Bixos, calouros desumanizados

Você está no terceiro ano do Ensino Médio. Está há tempos estudando em algum cursinho pré-vestibular. É um trabalhador que voltou a estudar depois de anos longe dos polígrafos. Depois de um esforço continuado, a barreira que o separa da Universidade foi suplantado: o vestibular. Superado esse obstáculo – arduamente por muitos –, é chegado o momento de comemorar a conquista e planejar o seu futuro profissional. Será o caminho de casa à Universidade tão simples?
Inicialmente, no alvorecer das primeiras universidades europeias, foi motivada, por questões de higiene, a separação entre veteranos e calouros; em meados do século XIV, no entanto, o costume hoje conhecido como trote começou a assumir traços violentos. No Brasil, a prática foi introduzida ao longo do século XIX por filhos das elites, que estudavam na Europa, notadamente em Portugal, país em que o trote estudantil ainda é muito presente nos círculos universitários.
Trespassando alguns séculos até o presente, vemos, no início de cada semestre, milhares de calouros adentrando nas universidades brasileiras imersos em dúvidas e sonhos. Como se o vestibular não fosse o atestado de aptidão suficiente para frequentar esse ambiente tão vasto, surge o trote como mais um entrave rumo a essa realização. Alguns podem imaginar ser essa abordagem insistente um exagero, visto que os trotes são uma tradição consolidada e, além do mais, estão sendo progressivamente atenuados. Portanto, na visão destes, não há necessidade de rediscutir as formas de integração dos calouros às comunidades acadêmicas.
Para esses, é de bom alvitre recordar um caso ocorrido no recente 2013 em uma das mais renomadas instituições de ensino superior estabelecidas no país – a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma caloura do curso de Direito (pasmem!) foi acorrentada, teve o corpo pintado de preto e um cartaz preso junto ao corpo em que se lia: “Caloura Chica da Silva”. É o racismo imiscuído na mente daqueles que terão pelo menos um dos Poderes nas mãos futuramente – o Judiciário. A consequência final disso tudo nós já conhecemos de longa data – marginalização do negro no interior da sociedade brasileira, resistência às cotas raciais, Caso Amarildo e o de tantos outros “ildos” Brasil afora.

Foto de veterano e caloura compartilhada no Facebook e originalmente publicada em www.viomundo.com.br
Foto de veterano e caloura compartilhada no Facebook e originalmente publicada em www.viomundo.com.br

Refrescada a memória, um dos argumentos suscitados por aqueles que não conseguem compreender a complexidade por trás da estrutura do trote é de que ele não é obrigatório. Em outras palavras, submeter-se aos desmandos dos veteranos seria uma expressão da própria liberdade, uma ação deliberada e consciente. O fato é que não é. Os calouros são induzidos a fazer o que bem querem os seus veteranos por meio de mecanismos muitas vezes sutis. Da aceitação, surgem as promessas de integração. Da recusa, surgem pequenas ameaças e é incutido o desejo, nos novatos, em pertencer a um determinado grupo autodenominado como soberano. É apenas uma brincadeira boba, dizem alguns. A rejeição a essa inocente pândega é falta de bom senso daqueles que a repudiam, dizem os mesmos. Desse modo, enfim, revela-se a espiral do silêncio descrita pela cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann – a tendência de uma opinião minoritária não ser manifestada em um ambiente hostil a tal pensamento. Todo o aparato é construído ardilosamente para que essa prática medieval perpetue-se, incólume e censurando tacitamente seus críticos, nos círculos acadêmicos como um – falso – rito de passagem.
Em verdade, o trote não é um rito de passagem. É um rito sadomasoquista. Em sua essência, está o desejo de se estabelecer relações de poder. Os veteranos, desde já instilando o sentimento de vingança, são os soberanos; os calouros, por sua vez, são os bixos — privados da própria condição humana a que todos, exceto eles, estão fadados. Com o orgulho ferido, já podendo assumir-se como seres humanos, os calouros obterão a autorização, finalmente, de desfrutar, como prêmio, o revide. No ano seguinte, quando o prato da vingança já se encontrar frio, as agressões psíquicas e físicas que os então calouros sofreram poderão ser replicadas nos calouros vindouros. Assim, cria-se um ciclo que se sabe como começa, mas não como termina. Alguns, nada de grave – a curto prazo – ocorre; em outros, jovens como Edison Tsung Chi Hsueh, calouro de Medicina na USP no ainda fresco 1999, são privados, não da condição humana, mas da própria existência.
No Brasil, não existe nenhuma legislação federal específica que regulamente/proíba o trote estudantil – projetos de lei sobre o tema tramitam no Congresso Federal desde 1995. Daí percebe-se a dificuldade de se combater uma prática que se arrasta durante séculos e é vista com omissão, conivência ou, muitas vezes, com o consentimento e incentivo explícito por parte do corpo discente e docente das universidades e até mesmo da própria sociedade.
Na UFSM, uma resolução (nº003/2000) regulamenta a recepção aos calouros da UFSM. A supracitada resolução proíbe, de maneira expressa, a prática prevista como trote. Evidentemente, a resolução é sumariamente ignorada pela ampla maioria dos corpos discente e docente – ou contornadas através das brechas existentes, se não propositais, convenientes. Mostra-se, uma vez mais, o quão enraizado em nossa cultura está o trote universitário e a falta de disposição das autoridades competentes em combatê-lo.
Claro é que a simples responsabilização de congressistas e reitores não solucionará a questão. Muitos calouros, amedrontados ou ávidos pela aceitação coletiva, submetem-se às arbitrariedades impostas por aqueles que se apresentam como superiores – para um centro do saber, a hierarquia mais se assemelha a de um centro militar. Ainda há outros que acreditam, ingenuamente, estarem participando da roda da fortuna universitária. Ou seja, que se hoje eles são troteados, amanhã serão os troteadores – e assim a vida segue.
Como solução, muitos assinalam, por exemplo, para medidas de “humanização” do trote, como o famigerado trote solidário. Nada mais inútil e hipócrita. A própria etimologia da palavra já denuncia sua natureza. É o bixo, servil, troteado a base de chicotadas metafóricas, pelos veteranos. Em um cenário de anuência voluntária do oprimido, é difícil deslumbrar uma solução em curto prazo que não seja destinada ao fracasso.
Certo, porém, é que a conscientização dos direitos dos calouros é necessária e deve partir de dentro dos próprios colegas, em conjunto com o Diretório Central dos Estudantes, respectivos diretórios acadêmicos, corpo discente (obrigados a participar, a partir da já citada resolução nº003/2000, aliás, da recepção aos calouros) e corpo docente.
Nessa breve explanação sobre o assunto, percebe-se que não, o caminho de casa até a Universidade não é simples. Até sua extinção, o debate acerca do trote não só não se esgotará como não deve deixar-se apagar. Não basta que a discussão se trave apenas no início de cada semestre: o debate em cima da integração dos calouros nas universidades brasileiras se mostra cada vez mais urgente e deve ser fomentado persistentemente no âmbito acadêmico, além de discutido pelos mais diversos setores que compõem a sociedade.
A Universidade deve se constituir como um baluarte que se propõe a construir a sociedade do conhecimento; a instituição que catapulta a Nação para além do que já foi feito. A elaboração de um espaço plural, democrático, que respeita a autonomia e independência de seus integrantes deve ser priorizado e pautado, não apenas, mas desde o início da vida acadêmica do aluno.
Bixos, calouros desumanizados, pelo viés do colaborador Dario Trevisan de Almeida Filho*
*Dario é calouro do curso de Direito da UFSM

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