Há alguns momentos em que a esquerda tem especial compromisso de dizer seu nome de forma muito clara. Períodos em que estão no poder governos de centro, mais carregados de contradições do que a média, são momentos assim. Períodos em que essas contradições se acirram, como a promoção de megaeventos, também. Quem atua politicamente neste junho/julho de 2014 carrega esses dois pesos ao mesmo tempo. Há, portanto, a necessidade extremamente potente de que a esquerda diga em alto e bom som seu nome, para que seu discurso e suas ações não se confundam com os discursos e ações da velha direita, em parte mantida no poder, em parte alijada dele, e sempre sedenta por ver-se livre das contradições que lhe são impostas por governos de centro.
É preciso compreender essa situação – que é a situação brasileira atual – para compreender a abordagem que a mídia dominante tem apresentado em relação ao tema da Copa do Mundo 2014 e de suas implicações. O maior campeonato de futebol do mundo começou com esse setor midiático tecendo diversas críticas ao governo, mas críticas sem o caráter libertário e anticapitalista que integra as falas dos movimentos populares e das organizações de esquerda preocupados com os prejuízos causados ao povo pela exacerbação do capitalismo trazida na garupa da Copa.
De um lado, os protestos populares – massivos ou isolados, coletivos ou individuais – e as mídias alternativas apresentam um panorama preocupante de violações de direitos da população e das próprias leis brasileiras. Remoções, elitização das cidades e dos estádios, avanço na privatização de espaços públicos, policiamento ostensivo, repressão violenta autorizada, e outros problemas do tipo são as preocupações que pautam a crítica desses grupos à organização da Copa do Mundo no Brasil. São preocupações fundamentalmente originárias de uma submissão do Estado brasileiro a um conglomerado de empresas multinacionais, capitaneadas pela Fifa. O que se defende, nesse caso, é a soberania do Estado brasileiro e a soberania do povo brasileiro sobre esse Estado – algo impossível enquanto tivermos um Estado burguês, é verdade, mas cuja perspectiva se afasta do horizonte em momentos de megacapitalismo como esse.
É exatamente oposta a essa defesa a linha das críticas tecidas à organização da Copa pela mídia hegemônica. Os ataques são pautados essencialmente no apelo a mais submissão. Com caixas altamente encorpados por patrocínios ligados à Copa do Mundo e interessados, como a velha direita, em eliminar o maior número possível de intermediários e assenhorar-se do poder, os conglomerados de comunicação gostariam de ver o Estado com os joelhos ainda mais dobrados aos grupos privados nacionais e internacionais. A insistência na ideia de “deixar nos estrangeiros uma boa impressão” tem muito a ver com isso. Pouco importa, nessa linha de pensamento, o Brasil que fica para a maior parte dos brasileiros. Importa, apenas, o Brasil que se mostra aos estrangeiros de nascença e aos brasileiros que, tão acima na pirâmide social se mantêm, que vivem como estrangeiros no próprio país.
É esse o pano de fundo da cobertura que a mídia dominante tem feito desde o pré-Copa e agora Copa adentro. As críticas que apresentam não trazem reivindicações populares, mas elitistas. Não trazem o ataque à Fifa e ao Estado que a ele se submete, mas a defesa da Fifa, de seus parceiros, e de mais submissão. Nesse sentido, as manifestações populares são tratadas como alienígenas ou radicais em um momento em que se deveria, de acordo com essa mídia, fazer um bonito evento para os convidados, mesmo que depois da festa a sujeira fique toda para o povo limpar, e os cartazes que tapam os buracos das paredes tenham finalmente que ser retirados.
Há um processo forte de criminalização dos protestos por parte da mídia das elites. Manifestações que não são ignoradas são marginalizadas. As contradições sociais se impõem sobre a alienação, e o Estado – e o governo – é jogado de lá para cá. De um lado, os interesses empresariais, incluindo os midiáticos, internacionais e nacionais, e a velha direita institucional, espalhada por diversos campos sociais – do Exército aos partidos. Do outro lado, as necessidades do povo, os movimentos populares, a mídia alternativa, as organizações da esquerda. Quando o governo e o Estado pendem à direita, a mídia hegemônica comemora, mas pede sempre mais. Mais repressão, mais submissão, mais autoritarismo. Quando os atores que se situam do outro lado aumentam a pressão sobre o governo, passam a ser também objeto de ataques por parte dos que estão no extremo oposto, e é justamente ali que se coloca esse setor midiático.
Portanto, aparece no discurso dessa mídia uma mistura entre três elementos: o oba-oba que costumeiramente marca a cobertura esportiva da mídia esportiva brasileira e, de modo geral, a cobertura de grandes eventos culturais – pautada por interesses de patrocinadores e por uma prática intrínseca de propagação de um discurso simplificador e alienante; os ataques ao governo por este não avançar ainda mais à direita e por não submeter ainda mais o Estado a interesses privados; e, finalmente, os ataques aos diversos grupos e atores sociais e políticos que constroem a crítica pelo outro lado, contrariando de forma ainda mais profunda os interesses oligárquicos.
Mídia hegemônica e Copa do Mundo: contradições, pelo viés de Alexandre Haubrich*
*Haubrich é jornalista, cientista social e editor do blogue JornalismoB e do JornalismoB Impresso, jornal independente distribuído gratuitamente nas ruas de Porto Alegre e, através de assinaturas, para todo o Brasil. Colabora com diversas publicações, entre elas a revista o Viés. Leia outros textos publicados por Haubrich na revista o Viés aqui.
*Esse texto foi originalmente escrito para ser publicado no dossiê sobre a Copa do Mundo elaborado pela Ancop (Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa), previsto para setembro.
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