Alice escorregou e caiu na arte de Fernanda

A artista Fernanda Rosado e uma de suas Alices. Tinta acrílica sobre tela. Foto: Bibiano Girard.

Em uma viagem de navio pelo Rio Tâmisa, na Inglaterra do ano de 1862, o jovem Charles Lutwidge Dodgson, com exatos trinta anos, tinha como companhia três irmãs, filhas do Reitor da Christ Church. Uma delas, Alice Liddell, com 10 anos na época, ficou encantada ao ouvir de Charles a história de uma menina que, após cair no buraco de um coelho, vai parar num mundo onde criaturas estranhas convivem com flores falantes. Na mesma terra, existe uma rainha decidida a cortar a cabeça de quem a contraria. A pedido da menina, o contador de histórias sentou em frente à máquina de escrever, e só parou quando dera nome ao monte de folhas que trariam aos leitores, dois anos depois da viagem, uma estonteante narrativa: As Aventuras de Alice Embaixo da Terra.
Quando Fernanda abriu seu pequeno mundo repleto de imagens coloridas e tecidos desenhados, em 2014, um pouco de Alice parece ter surgido de alguma toca de coelho que se escondia pelo quarto, no oitavo andar da Casa do Estudante universitário da UFSM, no Centro de Santa Maria. Ali, sobre a cama, estavam empilhados desenhos, traços, tecidos e cores de um país delirante, onde naipes de cartas estão por toda parte. Até mesmo a xilogravura – técnica artística onde o desenho é talhado na madeira, assim como um carimbo – preto e branco, pendurada na parede, delineia um corpo feminino repleto de tatuagens em forma de naipes.
A arte a partir da xilogravura, por Fernanda Rosado. [Clique na imagem para ampliá-la].
“Como eu posso explicar Alice?”, se questiona a própria artista. “Sempre vivi com o mundo dela na memória, desde pequena. Desde quando me lembro de assistir o filme ou vir coisas relacionadas a ela, convivo com este imaginário. Não tem um início, assim, demarcado. O que tem são os trabalhos, os desenhos”, diz Fernanda Rosado, que cresceu em meio a folhas e desenhos. Seu pai, Zamir, morador de Rosário do Sul, na Campanha gaúcha, é um desenhista de mão cheia. Há anos, o pai de Fernanda desenha a revista Satiricom, distribuída pela cidade. “Eu nem consigo lembrar quando comecei a desenhar. Era natural, sabe?”
Fernanda é estudante de Artes Visuais na Universidade Federal de Santa Maria desde 2011. Como ela mesma explica, não adianta tentar encontrar um início para a relação dela com sua mais reproduzida modelo. Não são imitações ordinárias, muito pelo contrário. A cada serigrafia que exibe, Fernanda conta como chegou até aquela ideação. Na sequência de imagens que vai tirando da pilha inicial sobre a cama, surgem Alices de todos os jeitos. Não apenas a Alice de Lewis Carroll, codinome de Charles, mas várias Alices em diferentes formas e contextos. À mesa, com semblante inocente em frente a um bule e uma xícara, ou sozinha, colorida na arte de Fernanda. Tudo ali transpira a fantasia do livro nonsense escrito em uma época de sisudez social.
O trabalho artístico que Fernanda exerce desde quando nem se lembra, é baseado nas proximidades que a estudante tem com a obra, mas, além disso, vai a fundo quando a questão é embasamento teórico e pessoal. “Somos todos um pouco Alice. Eu sempre pensei assim. Aquela história de crescer, mas diminuir, esse jogo com o tamanho entre ser adulto e também pequeno, é a pura sensação da vida, no dia a dia. Quantas vezes somos grandes para algumas coisas e minúsculos para outras? É uma obra nonsense, mas é, com literatura, uma fantasia para nos descrever, ou aquilo que a gente sente”.
Para enriquecer sua percepção não só sobre o livro, mas sobre “tudo que envolve esta história”, foi preciso realizar uma pesquisa que parece sem fim e sem começo. Existe enquanto Fernanda tem interesse pelo mundo fantástico de Alice, e assim existirá. Mas para exercer a criatividade, foi preciso fincar bem o pé no mundo real. E ler sobre épocas passadas, como a Inglaterra da Era vitoriana, para entender como, por que e qual conceito recebeu a obra por parte do público leitor da época, acostumado às fábulas, que tinham como fim um ensinamento de caráter instrutivo: “as obras infantis até então tinham um lado mais pedagógico”, lembra Fernanda. Carroll, entretanto, foi além. “É uma obra nonsense, diferente daquelas que chegavam ao público. É o diferente, o extraordinário mesmo”.

  
  
 
[Obras acima referidas: 1. Colagem e aquarela sobre papel com sobreposição de papel vegetal e caneta nanquin. 2,3 4. Tinta acrílica sobre tela. 5.  Serigrafia em papel. 6. Pesquisa realizada para xilogravura – xilogravura policromada.

A artista, com um caderno de capa macia nas mãos, explica que nem tudo o que faz está ligado diretamente a Alice. O caderno é onde ela monta uma proposta, isto é, onde junta tudo que possa enriquecer a pesquisa e seu trabalho. Fernanda resolve abrir um tecido verde estampado com ramos, que até então estava dobrado sobre a cama. “As folhas, os galhos, cada cor que compõe a composição final da estampa é impressa por vez através da técnica da serigrafia manual, usando uma tela”. Usa-se também o rapport, que é o módulo que usado no design de superfície, que acaba dando uma sensação de continuidade e harmonia à estampa. No trabalho de serigrafia, Fernanda usou como referência o artista inglês William Morris, com suas estampas florais, que usava em papéis de parede bordados e tapeçaria, entre outros trabalhos produzidos manualmente. O artista era influenciado pela arte medieval, quando tudo era produzido artesanalmente.
O nome William é o primeiro a surgir no caderno cheio de recortes de tecidos floridos.  E Fernanda chegou a ele porque, contemporâneo a Lewis Carroll, Morris propunha uma produção artística mais artesanal, visto que, naquela época, a Inglaterra se industrializava e se tornava mais mecanicista. “Morris buscava criar suas estampas e tecidos a partir de moldes, e um a um ia montando a estampa feita à mão. Ele queria contrapor aquela coisa repetitiva que via acontecer na arte do período industrial”.

Estudos feitos com aquarela e caneta naquim. [clique para ampliar]
Assim, Fernanda foi se familiarizando tanto com o livro de Carroll quanto com os costumes e a vida social da época. Foi preciso entender a Inglaterra vitoriana, que começou em 1837, com a ascensão da Rainha Vitória ao trono, e que terminou com sua morte, em 1901. Assim, além de se situar no tempo cronológico, a estudante encontrou, durante a pesquisa, um mundo inglês que ocorria na mesma época na qual Lewis Carroll escreveu Alice. A Rainha Vitória e seu reinado, conforme afirma Fernanda, deram ao narrador a silhueta de uma sociedade moralista que ele resolveu infringir, escrevendo uma história que pela primeira vez quebrava com a noção doutrinadora da infância.  “Quando Alice chegou às pessoas, foi um susto. Imagina só, com aquela história, contada daquela maneira, o livro surgia entre uma sociedade cheia de moralismo, retinha, severa. Era tudo muito alinhado, disciplinado”.
Atravessando o Canal da Mancha, Fernanda foi buscar em Maria Antonieta, a rainha amada e odiada pelos franceses do século XVIII, a inspiração para trabalhos mais ligados à estamparia em tecidos. Foi assim que cultivou também um carinho de pesquisadora sobre esta outra figura do imaginário popular ocidental. Mas é a partir de Alice que surgem todos os outros empenhos em trabalhar com arte. É uma história que atravessa décadas e décadas, sempre se renovando, jamais datada. De um livro escrito em 1864, surgem das mãos de uma artista, em 2014, uma criatividade nonsense. Se depender da arte de Fernanda,  Carroll e sua história permanecerão eternos. Mesmo que o eterno possa durar apenas um segundo.

  
 1. Pesquisa realizada para serigrafia. Serigrafia em tecido para almofada. 2. Serigrafia em papel e projeto acrílica sobre papel kraft. 3. Caderno de pesquisa realizado no Ateliê de design de superfície e estamparia.

Alice acabou escorregando e caindo na arte de Fernanda, pelo viés de Bibiano Girard

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