A estreita relação de Santa Maria com o muro na Palestina

Marem Mantovani, ativista do movimento Stop The Wall, em apoio à causa palestina, em visita a Santa Maria. Foto: Bibiano Girard.
Maren Mantovani, ativista do movimento Stop The Wall, em apoio à causa palestina, em visita a Santa Maria. Foto: Bibiano Girard.

Maren Mantovani é Coordenadora de Relações Internacionais do movimento Stop The Wall, que articula apoio pelo mundo à causa palestina. A ativista, que é italiana mas morou em Ramallah, na Cisjordânia, está no Brasil desde agosto de 2012. Na entrevista que concedeu à revista o Viés, Maren lembrou a relevância que os gaúchos – e principalmente santa-marienses– têm no apoio e no financiamento às políticas bélicas de repressão contra o povo palestino. “É contraditório: como pode o Estado brasileiro e o Rio Grande do Sul apoiarem a criação do Estado Palestino e ao mesmo tempo assinarem contrato com a Elbit?”
A Elbit Systems é uma empresa militar israelense – a segunda mais importante no país – que está construindo armas desenvolvidos na guerra contra o povo palestino, sobretudo contra Gaza. É também a empresa que constrói o muro que separa Israel da Cisjordânia, e que, na prática, anexa a Israel territórios antes ocupados pelo povo palestino. Definido como “um prelúdio ao genocídio” por conselheiros de Direitos Humanos da ONU, o poderio bélico usado pelo Estado israelense contra a Palestina tem, agora, forte relação com Santa Maria. “Criou-se o projeto de se construir o Microssatélite Multiuso Militar (MMM). Houve até pedido de financiamento ao FINEP – Agência Brasileira de Inovação –, isto é, dinheiro federal para o projeto. Que foi negado”. A UFSM, junto com a UFRGS, a PUC e a Unisinos, integra um contrato de desenvolvimento tecnológico com a Elbit, o governo gaúcho e algumas empresas sediadas no estado. Além disso, o prefeito Cezar Schirmer já fez contato em representantes da Elbit, em abril de 2014, para possivelmente trazê-la à cidade.
Na entrevista, Maren contextualiza os acordos bélicos e econômicos entre Brasil e Israel, e comenta o acordo que o governador Tarso Genro firmou com a Elbit. Ela falou também sobre as lutas contra o crescimento da presença israelense no sul do mundo e da importância dos movimentos sociais organizados combaterem  a presença de empresas que apoiam o que Mantovani chama de “ocupação, apartheid e colonização” por parte de Israel nos territórios palestinos.
 
logo revista o Viés: Um dos eixos da sua visita ao Brasil, e especialmente da sua viagem até Santa Maria, é o acordo entre a Elbit, empresa israelense, e algumas universidades do estado, entre elas a UFSM. Você poderia explicar o que é esse acordo?
Maren Mantovani (MM): O primeiro ponto a levantar é que há uma falta de transparência generalizada a respeito desses acordos. É uma coisa comum na maior parte dos contratos e relações com Israel e também na maior parte dos contratos e relações militares em geral. Mas para dar um pouco da história e do contexto desse contrato – que foi assinado menos de seis meses depois do Fórum Social Mundial Palestina Livre, quando estive em Porto Alegre, que seguramente foi um momento muito importante para a causa palestina e um importante passo do Rio Grande do Sul em uma luta internacionalista, pois o governo apoiou esse fórum –, em abril de 2013 teve uma delegação do governo e de universidades.
Ao início ficamos todos felizes, pois era uma maneira de agradecer e receber a todo mundo que, no Rio Grande do Sul, fizeram um encontro global sobre a Palestina. Descobrimos que, ainda em Israel, haveria a assinatura de um contrato com a Elbit. A Elbit é uma das empresas militares – a segunda mais importante em Israel – que está construindo drones [veículo aéreo não tripulado]desenvolvidos na guerra contra o povo palestino , e sobretudo contra Gaza, que até hoje está em uma situação desumana e foi definida como “um prelúdio ao genocídio” por conselheiros de direitos humanos da ONU. Esses drones estão sendo vendidos, nesse momento, em outros contratos, ao Brasil. Atualmente estão aqui em Santa Maria inclusive, juntos com os militares israelenses que estão treinando os militares brasileiros para a utilização dessas armas. Cinco drones ficaram prontos para a Copa. Israel está vendendo-se no mundo como “nós fazemos parte da Copa porque estamos dando segurança para a Copa”. Nesse sentido, Israel ganhou a Copa mesmo antes de ela começar.
Voltando ao contrato: a Elbit é a empresa símbolo do muro que está sendo construído na Palestina. É uma coisa que as pessoas têm que ver para acreditar. É um muro alto, de oito metros, ao longo de 700 quilômetros, que cerca vilarejos e cidades palestinas para criar guetos a céu aberto, roubar a água, a terra e deixar os palestinos praticamente encarcerados em suas próprias casas e aldeias. É com essa empresa símbolo de bloqueio, colonialismo, ocupação, apartheid israelense contra o povo palestino que o governo do Rio Grande do Sul e essa delegação de universidades assinou um contrato. Da Palestina, a nossa posição ficou muito clara.
Escrevemos uma carta da sociedade civil palestina para o governador, pedindo que não assine esse contrato. E também sobre a contradição que é o governo do Brasil e do estado apoiarem a criação do Estado Palestino e ao mesmo tempo financiar a empresa que constrói um muro em volta dos palestinos. Também houve uma visita à Palestina, ao primeiro-ministro palestino, aos movimentos sociais. Mas o fato é que, ao final, assinou-se esse contrato. Esse contrato prevê a criação de um polo aeroespacial em Porto Alegre, ao redor da AEL Sistemas – a subsidiária da Elbit aqui. A AEL é a antiga Aeroeletrônica S/A, uma empresa gaúcha comprada há mais de dez anos pela Elbit – e isso faz parte de toda uma dinâmica no Brasil de desnacionalização da indústria nacional. Essa empresa israelense quer construir um parque aeroespacial.
“Propagandisticamente”, chamou-se esse parque de “Parque Aeroespacial Gaúcho”, mas de gaúcho ele tem bem pouco. Houve, então, um comitê especial com quatro universidades do Rio Grande do Sul – a UFSM, a UFRGS, a PUC e a Unisinos – mais a AEL/Elbit como empresa líder, uma representação do governo e duas pequenas empresas gaúchas que foram indicadas pela AEL/Elbit. Daí criou-se um projeto de construir o Microssatélite Multiuso Militar chamado de MMM. A partir de então houve um pedido de financiamento ao FINEP[Financiadora de Estudos e Projetos, empresa pública de fomento à tecnologia e à inovação], isto é, dinheiro federal para este projeto. Houve uma boa notícia nesse sentido: não foi alcançado o financiamento necessário. Para todo mundo que é contra essa parceria, é um momento de dizer que agora temos mais responsabilidades. O que se quer é construir um parque aeroespacial israelense em Porto Alegre e capacitar uma empresa que até hoje não tem experiência aeroespacial para ter este tipo de tecnologia e os recursos humanos e financeiros do povo brasileiro, dos professores e alunos de universidades brasileiras, estarão a serviço de uma empresa que está sendo denunciada e boicotada por seus crimes de guerra em todo o mundo.
logo O que representam, de uma maneira mais detalhada, a Elbit e outras empresas de armamento privadas para o povo palestino?
MM: Representam, simplesmente, o ator que implementa uma política israelense de Estado de ocupação, apartheid e colonização. Fazemos sempre esta definição, de que não se trata somente de ocupação, mas também de apartheid e de colonização, porque acho importante entender que uma coisa é ocupar militarmente um território de maneira temporária. Mas esse não é o plano de Israel. O plano de Israel, desde o início, é tomar conta dessa terra sem o seu povo, negando a existência desse povo que lutou para o reconhecimento de sua existência. Hoje, Israel está negando o direito de existir aos palestinos. Fisicamente, concretamente, matando pessoas, limpando etnicamente as comunidades, reprimindo e controlando o caminho e colonizando o território baseado em uma lógica racista de superioridade de uma povoação sobre a outra. Temos leis distintas para palestinos e judeus. Essa lógica racista, conectada a uma visão colonial, é exatamente o que foi experimentado na África do Sul durante os anos de apartheid.
Por isso a lógica de falar em ocupação, apartheid e colonização. Evidentemente, alguém pensa, implementa e ganha com isso. E são as empresas. O Estado pode tomar a decisão de agir assim, mas sem as empresas essa política não seria praticável. Elas são diretamente responsáveis por o que está acontecendo na Palestina. E a Elbit é um símbolo exatamente pela construção do muro. Aí acho importante sublinhar que essa política israelense pode continuar por duas razões: Israel construiu, através de suas empresas e instituições paraestatais um sistema que está criando uma ideologia dentro de suas universidades e instituições intelectuais de repressão e colonização, uma metodologia para aplicação e uma tecnologia para implementação dessa metodologia. E tudo isso está sendo vendido para o mundo.
Isso é muito interessante também na relação com o Brasil, que está se tornando um dos mais importantes parceiros militares, sendo hoje o quinto maior importador de armas israelenses. O Ministério de Defesa do Brasil tem um escritório em Tel Aviv. Talvez seja uma das únicas cidades fora do Brasil a contar com um escritório desse ministério. Além de uma série de seminários conjuntos, nos quais Israel está a cada dia exportando sua visão de repressão e de controle das cidades ao Brasil. Está, pois, vendendo sua metodologia e sua tecnologia ao Brasil.
Esse tipo de inter-relação permite a Israel a continuar seus crimes, porque essas empresas precisam de dinheiro de fora. Precisam de espaços para vender suas tecnologias militares para funcionarem dentro do capitalismo, porque em um país que tem seis milhões de habitantes não é possível desenvolver alta tecnologia militar sem vendê-la ao mundo. Cerca de 75% da produção militar israelense é exportada. E para onde? Para o sul do mundo. Não para os EUA ou para a Europa. Exporta ao Brasil, à Colômbia, à Índia. E exporta sua ideia de repressão.
Nesse sentido, temos uma luta em comum entre os povos. Evidentemente, essas não são armas inocentes. São desenvolvidas com o sangue dos palestinos . Israel está utilizando Gaza e a Cisjordânia como laboratório cotidiano de como construir armas melhores, que matam mais e que causem mais medo. De fato, os CEOs [diretores-executivos] e os managers das empresas militares dizem – e isso pode ser visto nos próprios websites dessas corporações – claramente que “nós temos uma vantagem comparativa com nossas armas porque elas são testadas e desenvolvidas nos terrenos e usos cotidianos”. E por isso, claro, essas empresas lucram mais. Israel tem uma economia de guerra. Naomi Klein [ativista, jornalista e escritora canadense] argumenta que Israel está inserido na lógica do “capitalismo do desastre”, pois vende a ideia da necessidade de luta contínua contra o terrorismo, a ideia do homeland security [termo referente à prevenção de ataques terroristas, que em Israel é posto em prática numa lógica de “ataques preventivos”].
logo Alguns ativistas contrários ao apartheid israelense argumentam que nem sequer comercialmente vantajosos são, em certos casos, esses contratos com as empresas militares. Isso é fato? E, se não há uma vantagem comercial, por que o Brasil está comprando tantas armas de Israel?
MM: Isso deve ser perguntado ao Nelson Jobim [jurista santa-mariense, ex- ministro da Defesa]. Sei que vocês escrevem para o público de Santa Maria, e a cidade tem um papel muito importante em toda a questão palestina. Quando falamos no Brasil e na América Latina, as pessoas sempre pensam que a Palestina está longe, que as responsabilidades são dos Estados Unidos e, de tão longe, o que se pode fazer? Aqui no Rio Grande do Sul vocês não são inocentes, no sentido de que quem fez o lobby na Assembleia Geral das Nações Unidas defendendo a construção do Estado de Israel, quando começou todo o problema, foi ninguém menos do que Osvaldo Aranha [diplomata e político gaúcho].
Então há um envolvimento na situação desde o início. E quem criou as relações militares entre Brasil e Israel? Não foi a ditadura. Na realidade, e surpreendentemente, houve muito pouca relação militar entre os dois países na época da ditadura, quem construiu toda essa relação foi Nelson Jobim quando esteve no Ministério da Defesa. Provavelmente não é uma casualidade que os drones e os militares israelenses estejam aqui em Santa Maria. E não só contratos com empresas israelenses. O plano de construir um polo aeroespacial junto com essas empresas é, de novo, gaúcho. Por essas razões os gaúchos também têm responsabilidades nessa situação.
É evidente que os Estados Unidos têm muita responsabilidade, que utilizam o veto no Conselho de Segurança da ONU cada vez que se vota algo sobre a causa palestina, sobre os crimes de Israel. Mas o problema fundamental que temos hoje, é que, em uma dinâmica global que está mudando, vemos que os Estados Unidos e a Europa já estão na crise econômica e não têm mercados em expansão. Na Europa, finalmente, desde o último ano, há diretrizes que limitam as relações econômicas entre o continente e os assentamentos ilegais israelenses na Palestina. É proibido a qualquer organismo público, por diretrizes da União Europeia, conceder financiamentos ou fazer contratos com empresas sediadas nos assentamentos. Isso foi um choque para Israel. Também porque a UE está implementando essas diretrizes seriamente. É um primeiro passo, não é suficiente, queremos mais. Netanyahu [Benjamin Nenayahu, primeiro-ministro israelense e chefe do partido conservador Likud] e os líderes do governo chegaram a dizer: “não se preocupem. Temos um problema, estamos perdendo mercado na Europa, mas temos uma alternativa: o sul do mundo, a América Latina”.
Eles pensam que aqui as pessoas não se interessam pelos direitos humanos, mas simplesmente pela tecnologia. É uma ignorância e arrogância colonial absurda. Ignora todas as lutas por direitos humanos no continente. Por outro lado, tenho que dizer: Netanyahu tem razão. Não há nenhuma atenção ao que acontece a nível econômico ou militar com Israel. Parece que aqui quem toma as decisões se preocupa simplesmente com a tecnologia e esquece o tema dos direitos humanos, a luta do povo palestino, e também a luta de seus próprios povos, as lutas históricas contra o colonialismo, as ditaduras.
logo E é possível que nem financeiramente esse investimento, que é de risco, seja compensador. Tem toda a importância a questão dos direitos humanos, mas o capitalista, nessa relação, pensa no lucro. Nem isso, porém, é garantido.
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MM: Absolutamente. Em nível econômico e militar, na realidade, essa relação não funciona muito bem, não faz sentido fazer negócio e investimentos em um parque aeroespacial baseados em uma empresa boicotada pelo mundo. A Elbit não pode mais negociar com qualquer instituto financeiro da Escandinávia, porque todos retiraram seus investimentos por questões éticas. Temos um pedido frente à Assembleia Geral da ONU feito por Richard Falk [Relator Especial da ONU sobre a situação palestina] que pede o boicote à Elbit. Temos várias campanhas em vários países do mundo por boicote e rompimento das relações com essa empresa, desde a Austrália até os fundos de pensões nos Estados Unidos.
Tivemos vitórias contra a Elbit e continuaremos com nossa luta. Esse é um dos fatores de risco. Isso significa que as universidades e o governo estão construindo um projeto com uma empresa que futuramente terá menos espaços de venda, de investimentos e de inter-relações econômicas. Isso não é uma política econômica sustentável e isso é o que os maiores institutos de avaliação econômica estão dizendo. É preciso avaliar, quando se faz investimentos, não somente fatores econômicos, mas também os fatores éticos e políticos. Eles também são fatores de risco. Não é uma lógica revolucionária, mas uma lógica capitalista de escolha de investimentos. Um investimento desse tipo, portanto, é um investimento de risco.
Em particular, quando se discute o tema das relações militares, também é um problema econômico e político. Dizem que Israel transfere tecnologia. Para transferir tecnologia, é preciso criá-la. E a Elbit não tem experiência em construir satélites. Nunca construiu um satélite antes. Qual tecnologia vai transferir? Hoje, por um acordo de transferência tecnológica, Israel tem poder de veto sobre qualquer venda de armas brasileiras que têm componentes israelenses. Isso significa que Israel pode vetar a venda de armas brasileiras à Venezuela ou à Bolívia, por exemplo. Isso é um problema político porque, se o Brasil quer uma política externa baseada na integração da América do Sul, com outros países latinos ou com o mundo árabe, toda a venda de armas pode ser vetada por Israel.
Não tem sentido politicamente ou economicamente. Quem vai comprar as armas brasileiras? A Europa e os EUA não vão, porque constroem suas armas. Pode-se vender na América Latina. Mas com a Venezuela e com a Bolívia não se pode. Onde vender? Na Colômbia há concorrência direta com armas israelenses. Em boa parte da América Latina não dá certo. Onde historicamente o Brasil vendeu armas? No mundo árabe, que compra muitas armas e tem muito dinheiro. Mas o Brasil não poderá vender armas com componentes Israelenses ao mundo árabe. Onde mais? Quem compra armas? O Paquistão e outros países muçulmanos, mas o Brasil, novamente, não pode negociar armas com componentes israelenses nesses países. Na África, que não tem dinheiro? Vocês criam armas que não têm mercado! É claro que eu não quero promover o comércio de armas. Mas investir na indústria militar brasileira é a coisa mais estúpida que se pode fazer.
logo Os governos brasileiros não tem interesse em manter essas armas em território nacional? Comentaste que o que mais vende armas é o discurso antiterrorismo, e no Brasil o militarismo está em ascensão.
MM: Seguramente o Brasil quer comprar armas. E nesse momento, inclusive. Mas é uma política míope porque só pensa no agora. Os EUA, por exemplo, fazem a cada dois anos uma guerra, então eles precisam dessa indústria para o próprio exército. Ou o Brasil bota o armamento no lixo a cada dois anos ou vende em outros lugares. Mas onde?
logo O fator econômico parece muito importante aos governantes locais. O prefeito santa-mariense Cezar Schirmer foi, em abril, a Porto Alegre para conversar com a Elbit e trazê-la para a cidade, pois a Base Aérea daqui é compradora da empresa. Como podemos falar em desenvolvimento econômico para a cidade? Esses grupos comerciais e indivíduos viriam para cá baseados em um investimento de guerra.
MM: Ninguém é contra um projeto aeroespacial simplesmente. O problema é: quem são os parceiros? Santa Maria pode fazê-lo sem os israelenses. Porto Alegre tem a AEL/Elbit, já está nas mãos dos israelenses, mas vocês ainda não estão. É preciso se levantar e dizer: nós queremos fazer um trabalho de tecnologia e de pesquisa aeroespacial, mas queremos fazê-lo com ética, porque tecnologia e pesquisa não podem estar apartadas do contexto. E é bastante irônico, pois esse discurso [de ética e ciência] nasceu depois da Segunda Guerra Mundial. Depois de o mundo aprender o que não se pode fazer. É chocante e é preciso impedir que a Elbit se instale também aqui. Vocês podem ter uma excelência aeroespacial com parceiros limpos nesse sentido. Por que sujar-se?
logo Muitas vezes – e sobretudo em cidades como Santa Maria, que nunca se industrializaram de fato – tem-se a ideia de que a chegada de uma multinacional vá trazer empregos e movimentar a economia local. Os governos municipais prometem atrair capital de fora nas campanhas políticas e chegam a dar benefícios fiscais para a instalação dessas corporações. Há, inclusive, mais duas empresas militares com interesse ou em processo de estabelecimento em Santa Maria, uma alemã e outra polonesa.
MM: Eu me pergunto: por que o prefeito não tenta parceria com outras empresas, que têm outras parcerias com instituições locais? Tem que ser uma empresa que comete crimes de guerra e é boicotada em outros lugares do mundo? Essa é uma opção política bem clara. Cruzaremos a linha vermelha? Não temos limites éticos e políticos? Nesse caso, tem que ter luta.
logo Como se estruturaram e o que são o Stop the Wall e o “movimento BDS” (Boicote, Desinvestimento e Sanções, campanha global que utiliza a pressão econômica e política baseada no tripé que dá nome ao movimento)?
MM: O Stop the Wall nasce como um movimento de resistência espontânea à construção do muro. O que aconteceu em 2002: Israel invade de novo a Cisjordânia, mata muita gente. Enquanto a população está chocada, enterrando seus mortos, os bulldozers [escavadeiras] começam a destruir os campos. Os camponeses e camponesas instintivamente respondem com manifestações. Resistindo, literalmente, com suas mãos e seus corpos. Ao início, nem se entendia o que estava acontecendo, porque Israel não disse nada. Simplesmente chegou destruindo, ou às vezes deixou notificações fixadas nas árvores sobre confisco de terras. Aí nasce a campanha contra o muro, de comitês populares que surgem localmente, e também como um espaço de pesquisa, muito básico, sobre o que estava acontecendo, para entender qual era o projeto. E era o projeto do muro. Um ano depois Israel trouxe a público o primeiro mapa do que é o muro.
Em verde, as terras palestinas, em branco as terras e assentamentos israelenses.
Em verde, as terras palestinas, em branco as terras e assentamentos israelenses.

O Stop the Wall e os movimentos de luta e de manifestação são também espaços de pesquisa – sobre os efeitos diretos do muro, quantas casas e quais terras foram destruídas e também sobre o que está acontecendo “atrás” do muro, pois o Banco Mundial chegou com um projeto de fazer dos guetos construídos por Israel economicamente sustentáveis, como se pode explorar esses camponeses que não têm mais trabalho e sustento, em maquiladoras [empresas que, por produzirem apenas para exportação, não pagam tributos no país de origem] que teriam que ser construídas. Os camponeses têm, muitas vezes, do outro lado do muro, um trabalho de baixo nível e podem ser mão-de-obra barata a ser explorada por empresas israelenses ou multinacionais, ou por capitalistas palestinos também.
Por fim, pesquisa-se também quem está ganhando com a construção do muro, quem está fazendo e lucrando com isso. Entre elas, evidentemente, a Elbit, mas não somente. Há muitas outras. Em 2004, no dia nove de julho, a Corte Internacional de Justiça decide que o muro é ilegal e quais são as obrigações da comunidade internacional – o mais importante e que o mundo tenta sempre esquecer. Então, é ilegal dar assistência e reconhecimento ao muro, e dar sustentação à situação criada por ele. Alguns anos depois, através de outras pesquisas e análises legais, tanto nas Nações Unidas como fora dela, se define que é ilegal apoiar e assistir as empresas que estão construindo o muro. Hoje temos também problemas legais com parcerias público-privadas com empresas como a Elbit. Em nove de julho de 2005, exatamente um ano depois da decisão da Corte Internacional de Justiça, depois de passada essa experiência de opressão e passados também vinte anos de negociações fracassadas, chega-se ao chamado movimento de boicote, desinvestimentos e sanções, BDS, apoiado por toda a sociedade civil e partidos palestinos.
Lembro que, no início, me disseram que seria difícil, impossível, que nunca iria acontecer. Tenho que dizer, nove anos depois, que nunca tinha participado de um movimento político com tanto êxito como esse movimento. Estamos, a cada semana, com uma nova vitória em outra parte do mundo, e nasceram novos movimentos e campanhas de boicote.  Desde movimentos sindicais, igrejas, movimentos sociais, acadêmicos, artistas, como Roger Waters [baixista da banda inglesa Pink Floyd], por exemplo, prêmios Nobel e estudantes de todo o mundo apoiam essa campanha. Estamos ganhando e nos tornando a única forma de pressão eficaz contra Israel nesse momento, para que acabe com seus crimes de guerra e cumpra a reivindicação declarada do movimento de boicote, que é o fim da ocupação, do muro, dos assentamentos, o direito ao retorno dos refugiados palestinos, já que a maior parte do povo palestino é refugiada. E também  o direito à autodeterminação de todos os palestinos cidadãos de Israel que ficaram em suas aldeias e casas quando Israel foi criado e que hoje, dentro do país, estão sofrendo discriminação legalizada, institucionalizada a todos os níveis a cada dia.
Nesse sentido, esse movimento teve um êxito nunca antes esperado. Hoje estamos em uma situação na qual, por exemplo, Tzipi Livni [política israelense do Kadima, partido centrista], que é  uma criminosa de guerra responsável por um massacre em Gaza, na última campanha eleitoral tomou a pauta do boicote. Dizia que, se Netanyahu ganhasse, teríamos uma onda de boicote. Obviamente, se ela ganhasse, o boicote continuaria. Somente digo isso para mostrar como o boicote se tornou um argumento e uma ferramenta de pressão dentro da política israelense. O primeiro-ministro Netanyahu, no início do ano, quando estava falando frente ao AIPAC [grupo de lobby sionista “American Israel Public Affairs Commitee”, ou “Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel”, em português], – e essa é, a cada ano, uma das falas mais importantes que um ministro israelense pode fazer – utilizou 27 vezes a palavra “boicote”. Um terço de sua fala foi sobre isso. Teve só uma palavra que ele utilizou mais: “Irã”.
Então, o boicote é uma forma de pressão importante e útil. Em um mundo globalizado, o movimento é sempre mais global. E tem que ser global. Não basta olhar só para os EUA e para a Europa. Sobretudo na América Latina, ou no sul do mundo, a luta contra as instalações militares é uma luta por soberania e autodeterminação dos dois lados do oceano, porque se vemos a história de relações militares com Israel, não existiu ditadura na América Latina que não foi apoiada por eles. Não existe golpe, como agora vemos em Honduras ou no Paraguai, ou movimentação antidemocrática na América Latina, que não é apoiada por eles. Basta vermos o que são os esquadrões da morte na Colômbia [grupos paramilitares especializados em assassinar integrantes de grupos armados de esquerda, como as FARC], apoiados e treinados por eles. Se esse povo aqui quer proteger-se, é melhor ver essas relações militares com Israel acabarem o mais rápido possível.
logo Como é a relação de vocês com os governos do Rio Grande do Sul e do Brasil?
MM: A relação com o governo do Brasil e com o governo do Rio Grande do Sul é boa. O Brasil e o Rio Grande do Sul apoiam, a nível diplomático, nas relações internacionais, a causa e os direitos palestinos. E, tenho que dizer, o Rio Grande do Sul fez o Fórum Social Mundial Palestina Livre. Tenho que dizer também que já viajei por muitos países do mundo e nunca vi uma abertura ao diálogo e um entendimento do que são nossas pautas de uma maneira direita e clara como aqui. Por isso acho que a relação é melhor aqui do que em outros países, porque há um avanço da democracia. Na Europa, nunca vi. Mas isso não significa que não temos críticas. Isso é uma das coisas boas, nesse momento, da política no Brasil. A crítica faz parte da democracia.
O que nós estamos pedindo nesse momento é que se faça o que se diz. Não temos problemas com o governo federal ou do estado. O problema é o que se faz a nível econômico e militar, em contradição aos compromissos políticos e ideológicos de respeito à Palestina. Acho que temos uma boa relação, pois temos uma abertura à discussão e um entendimento de que isso é um problema que se tem que solucionar. Isso não significa que não haja crítica sobre as relações econômicas e militares. Uma vez me perguntaram: para você quais são os maiores limites e obstáculos a respeito do movimento de boicote? Eu disse que, na realidade, é a falta de informação e a falta de consciência. Seja na população, seja nos movimentos sociais, que têm que fazer a luta. Se eles não se movem, não estão na rua ou não protestam, os governos não vão fazer nada, porque governos não costumam se mover por si só. Os governos se movem quando são empurrados, quando alguém puxa em uma direção.
Evidentemente, Israel quer puxar em uma direção. Se os movimentos não puxam na outra, não vai adiantar. Então, o que se tem que fazer para construir essa abertura e discussão sobre o que estamos pautando é puxar de fora, das ruas. Quando se bloqueia, como fizemos em Porto Alegre, a entrada da empresa Elbit, quando se vai às universidades para protestar, aí sim quem está no poder pode mover-se, e tem que mover-se. A luta não é contra o governo, mas contra movimentos econômicos e militares que contradizem o que o governo professa a cada dia a nível de compromisso político.
logo Até porque o Brasil reconhece o Estado palestino.
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MM: Exatamente. É um tema, quando eu falo nos ministérios ou com um governo de estado, digo: vocês têm uma grande contradição. Como vocês são protagonistas no reconhecimento do Estado Palestino, mas são os maiores financiadores das empresas que estão construindo o muro? Dizem-me que tenho razão. Isso já é um passo adiante. Quando fiz isso há cinco anos, na Europa, pensaram que estava louca. Agora estão de acordo e têm diretrizes, mas isso porque, durante cinco anos, os movimentos na Europa lutaram. Abertura para o diálogo funciona, mas somente é útil se temos movimentos que lutam. Espero que possamos lutar juntos.
logo Falando sobre a falta de informação e relacionando-a à questão do boicote e das sanções. É muito comum associar o boicote, o desinvestimento, exclusivamente a uma medida que o governo pode tomar. Como a sociedade civil, organizada ou não, pode ajudar nesse processo de boicote financeiro?
MM: O movimento não é somente financeiro. Pode ser comercial ou militar, mas pode ser um boicote cultural, acadêmico ou desportivo. Agora mesmo se pediu por um boicote da FIFA à Federação do Futebol Israelense.  Porque Israel, entre as várias outras coisas que está fazendo – matando, encarcerando – está impedindo o time de futebol da Palestina de sequer jogar futebol. E na realidade, se vê também na experiência histórica da África do Sul, com a qual aprendemos e continuamos a aprender muito – os companheiros de lá dizem que foi muito importante o boicote a nível econômico, mas quem sabe foi ao mesmo tempo importante o impacto cultural que teve esse boicote.
Os brancos da África do Sul se deram conta que o mundo não queria mais ver aquilo. Esse impacto psicológico, sociológico, foi também muito importante. Quem sabe o que foi mais importante: os Springboks [apelido da seleção sul-africana de rúgbi] não poderem mais jogar fora do país, ou o boicote por parte dos bancos estadunidenses? O que se faz muito na Europa, mas é um pouco mais difícil na América Latina, é o boicote dos consumidores, de não comprar produtos israelenses. Na Europa há muito mais produtos israelenses nos supermercados, como laranja israelense, por exemplo. Mas aqui também existem produtos israelenses, como a famosa gaseificadora SodaStream [empresa israelense sediada em um assentamento na Cisjordânia que produz equipamentos para produção de refrigerante caseiro].
Acho que um bom exemplo para entender como são as relações entre Brasil e Israel é o café. No Brasil acha-se que se está tomando café brasileiro, mas não é verdade. Três Corações, Fino Grão e Santa Clara [empresa cafeeira subsidiária da Três Corações, que não possui vínculo com a Cooperativa de Laticínios Santa Clara, sediada no Rio Grande do Sul] não são brasileiras. É o processo da desnacionalização e de dinâmica multinacional. Foram compradas pela Strauss-Elite, uma empresa israelense que também apoia o exército israelense e domina um terço do mercado brasileiro do café. Isso significa que está explorando a terra, os trabalhadores brasileiros, os consumidores brasileiros financiam tudo isso e o lucro volta para Israel continuar suas políticas de apartheid.
Não comprar mais Fino Grão, Santa Clara e Três Corações – a última, parece-me, é a mais famosa aqui – é um primeiro passo. E utilizar isso como uma ferramenta para falar: “não compre esse café porque estão acontecendo essas coisas”. E o problema não é só o café. Outra medida de boicote é, evidentemente, nas nossas instituições como as universidades. Aí entra a UFSM e o contrato com a Elbit. Muitas universidades brasileiras têm relações com Israel. Na USP, por exemplo, anos atrás começou uma luta contra um acordo de cooperação entre a universidade e a Universidade Ariel, que fica em um assentamento na Cisjordânia. E com a pressão a USP rescindiu o contrato. Os contratos que empresas podem ter, como, por exemplo, a G4S, uma empresa multinacional britânica de segurança que está fornecendo os serviços às prisões israelenses onde os palestinos estão sendo torturados.
Essa empresa está muito presente aqui no Brasil. Nos bancos, oferecendo equipamentos de segurança. E essa é uma luta para os sindicalistas, por exemplo, para dizer que não devem existir esses contratos. Outra luta, mais no norte e nordeste do Brasil, é contra uma empresa israelense de água. Na Palestina, evidentemente, está roubando a água dos palestinos, como uma ferramenta de limpeza étnica, e oferecendo-a aos colonos israelenses que estão colonizando essas áreas. Eles já têm quatro contratos, em São Paulo, Distrito Federal, Ceará e Bahia. O máximo que podem ter como consumidores, em Israel, são seis milhões de pessoas. Essa é a população total. Aqui, se faz um contrato com o estado de São Paulo, são quase trinta milhões. Essa é a vida para essa empresa.
Nesse sentido, também no nível de autoridades locais, frente ao prefeito daqui que quer trazer essa empresa. E também culturalmente, uma luta que na Europa e nos EUA é bastante desenvolvida, mas aqui ainda não vi um artista que tenha coragem de dizer “não a Israel”, que não vá a Israel para cantar por causa do apartheid israelense. Na luta contra o apartheid sul-africano não cantar em Sun City [complexo hoteleiro de luxo boicotado na década de oitenta por diversos artistas internacionais] foi uma coisa muito importante. Na Europa, muitos cantores famosos estão aderindo a esse movimento. Aqui todo mundo vai a Israel e acham que isso é normal. Isso é a naturalização da limpeza étnica na Palestina.
logo Algumas semanas atrás houve um encontro do papa Francisco com Mahmud Abbas, líder palestino, e Shimon Peres, presidente israelense. Falava-se que existe uma guerra, como se fossem duas nações em guerra. Esse discurso é forte? Como se os dois lados estivessem na mesma situação.
MM: Essa é uma das tentativas de retratar distorcidamente a realidade palestina. Como dois que brigam sobre uma fronteira. Não é isso. Uma parte é oprimida e uma parte é opressora, uma parte ocupa e uma parte resiste à ocupação. Como vou ficar de acordo quando há alguém ocupando minha casa? Somente vou ficar de acordo quando tiver meu espaço de volta. Ou que vivamos juntos, nessa casa, se todos tiverem seu espaço e seus direitos. Outro tema que se quer distorcer é que sempre houve uma briga. Digamos a verdade: já houveram muitas guerras, mas os judeus, cristãos e muçulmanos viviam tranquilamente e felizmente juntos até a construção do Estado de Israel. Até o rabino supremo de Jerusalém escreveu uma carta à ONU para que não aprovassem a partição da Palestina, porque seria criada uma guerra infinita e se destruiria a convivência dessas três religiões. E ele tinha razão, foi o que aconteceu. O problema do antissemitismo não é um problema palestino, nem sequer muçulmano, historicamente. Quem o criou foram os cristãos.
logo Dentro dessa questão, há um ponto importante: quando se faz uma crítica ao Estado de Israel, muitas vezes ela é interpretada como uma crítica antissemita, contrária ao povo judeu.
MM: Quem está abusando disso? É o sionismo. Não a Palestina, ou a luta palestina pelos direitos humanos. Muitos judeus dizem: “não em meu nome. Eu me sinto chamado à causa e vou lutar junto dos palestinos”. Quem, nesse momento, na Argentina, está lançando o boicote acadêmico a Israel? São os judeus. A Rede Internacional dos Judeus Anti-sionistas fez um trabalho ótimo. Não é somente o Relatório Especial da ONU que estamos citando. Há muitos judeus no movimento pró-palestina porque eles se sentem parte dessa causa, não tem como escapar. Não somente judeus. Uma parte – muito pequena, minoritária – dos israelenses está com a causa palestina. Estamos trabalhando juntos. É um problema de terra, autodeterminação, direitos humanos.
logo O que você viu, na Palestina, que te levou a aderir à causa do povo palestino?
MM: O que vi foi o massacre da reocupação da Cisjordânia. Foi um momento chave para mim. Estar em Rammalah no hospital quando enterravam os mortos no estacionamento do hospital, porque eram cada vez mais mortos. Criaram, no estacionamento, um enterro coletivo. Ver os mortos, ver amigos indo para o cárcere, como se fosse normal. 50% da população masculina palestina já esteve na prisão. Há tortura, humilhação, todos os abusos que fazem parte disso. Acho importante entender também que a ocupação israelense não é somente militar. É todo um sistema criado de controle de tudo o que se faz, todas as movimentações, do que se pode importar ou exportar, do que se pode ter. A Autoridade Nacional Palestina não tem autoridade nem abaixo nem acima da terra. Então não tem soberania.
Nesse sentido, foi uma experiência muito forte e pesada, mas também muito linda. Porque quando se está em uma situação de resistência, há também uma construção de solidariedade espontânea da população. Há experiências de luta, de coletividade e de generosidade das pessoas que estão dispostas a dar tudo o que têm para uma causa coletiva. É uma experiência que dá muita motivação saber que há pessoas dispostas a dar tudo pela libertação do povo. E que nós, a cada dia, podemos dar um pouco por essa causa.
Tem sempre a questão dos árabes e as mulheres, sobre como vivi essa situação como mulher. Aí também há que se desmistificar. Há, obviamente, machismo e patriarcado. Mas isso também estou vivendo no Brasil. Não encontrei um lugar nesse mundo onde o machismo não exista. Acho que isso também tem a ver com uma dinâmica contraditória de dois níveis sobre o que significa essa ocupação para a questão da mulher. Por um lado, as mulheres palestinas são muito fortes. Simplesmente, quando tu nasces e cresces brigando contra soldados e tanques, tu vais brigar também contra o homem. E muitas mulheres têm que lidar com a família sozinhas porque os maridos estão mortos ou presos por anos, e isso dá força às mulheres palestinas e também capacidade de criar um papel político na sociedade.
Seguramente, internamente à sociedade palestina, o papel feminino é mais forte do que em outras sociedades árabes da região. Por outro lado, é também verdade que a ocupação cria toda uma série de frustrações e repressão sobre os homens que se traduz, como em todo o mundo, em violência doméstica. É óbvio que é um problema e deve ser afrontado. Mas, novamente: não é um problema que existe só na Palestina. Existe aqui também. É uma sociedade mediterrânica onde me senti em casa, acolhida, fazendo parte de uma luta comum. Foi uma experiência linda.
Posso falar também sobre o tema da homossexualidade, que também é muito interessante. Porque Israel faz toda uma propaganda sobre ser a única democracia no Oriente Médio e sobre ser um “gay heaven”, um paraíso para os homossexuais. Fiz uma campanha e faço ainda, também no Brasil, sobre o fato de os árabes serem homofóbicos: é verdade, existe homofobia. Mas também há homofobia no Brasil e em Israel. Também há casos de homossexuais mortos nas ruas em Tel Aviv. Mas a resposta do movimento queer e homossexual na Palestina foi fantástica: eles diziam: “vocês, como organizações queer, lésbicas e homossexuais têm a ideia de que somos oprimidos e querem fazer algo sobre isso. Que nos apoiem na nossa luta contra a ocupação israelense. Porque todos os palestinos e palestinas somos ocupados e sofremos com isso. E vocês, estando do lado de Israel, contribuem em uma opressão tríplice que sofremos como homossexuais palestinos”. Isso funcionou sobretudo no ocidente, onde a maior parte dos movimentos queer estão apoiando o movimento de boicote. Isso, interessantemente, deu força ao movimento de boicote. Foi um momento de reconhecimento, na sociedade palestina, como parte da luta. Então foi muito interessante a desmistificação do que eles chamam de “pink washing”, de limpar a imagem de Israel fazendo-se a nação “pink”, o que não são.
logo Já falaste mais de uma vez sobre desmistificação. Qual é, então, o papel da imprensa – internacional, inclusive – na ocupação de Israel sobre a Palestina?
MM: Um papel de criação de mitos, de distorção e de bloqueio de informações, evidentemente. Acho que a Palestina está sofrendo com isso, mas todas as lutas populares sofrem com isso. Porque a lógica dos grandes meios de mídia é a lógica de apoiar quem tem o poder capitalista. Se fazes uma luta contra quem tem o poder, nunca vais chegar nessas mídias. Ao contrário, devo dizer, pelo menos na mídia em língua inglesa, como o Financial Times, o New York Times ou o The Guardian, finalmente conseguimos ter uma voz, ter um papel. É claro que nada disso chega a ser um retrato objetivo – não digo imparcial porque não acho que a mídia pode ser imparcial – mas pelo menos temos uma voz. No Brasil – na Rede Globo ou na RBS TV – não temos ainda essa voz. Isso ainda é uma briga a fazer, e sabendo que nunca conseguiremos muito. E que as aliadas estratégicas sempre serão as mídias alternativas.
logo Na tua vinda a Santa Maria, foi agendada algum encontro com a UFSM? Qual é o papel da reitoria nesse processo?
MM: Sim, encontrei-me com a reitoria. Essa nova reitoria tem que tomar a postura de dizer que nós podemos continuar a construir nossa excelência aeroespacial com parceiros éticos, que encontremos apoios éticos e apoio a nível estadual e federal. E que vamos, juntos com os pedidos dos estudantes e professores que lutam por uma universidade democrática e ética, trabalhar por um mundo melhor nesse sentido. Então tenho a esperança de que a reitoria possa acolher esses pedidos de nossa parte.
logo É uma luta histórica dos movimentos ligados à educação que o conhecimento das universidades retorne para a sociedade, e não tenha fins privados. Mas nesse caso, não falamos somente de capital privado dentro da universidade, mas de capital privado bélico.
MM: Acho que nesse sentido esse caso da Elbit reabre, inclusive, a luta contra a privatização do saber e da democratização da universidade. Então reabre-se o tema da privatização, militarização e democratização das universidades. Pode ser uma luta simbólica para discutir mais amplamente onde estão as linhas vermelhas que não podemos ultrapassar.logo
PENSAM NA TECNOLOGIA E ESQUECEM OS DIREITOS HUMANOS E A LUTA PALESTINA, pelo viés de Bibiano Girard, João Victor Moura, Gregório Lopes Mascarenhas, Nathália Costa e Rafael Balbueno.

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