Zuca Sardan é lenda viva. Arquiteto de formação, tornou-se mais conhecido como o poeta marginal da geração mimeógrafo – aquela que na, década de 1970, buscou alternativas à circulação de produtos culturais para escapar da censura ditatorial e revelar novos autores. Com o passar do tempo, Zuca ingressou na carreira de diplomata e manteve-se cada vez mais distante de seu país natal, morando em definitivo na cidade de Hamburgo, Alemanha.
No entanto, sua obra despertou interesse nas grandes editoras, ainda que tardiamente: em 2004, Babylon: Mystérios de Ishtar é lançado pela Companhia das Letras, e no ano passado Cosac Naify publica Ximerix, coletânea de textos antigos remixados com novas ideias. Mas é em 2014 que o autor volta à margem do circuito literário, lugar de onde veio. Em Santa Maria, na tarde de uma quinta-feira úmida, Zuca Sardan virou papelão.
Cartonerando Marias
O vaivém da guilhotina não contém qualquer aspecto artístico presente em uma editora de livros artesanais. São movimentos repetitivos, quase automáticos, cortando inúmeras folhas de papel. Este é o ponto inicial na produção das cartoneras – livros feitos a partir do cartón (papelão, em espanhol). Logo, não foi à toa que a guilhotina tornou-se o primeiro item adquirido pela editora Maria Papelão. É o que diz Luiza Casanova, enquanto picotava papeis com o auxílio de Juliane. Ambas são estudantes do curso de Letras, na Universidade Federal de Santa Maria, mas apenas a primeira faz parte do corpo editorial da Maria. Juliane é uma das inúmeras colaboradoras que auxiliam na confecção dos livros – todos são devidamente creditados nas contracapas das obras e constantemente ressaltados pelos editores.
A Maria Papelão iniciou suas atividades com outras cinco pessoas além de Luiza: Diego Marafiga, Fernando Villarraga, Julio Souto, Lara Niederauer e Luciéle Bernardi. Foi Julio quem ouviu falar pela primeira vez nas cartoneras. Em agosto de 2012, viajou até Buenos Aires e conheceu Eloísa Cartonera, a editora pioneira do gênero. Ao trazer a ideia, Julio teve apoio suficiente para fundar a Estrela Cartonera e lançar Para uma nova didática do olhar, livro do poeta santa-mariense Odemir Tex Jr.
– Ficou uma coisa mais autoral mesmo. Depois falamos em fazer uma editora. Ele [Tex] não se interessou e fizemos nós uma por conta. Criamos esse plano mais a longo prazo, mais bem articulado. A gente faz tudo juntos: desde a confecção, análise e discussão dos textos até a parte prática.
Da primeira reunião do grupo – em setembro de 2013 – até o lançamento do livro em novembro, foi um passo. A obra de estreia da editora é uma novela de Luiza Casanova, Tempo embalado para apodrecer, escrito originalmente em 2012 para ser enviado ao prêmio literário FestiPoa.
– Esse texto é anterior à Maria Papelão. Eu o tinha e enviei como se envia para editoras, e se espera uma carta de aceite ou não.
Com o texto diagramado, a montagem das capas leva de dois a três fins de semana – “primeiro a gente faz a base de uma cor e depois começa a pintar”, explica Luiza. Isto porque um dos maiores diferenciais das editoras cartoneras em relação às publicações tradicionais está na valorização artística do trabalho: ainda que o texto se conserve, a capa de cada edição é única.
– Há muito cuidado estético – ressalta Julio –. Não é porque é papelão que a gente vai fazer qualquer coisa. Assim como o texto.
Passado o período inicial de experimentações, os cartoneros já possuem experiência para apontar qual o tipo de tinta para determinada capa, a melhor cola ou mesmo o papelão ideal a ser utilizado.
– Mas a única pessoa com formação técnica dos nossos colaboradores é a Martina, que fez um curso de pintar pano de prato – diz Julio, bem humorado.
Para além das brincadeiras, o cartonerismo praticado pela Maria Papelão já rendeu três livros: além de Tempo embalado para apodrecer, há ainda Estilhaços de Rodolfo Walsh, do jornalista Iuri Müller, e Água em pó, do poeta marginal Nicolas Behr. O quarto lançamento – Voe no zeplin, de Zuca Sardan – acontecerá graças à ajuda de outras pessoas que contataram o autor, uma vez que ele mora na Alemanha.
– Esse livro que estamos elaborando agora foi através da professora Teresa – explica Fernando –. São pessoas que estão dispostas a participar com sua criatividade. A gente brinca e tudo, mas têm pessoas que são muito criativas: a Martina, a Camila, o Elias, que fez o logo… Então é um trabalho coletivo mesmo. E temos que mencionar também o pessoal do Café Cristal, que faz parte do projeto. É a sede da Maria Papelão, onde fizemos o lançamento.
Contudo, a estreia de Voe no zeplin demorará mais um pouco: não só porque boa parte dos membros da editora está no final do semestre da faculdade, mas também pela infortuna umidade que resolveu abater Santa Maria justamente no dia escolhido para pintar os materiais. Ainda assim, o humor do grupo não parece ter sido afetado por qualquer condição climática. É dessa maneira que as tardes da Maria Papelão – dividindo pincéis, aquarelas e canetas coloridas – tornam-se leves, mesmo que o trabalho envolva a confecção de cerca de cem capas artesanais. É nesse mesmo tom que eles respondem à pergunta derradeira: por que Maria Papelão? Segundo Luiza, a ideia é ser “meio Maria Chuteira”.
– Tem um pouco desses trocadilhos populares – explica Julio –, como Maria Chuteira, Maria Caneta, Maria Fuzil…
– Maria Fuzil eu nunca tinha ouvido falar – diz Luiza, sem conseguir segurar a risada. E resume o significado do nome da editora: “é a Maria que gosta de papelão”. Ou, como sublinhou Julio, “é a Maria que pira no papelão”.
Katarina, Dulcinéia e Eloísa
Uma característica comum às editoras cartoneras é a aproximação com catadores, a fim de estabelecer parcerias em troca de papelão. Foi assim com Eloísa Cartonera, a primeira editora do gênero, surgida em Buenos Aires no ano de 2003. Nascendo em meio a uma crise econômica que assolou o país, o grupo buscou valorizar o papelão comprado dos catadores pagando até mais caro do que uma recicladora.
O coletivo Dulcinéia Catadora, de São Paulo, também possui contato com o Movimento Nacional de Catadores de Reciclagem e valoriza o aspecto social do seu trabalho. No caso da Maria, os próprios membros buscam papelão em depósitos de supermercado, por exemplo. Não há contato com os catadores da cidade, embora o assunto seja tema de conversa entre o grupo desde seu início.
– Uma vez que nos estabilizarmos mais, queremos ter essa condição. Essa parceria com as cooperativas tem que ser séria e estável – ressalta Julio –, e nós não sabemos muito bem aonde a Maria vai chegar. Então é algo ainda em aberto, mas que gostaríamos de explorar. Seria interessante chamar outros movimentos que trabalham com cooperativas e poderiam ter interesse em fazer parcerias com catadores, porque a gente não tem conhecimento direto.
Em outro polo, Katarina Kartonera, de Santa Catarina, privilegia o sentido estético do papelão através do livro-arte. Andréa Lima, na sua monografia sobre as editoras, escreve que Katarina “está centrada em uma postura mais acadêmica”, em parte pela sua formação derivada de uma pesquisa de bacharelado e mestrado.
A ideia do livro enquanto objeto limitado também perpassa as tiragens – tanto Katarina como Dulcinéia lançam suas obras em uma média de 30 a 50 exemplares. No caso da Maria Papelão, os dados são bem diferentes: Tempo embalado para apodrecer teve uma primeira tiragem de 150 livros, além de outros 50 nas duas reimpressões seguintes; Estilhaços de Rodolfo Walsh lançou 220 exemplares e Água em pó, 175. São tiragens feitas de acordo com a demanda. Fernando reconhece o feito da editora:
– Acho que o número é muito significativo para uma cidade como a nossa. São mais ou menos 600 livrinhos vendidos por um projeto editorial alternativo. É muito livro mesmo.
A venda a partir da demanda escapa à tradicional circulação de grandes editoras, cujas tiragens giram em torno de 3.000 exemplares. “Não funcionamos de acordo com o circuito normal de livros – vender em livrarias, passando pela editora e distribuidora”, explica Julio. “Não somos uma empresa com CNPJ, e aí não podemos fazer o ISBN [International Standart Book Number, sistema que cataloga numericamente os livros de acordo com certas categorias] porque há toda uma série de gastos que não estamos em condição de assumir”. Sendo assim, o grupo trabalha com a licença Creative Commons como forma de garantir o direito do autor – “pelo menos até ser reconhecida a sua obra”.
Se por um lado a Maria Papelão parece não se encaixar inteiramente no discurso de inclusão social ou de “livro-arte”, por outro, nas recentes oficinas realizadas em escolas de Santa Maria, o grupo arrisca revelar um novo propósito.
– Nossos leitores não são leitores que nunca tiveram acesso a um livro. Maria Papelão não foi o primeiro livro de ninguém, até agora – diz Julio, entre risadas –. Mas é verdade que nessas oficinas a gente busca descentrar o livro, criar outra relação. Uma pessoa de baixa renda pode ter uma relação muito distante com ele. O objeto papelão, o fato de ser de papelão e de ser feito por pessoas com vontade de fazer livros, pode criar outra relação. A gente pensa que isso pode ser um caminho para novos leitores – que os livros cartoneros sejam caminhos para outros tipos de livros.
As oficinas realizadas nas escolas Prado Veppo e Irmão Otão aproximam os alunos de autores marginais através da leitura de contos, e também das editoras cartoneras, explicando suas origens. Além disso, capas são montadas e o resultado final, em forma de livrinho, é levado para casa. Dentre as inúmeras experiências, uma é destacada:
– Teve um guri que gostava de mangá – pra tu ver como a literatura chega na pessoa, pode ser mangá, TV, qualquer coisa. Ele estava em uma oficina e depois mandou um texto para nós. Nessas coisas pequenas, às vezes, de fazer uma oficina, tem um moleque que gosta e envia. E é por mangá, que tu nem imagina que vá para a literatura. A oficina incentiva, aproxima. Sei lá, achei do caralho ele mandar o texto – finaliza Diego, arrancando mais algumas risadas no grupo.
O espírito cômico do coletivo acaba servindo de metáfora também para a literatura como um encontro de apaixonados. É perceptível a união do grupo em torno do tema – algo que acaba transcendendo análises sociais e artísticas a respeito das cartoneras. No fim das contas, é pura e simplesmente a junção de amigos fazendo o que gostam.
Findada a entrevista, uma nova sessão de pinturas é marcada para agilizar o lançamento de Voe no zeplin – a conclusão levaria mais uns dois dias da semana, possivelmente. Todos se despedem e, nos primeiros vinte ou trinta passos rumo à parada de ônibus, a umidade de Santa Maria finalmente desata em pingos d’água. Sacar o guarda-chuva da mochila foi um pensamento secundário: antes disso, lembrei que as cartoneras demorariam um pouco mais para secar.
MARIA DE AQUARELAS, PINCÉIS E CANETAS, pelo viés de Dairan Paul.