O movimento ideológico imposto pelo capitalismo planetário em direção ao dito mercado globalizado abarcou também a educação. Distintos avanços foram empreendidos ao longo das últimas décadas mostrando a voracidade do mercado financeiro por sobre o sistema educacional nos países “em desenvolvimento” ou “em transição”.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, no capítulo em que trata da Educação, abre a porta para o processo de financeirização. O artigo 209 da Carta Magna brasileira vaticina “o ensino é livre a iniciativa privada”. E isto não se mostrou uma simples redação; claramente ocorreu o aumento vertiginoso da presença de instituições privadas com fins lucrativos tanto em número de instituições quanto em número de matrículas.
As instituições com fins lucrativos que inexistiam até 1988, somavam 1583 em 2006; enquanto que as privadas sem fins lucrativos se mantiveram num crescimento razoável – de cerca de 250 em 1988 para pouco mais de 400 em 2006 – acompanhando os reflexos da expansão universitária em curso no Brasil.
Aqui cabe estabelecer duas distinções. Primeiro que a financeirização e mercantilização da educação superior não se expressa apenas pela presença ampliada da iniciativa privada como “dona” de instituições. Em segundo lugar, que os reflexos mais impactantes deste processo de ajuste aos ditames do mercado se dão justamente na rede de ensino federal, pública portanto; que inclusive tem crescido visivelmente nos últimos anos.
Sobre o tema da primeira ressalva – a rede privada de ensino superior – não tratarei detalhada ou diretamente aqui.
A universidade brasileira, enquanto instituição, é relativamente jovem se comparada com boa parte das academias da Europa. Aqui, como em toda a América Latina, e boa parte da Ásia e da África, o discurso bancomunidalista aponta como imperioso que as universidades se “modernizem” e possam contribuir com projeto de “integração nacional” ao mercado mundial.
Os documentos do Banco Mundial (BM) são taxativos quanto ao que se deve fazer: é preciso romper com todo e qualquer anacronismo que bloqueie o processo de modernização, entendida então como a mercantilização plena do ensino. Textos clássico do Banco Mundial como o de 1994 “Ensino Superior: Lições da Experiência” ou o de 2002 “Construindo sociedades do conhecimento: novos desafios para a educação terciária”, entre outros explicitam o papel e a função que deve ter o sistema universitário nos países considerados “em transição”
Os ditames bancomundialistas tendem a nomear contextos e enclausurar discursivamente os governos dos países aos quais prescrevem suas receitas. Outorgam a si a autoridade de quem sabe o que é melhor para o mundo e, por outro lado, utilizam seu poderio político-econômico de fiadores planetários da economia.
Para o Brasil, inserido na estratégia de potencializar um mercado atraente como o sistema educacional, o BM aponta como indispensável a destruição do modelo de universidade humboldtiana, de tipo europeu. Seria um arcaísmo manter instituições dedicadas ao tripé ensino-pesquisa-extensão, quando se pode explorar distintas modalidades de formação básica, a diversos custos, preços e lucros. Nesta premissa, ignora-se o compromisso social que se espera da universidade e tampouco considera-se a pesquisa como dimensão inerente da construção do conhecimento. Nesta formulação perversa encontra-se a busca por garantir um mercado consumidor que possa absorver tecnologia e conhecimento de segunda mão e isso dito de forma direta pelo BM que indica a compra de tecnologias “não obsoletas” já abandonadas pelos centros do capitalismo.
Todas estas justificativas contidas nas elaborações oferecidas pelo BM ao mundo precisam ser entendidas como um discurso que é um modo de ação – da perspectiva pragmática, discurso é prática – mas que não tem força por si para impor as mudanças que carrega. A simples enunciação das fórmulas rapidamente listadas acima se convertem em práticas políticas apenas após a refração aos contextos específicos de cada país. É o que Fairclough define como recontextualização que exige entender e articular as dimensões materiais e simbólicas envolvidas na trama. Cabe aqui a compreensão de como estas políticas agem em consonância às frações dominantes em cada país.
Como este receituário não é novo; é preciso apontar as distintas recepções que já teve no país. Ao longo dos governo FHC (1994-2002) e Lula (2003-2010) percebe-se uma continuidade na aplicação dos referenciais do BM, da UNESCO e do Acordo de Bolonha para o ensino superior brasileiro. No entanto há uma ruptura na forma de recepção destas políticas que esta diretamente relacionada a história política recente do país.
A gramática lulista: justificando uma guinada
É o próprio BM que mais um vez fala expressa e claramente: movimentos sindicais e estudantis fortes e governos fracos precisam ser removidos pois são obstáculos à aplicação da ‘salvação’ proposta.
Aqui há um corte necessário que nos leva a distinguir, por uma dimensão, os governos que se sucederam no Brasil. Não trata-se aqui de apontar qual governo seria “mais forte” ou “mais fraco” mas de entender por força das relações políticas distintas entre os dois governos e os movimentos sindical e estudantil, um vetor fundamental da intensidade com que os processos se construiram.
Primeiramente, o governo de FHC, por sua explícita genuflexão ao neoliberalismo e à modernização pelo mercado, angariou ao longo dos seus mandatos, constantes e intensas manifestações e oposições internas neste plano. Por outro lado, Lula e o núcleo do seu governo, de origem sindical na sua maioria, são considerados herdeiros do ascenso das massas – em particular as sindicalizadas – ocorrido nas décadas de 70 e 80, tendo plena confiança – quiçá controle – das principais organizações estudantis e sindicais, com destaque para UNE e para a CUT. Este trunfo facilitou razoavelmente a “vida” do mandatário maior entre 2003 e 2010.
Resumidamente podemos apontar que FHC constituiu uma base legal com alguns fundamentos importantes para a financeirização que se agravaria nos mandatos do seu sucessor. Seu governo garantiu instrumentos como a LDB de 1996 e o PNE de 2001. Na esteira disso e contando com a docilidade de setores outrora opositores da política federal, Lula deu avanços operacionais significativos para a constituição de um sistema universitário referenciado nas consignas bancomundialistas .
Há aqui um movimento complexo de transmutação dos discursos e das práticas. A alquimia neoliberal levada a cabo por Lula, revela-se com prova da requintada genialidade política da figura central do governo federal. Chamo aqui de alquimia neoliberal, a busca pela justificação e defesa de diferentes políticas – entre elas a Reforma Universitária – utilizando no discurso oficial/governista reconfigurações na relação entre público e privado, expressando em um forma “pública” ou de corte “social”, um conteúdo extremamente privado e privatista.
Algumas iniciativas foram requentadas e agora assumidas como parte de uma construção desde as universidades. Muitos reitores assumem como seus, projetos que são apresentados pelo MEC. A recontextualização que se configurou na refração BM – Governo Federal é reeditada no âmbito MEC – IFES desta vez contando com a sintonia entre opções políticas de muitos reitores que assumem, em muitos casos, estas propostas e programas como compromisso partidário ou ideológico.
Vemos em cada espaço de interlocução ou arena discursiva, a existência de uma gramática específica e supostamente adequada a cada contexto peculiar. Nestes termos é visível e elogiável a capacidade de trânsito de Lula por este debate, mobilizando diferentes gramáticas na perspectiva da conciliação que caracterizou seus governos. A proposta de conciliação, é central para que se entenda por que com Lula, foi aceito e aplicado o receituário tão combatido quando proposto por FHC.
Para fins didáticos, Reforma Universitária é o conjunto de medidas, leis, decretos, políticas públicas e regulações apresentadas a partir de 2004. Dentre outras coisas, esta Reforma buscou justificar-se na meta do PNE para o período 2001-2010 que era a ampliação em 30% do número de jovens entre 18 e 24 anos nos cursos superiores. Isto exigiria dobrar os percentuais daquele momento, no início dos anos 2000.
A diversificação das IFES, postulada pelo BM, concretiza-se no país. Cada vez mais centros ou faculdades isoladas concorrem para a fragmentação e desregulamentação do ensino superior no Brasil. Esta balcanização desenfreada e estimulada pelo potencial lucrativo que os cursos de formação básica, em geral de curta duração, oferecem aos setores do “capitalismo acadêmico”, também tende a quebrar a indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão. Dadas as baixas exigências para o credenciamento, podemos acreditar que pouco mais de 22% dos estudantes universitários efetivamente convivem com esta referência. As Universidade Públicas, excluídas as municipais, somavam 22% das matrícula no Censo do INEP de 2006.
Além disso, diversas investidas por sobre a autonomia universitária se acumularam ao longo da implantação do REUNI. A expansão com a criação de cursos e campi não fez acompanhar-se de manutenção ou aumento da qualidade.
Entidades representativas como ANDES e FASUBRA denunciam permanentemente as limitações na qualidade das universidades com implicações laborais, arrocho salarial e descumprimento de prerrogativas inerentes às universidades.
Assim como a ampliação da presença fundacional e das terceirizações nas instituições públicas são outras das facetas privatistas mascaradas sob um verniz de ampliação de alcance e acesso à universidade; amalgamando práticas anteriormente combatidas ao repertório de ações privatizantes do governo; atualmente está em aberto um processo de franca privatização das universidades. Falo aqui, entre outras medidas, da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), por exemplo.
A EBSERH é, a um golpe só, a expressão da concepção de gestão para o mercado e da premeditada destruição do modelo de universidade construído até então.
Apresentada através da MP 520 no último dia do mandato de Lula, em 2010, a EBSERH, finalmente aprovada como lei em 2011, representa a passagem da gestão de considerável patrimônio público para uma empresa de direito privado, explicitamente regulada pelas leis de mercado, para tratar de – pasmem – atendimento à saúde. Os Hospitais Universitários que atendem integralmente pelo Sistema Único de Saúde – SUS passam a atuar atendendo planos de saúde privados e, no cerne dos ataques à universidade humboldtiana, atacam a autonomia universitária e destroem a tríplice atuação no ensino-pesquisa-extensão.
Elementos que expressam algumas contradições no discurso do governo
Primeiramente, o governo aponta a democracia como método e como fim da Reforma conforme exposto no E.M.I Nº 015 /MEC/MF/MP/MCT que acompanha o texto do PL aprovado no Congresso e evoca razões republicanas e estatais, reforçando o discurso do compromisso público,do Estado em oferecer ensino superior e regular a oferta na área privada, mas na prática o que percebemos é uma diluição dos conceitos público e privado, em vantagem para ampliação do ingresso e fixação do setor privado no ensino superior brasileiro.
Nessa análise, conforme LEHER (2004) “não se trata apenas de identificar quem tem razão, mas, antes e principalmente, de tentar captar o movimento do real”. Neste caso, a capacidade de ocultar este ‘movimento do real’, que o Governo tentará fazer, insere-se na tentativa de ajustamento entre dois regimes diferentes através da mobilização de competências discursivas expressas nos textos legais, na propaganda oficial e nos pronunciamentos do Ministro da Educação e do Presidente, em especial.
A tentativa de construir nexos entre as demandas da sociedade organizada, em particular nos sindicatos de trabalhadores das universidades e nas organizações estudantis, e as propostas do governo, passam pela tentativa de construção de uma nova gramática em torno do par público-privado. A captação e análise dos atos locutórios nos permitirá identificar os elementos e os saberes mobilizados nesse debate.
Por um lado há a forte oposição de entidades como a FASUBRA, ANDES, CONTEE, CNTE, inicialmente da UNE, mais diversos conselhos de categorias e executivas nacionais de cursos de diversas áreas do conhecimento que perceberam a interpenetração e difusão do público e do privado em um projeto que, de início previa isenções ao setor privado que poderia chegar na ordem dos R$ 3 bilhões para gerar até 140 mil vagas (no máximo). Na mesma época, em 2004, a ANDIFES apresentou um estudo afirmando que seria possível, com um investimento de R$ 1 bilhão, criar 400 vagas em cursos noturnos nas Universidades Públicas Federais (LEHER, 2004. p. 878-879), avançando na oferta de ensino superior – público, destque-se.
Na contramão, o discurso do governo baseou-se na apresentação da parceria-público-privada (PPP) como tábua de salvação para a sociedade. Aprofundou-se o imaginário da eficiência privada ao passo que se apresentava um estado supostamente regulador e formulador de políticas. Dessa forma ficaria difícil identificar os elementos de neoliberalismo presentes no discurso e na prática em curso nesta Reforma Universitária; afinal se há ação estatal estaríamos realmente lidando com um governo privatizante e de corte neoliberal? Essa ambiguidade que, por muito tempo gerou o benefício da dúvida em relação ao governo cai por terra quando se verifica que a receita seguida pelo Governo Lula era requentada: já havia sido indicada pelo Banco Mundial desde os anos 90 quando os ideólogos do Consenso de Washington apontavam para a América Latina, como única solução, um processo de privatização, dentre outras coisas, do sistema de ensino superior.
A disputa ideológica coloca, ainda hoje, a submissão da universidade, com cerceamento do potencial critico e da liberdade de pesquisa, como metas para subsidiar o mercado. Inclui-se nesse movimento a proposição de cursos voltados para garantir a formação de mão-de-obra adaptada às exigências do capital. Neste sentido, à Reforma Universitária, que traz uma série de habilitações e cursos de tecnólogos que satisfazem estas exigências, alia-se a Lei de Inovação Tecnológica.
Em síntese, verificamos um governo que, na discussão tenta operar um discurso de esquerda – e o faz com significativa competência – para articular políticas de direita e que prestam inflexão ao mercado.
Estado e mercado, podem ter suas origens identificadas no mesmo processo de racionalização e burocratização que Weber identificou na origem do capitalismo. Tanto um quanto o outro estão marcados pelo discurso da modernidade. Cabe-nos a tarefa de tentar, avançar na análise dos discursos para identificar claramente onde a capacidade discursiva escamoteia a prática política.
Qual texto e qual contexto? Discurso, educação e política, pelo viés de Alcir Martins