez foram assaltadas na rua, tiveram algum pertence furtado, o carro arranhado, foram abordadas por algum flanelinha na saída de uma festa ou que tiveram que tomar um taxi com receio de andar duas quadras de madrugada, tinham uma nova representante oficial. Depois de lançar a campanha do “adote um bandido”, o Brasil começou a parar mais no noticiário do SBT nas zapeadas com o controle na mão. Os comentários da apresentadora Raquel Sheherezade eram o que pautava suas lamúrias bombásticas de diversos caracteres no facebook. Era ela bonita, falava bem, e ia direto ao ponto, pensava o Brasil, se tivesse com o nome vinculado a alguma sigla partidária, não teria Dilma, não teria para ninguém. Ele lembrava muito bem da cena, aquele menino negro, de uns dez, doze anos, amarrado com uma trava de bicicleta ao pescoço, nu, em um poste, exposto ao calvário da sociedade. Era isso que se precisava! Um contra-ataque, mostrar quem tem a força e quem manda afinal neste país. As palavras da Shaherezade embalavam delírios da cadeira de escritório que já tinha seu velho chassi detalhado no estofamento: “contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”. Para Brasil, aí estava o obstáculo à ordem e ao progresso. Escreveu no feed que estamos criando bandidos como quem cria galinhas no quintal, e que a cada moeda jogada a um sem-teto, um cidadão de bem que paga todos os impostos arca com o prejuízo com sua família. Foram dez curtidas em cinco minutos. Levantar a bandeira a favor da redução da maioridade penal era a estratégia populista do Brasil.
O Brasil ia para a assessoria de imprensa em que trabalhava às dez horas da manhã. Era dele a tarefa de fazer a clipagem nos cinco jornais da cidade. Ele chegava e gostava de ver o café pronto, dava um bom-dia geral aos colegas, esboçava um sorriso para a chefia, e ia esfregando a pança pela mesa onde ficavam os jornais. Olhava o quadro e mapeava na cabeça os clientes, as pautas e as devidas editorias. Não raro, alguém se levantava no mesmo minuto que chegava o email que o Brasil mandava com a lista de publicações do dia, ia em frente à mesa de clipagens e retirava uma folha do jornal e colocava em sua mesa. O Brasil andava meio relapso com o trabalho, desatento, com o facebook sempre aberto e deixando passar batido seu dever. Neste dia, em conversa animada com toda a equipe, saiu-se com a frase: “o Estado é omisso, a polícia desmoralizada, a justiça é falha, o quê que resta ao cidadão? A atitude dos vingadores é compreensível”. Estava repetindo exatamente as mesmas palavras da apresentadora. Este assunto da violência estava em looping na sua cabeça desde este dia. Lembrou da vez que foi assaltado, quando ainda se arriscava a andar a pé do trabalho até o condomínio América Latina, onde morava. Decidiu que comprar uma arma, nem que fosse aquela indicada pelo zelador do prédio, do primo do cunhado de um amigo que agora estava no crack e estava vendendo tudo dentro de casa – uma barbada! Lembrou do referendo da proibição do comércio de armas de fogo e munições, de toda o boca à boca e boca de urna que fizera pela não proibição, da vitória pessoal, e os gloriosos tempos de glória do Inter.
A noite era sempre uma caixa de surpresas. O Brasil ficava atormentado, resguardado em seus domínios, em meio à poeira e as embalagens plásticas de comida pré-pronta. Ele sentiu aquela brisa amena de fim de tarde, com o vento uivante e o céu relampejante, e decidiu fechar a janela. Estava quase na hora do SBT Brasil quando começou a girar a timeline e viu a notícia de que a emissora proibira os comentários da Shaherezade. Não poderia ser verdade! Que segunda-feira! A embaixatriz da moral, dos bons costumes e da família estava com seus direitos sendo retalhados. Para o Brasil estava claro, era uma caçada a quem realmente tinha opinião e personalidade no telejornalismo brasileiro. Respirou mais uma vez fundo e caprichou naquele texto bomba, carregado de informações e reprimendas com o texto em caixa alta. Nas tags, desta vez, estava uma crítica ao sindicato dos jornalistas amalgamada com os PTrálias, os black-blocs, o marginalzinho, e as hashtag #Estadoomisso, #estadodeviolência, #violênciaendêmica, #adoteumbandido. Dessa vez não sobrou pra ninguém, nem para a Globo e a silhueta do Zeca Camargo.
Enquanto o Brasil existia em sua vida média de classe média, um helicóptero com quase 450 kg de pasta base de cocaína, vindo do Paraguai, com escala em um hotel de luxo de Minas Gerais e prisão em flagrante pela Polícia Federal no Espírito Santo, que pertencia a um senador tucano, com fortes ligações com um a esta altura presidenciável, fora apreendido e todas os envolvidos soltos sem sequer pagarem fiança ou responderem a qualquer coisa em tempo recorde. Aquilo sim que era Fantástico!
O Brasil de março-abril, pelo viés de Calvin Furtado.
Leia também os demais textos da série clicando aqui.