Rincão do Inferno, uma terra mítica

Foto: Lisandro Moura
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A região do Rincão do Inferno constitui-se como um dos quatro núcleos populacionais do Quilombo de Palmas, junto com Rincão dos Alves, Campo do Ourique e Rincão da Pedreira. O território foi reconhecido como região quilombola a partir do laudo sócio-histórico e antropológico realizado por pesquisadores(as) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Localiza-se na microrregião de Palmas, distrito de Bagé, quase divisa com Caçapava do Sul, Lavras do Sul e Santana da Boa Vista. Ao todo, segundo Janaina Lobo e Bertussi (2010, p.207), cerca de quarenta famílias residem no Quilombo de Palmas, “fortemente articuladas através de relações de parentesco e pela manutenção secular de trocas simbólicas, desde o período pós-abolição”.
Dentre essas famílias, somente uma vive no núcleo Rincão do Inferno: Dona Onélia, Seu Alcíbio e Seu Nidinho, que passam os dias e noites acompanhadas do porco de estimação chamado Baby, dos cachorros Alambique, Vigilante, Urso e Miúcha, dentre outros animais. Uma grande e bela família.
Foto: Lisandro Moura
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O Rincão do Inferno é, hoje, considerado um lugar de forte potencial turístico para a população gaúcha e motivo de muitas reportagens originadas de relatos admirados de viajantes aventureiros que adentram aos mistérios e à beleza da paisagem intocada. O Rincão é um paraíso disfarçado de inferno.
Mas a tradição do lugar nos ensina que, aquele que está disposto a se aventurar nas terras quilombolas do Rincão, precisa manter uma postura de peregrino. A peregrinação representa a ideia de que é preciso caminhar para ver/conhecer. O peregrino faz do seu próprio caminho o objeto principal da viagem. O turista também caminha, mas algumas vezes superficialmente. O psicólogo Yves de La Taille (2009) caracteriza muito bem esses dois tipos de viajantes. Segundo ele, o turista viaja por recreação, e seu tempo de viagem é um tempo programado. Não costuma dar atenção aos detalhes, aos objetos, e tampouco se importa com a história, as condições sociais, naturais e culturais do local. Assim, limita sua viagem ao prazer e conforto dos espaços de consumo já destinados a ele. Já o peregrino é diferente: viaja porque quer buscar alguma coisa, uma identidade ou uma experiência de vida.
Viver a experiência e participar do cotidiano simples dos moradores do Rincão é também uma forma de conhecer e aprender. A vivência no Rincão nos ensina a partilha da vida, do alimento, das histórias que se transformam em sabedoria popular. A convivência com a natureza e com os animais transforma-se numa mística, marcada pelo acento ritualístico, presente praticamente em todo o cotidiano dos moradores. Os rituais promovem uma espécie de retorno ao tempo da unicidade primordial, quando os humanos e a natureza viviam em constante comunicação e interação.
Foto: Lisandro Moura
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Dentre as situações presentes no Rincão, os causos ocupam um papel importante, como os da cobra papa-pinto, o do lobisomem, o do tesouro enterrado, a história das bordolezas… Dentre essas, certamente a da cobra papa-pinto é a que causa mais espanto nos visitantes peregrinos. Certa época, quando amamentava uma de suas filhas, Onélia tinha o costume de pegar no sono. Acontecia que vinha sempre uma cobra sugar o leite do seu peito, colocando o rabo na boca da criança, sem que Onélia percebesse. Certo dia, Alcíbio viu a cena e deu uma “machadada” no meio da serpente, que jorrou leite para todo lado (!).
Não se pode compreender adequadamente a sociabilidade de um determinado espaço sem estas situações imperceptíveis, aparentemente triviais, que compõem o imaginário do Rincão. Pois é a relação dos moradores com o lugar, relação entre natureza e cultura, que dá solidez à formação comunitária e que serve de base para a sobrevivência. A espacialidade quilombola é o elemento importante na constituição da comunidade, pois oferece as condições necessárias para a reprodução do modo de vida do homem e da mulher da tradição.
Além dos causos, provavelmente os visitantes ouvirão também o som das cordas do violão, tocadas com maestria por Alcíbio. Porque o Rincão soa como música, soa com a música. As cordas sonoras evocam imagens-lembranças de um passado arcaico, ainda presente nas nossas representações. O timbre da viola é agudo e forte, as cordas parecem distorcer o som, dão o aspecto chiado como se estivéssemos ouvindo o rádio ao longe, o antigo rádio. Traz-nos lembranças da vida no campo, a vida que nunca vivemos, mas desejamos viver. Alcíbio não se cansa de dizer aos visitantes: “eu aprendi a tocar violão ouvindo radinho de pilha. Meu sonho era ter um rádio de tomada pra poder tirar as músicas do rádio.” Depois da chegada da luz elétrica, em 2006, finalmente ele virou um cantor de amplo repertório.
Foto: Lisandro Moura
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As histórias de vida contadas por Alcíbio, Nidinho e Onélia revelam um ambiente complexo e ambíguo, onde há lugar tanto para os problemas de estrutura local (por exemplo, a distância em relação à cidade, a dificuldade de atendimento médico em caso de urgência, estrada precária etc.) quanto para questões afetivas, de solidariedade, bastante presentes na personalidade e no modo de vida dessa pequena população.
Os moradores demonstram uma inegável riqueza existencial, uma bondade extrema difícil de ver em qualquer lugar. Bondade essa que, paradoxalmente, convive com as adversidades da vida. Porque a vida não é fácil para os moradores do Rincão. Mas, estranhamente, o que chama a atenção nas nossas visitas e nos relatos de viajantes, é que da precariedade das condições materiais pode surgir os grandes ensinamentos sobre o amor, a alegria e a compaixão. Todos que lá estiveram sabem muito bem disso.
É justamente esse imaginário afetivo e solidamente arraigado que assegura a prosperidade coletiva das terras no Quilombo de Palmas. A demarcação do território, para os quilombolas, vai muito além daquela legitimada pela institucionalidade do Estado, e transcende as áreas reconhecidas formalmente como “propriedade privada”. Pois trata-se de uma “terra mítica”, um lugar espiritualmente relevante que remete à memória dos antepassados. O reconhecimento vem da experiência vivida num passado mítico que perdura através dos costumes ancestrais e da tradição oral. São, portanto, códigos cosmológicos distintos da razão econômica ou de Estado. Algo que os depositários da fé desenvolvimentista e mercantil não podem compreender e nem aceitar.
Foto: Lisandro Moura
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No Rincão estão presentes todos os elementos fundamentais da natureza: ar, água, terra e fogo. O Rio Camaquã traz repouso, fluidez e bem-estar para todos os que contemplam seu espelho. O fogo de chão está sempre acesso, à espera de um bom papo e de um assado. E o vento que balança as árvores traz lembranças dos que se foram. Mas talvez o Rincão seja mais bem simbolizado pelo elemento terra, por seu caráter de resistência. A terra-território assegura um povo no seu lugar de origem e de destino. O apego à terra é típico da cultura do gaúcho, já estudado e constatado por Barbosa Lessa (2008). O solo do Rincão é duro, forte, rochoso. A terra é resistente, assim também como as pessoas que nela vivem. É ela que liga o ser ao mundo, que nos enraíza e nos convida a viver o mundo na sua intimidade. Acompanhar os moradores do Rincão nas suas tarefas diárias, por exemplo, é um convite ao enraizamento à terra.
Foto: Lisandro Moura
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Portanto, o Quilombo enquanto terra-território é arquétipo dos refúgios coletivos. É no Quilombo que as pessoas encontram a familiaridade afetiva, o repouso, a tradição e a amizade que tornam a vida admissível, apesar das adversidades. É a reapresentação figurativa da resistência negra, símbolo do anseio pela liberdade. Os sonhos de liberdade ainda são frequentes no Rincão do Inferno, seja na mata, na casa, no rio, no canto do galo ou no voo dos sabiás… O Rincão é a dialética do inferno e do paraíso. Nele, o passado ecoa através da paisagem natural. Para perceber isso, há que ser peregrino.
Referências
LESSA, Barbosa. Nativismo, um fenômeno social gaúcho. 2ª. ed. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2008.
LOBO, Janaína; BERTUSSI, Mayra. O Legal e o Local: relações de poder, conflitos e a titulação da terra na comunidade quilombola de Palmas/Bagé RS. Caderno de Debates Nova Cartografia Social – Territórios quilombolas e Conflitos, 2010.
LA TAILLE, Yves de. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.
 
Rincão do Inferno, uma terra mítica, pelo viés do colaborador Lisandro Moura*

*Lisandro é cientista social formado pela UFRGS, mestre em Educação pela UFPel e professor de Sociologia do IFSul Câmpus Bagé. Desenvolve pesquisas sobre o Imaginário e a dimensão simbólica das experiências de (auto)formação na educação. Trabalha em projetos voltados para as culturas populares e tradicionais do sul do Brasil e suas relações com o ensino de Sociologia. Mantém o blog http://lisandromoura.wordpress.com/

2 comentários em “Rincão do Inferno, uma terra mítica

  1. Estou publicando para um casal de amigos Vany Franco e José Franco Nota de esclarecimento
    As pessoas que visitam o Rincão do Inferno e utilizam o caminho por dentro de propriedades particulares e estão causando danos ao campo com enormes buracos e atoleiros,prejudicando também os animais que nesta época estão com cria e se assustam com os barulhos dos carros e saem em disparada deixando seus filhotes perdidos,além de porteiras abertas.Atualmente estamos com grande problemas,não conseguindo inclusive sair ou entrar em nossas propriedades devido aos buracos causados pelo trânsito nos dias de chuva.Esta passagem utilizada é tão somente para os moradores desta localidade ,”UM ACORDO ENTRE VIZINHOS”.Os visitantes devem procurar uma estrada pública ou combinar com os proprietários.Vimos nas redes sociais convites para visitar o Rincão do Inferno,não sabemos quem publicou.
    Contamos com a tua colaboração!

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