Logo que me encontrou, seu Zé perguntou, desconfiado: “Tu não és P2, né?”. A desconfiança não é por acaso. Em um momento de confrontação política como o que vivemos, quem luta deve manter um pé atrás. E José Araújo, 74 anos, luta. Morador da Grande Cruzeiro, um dos maiores conjuntos de vilas de Porto Alegre, desde que nasceu, José foi voluntário na Campanha da Legalidade, defendendo a democracia contra a tentativa de golpe em 1961. Agora, mais de 50 anos depois, integra o Comitê Popular da Copa de Porto Alegre e a Articulação Nacional dos Comitês Populares. Sua casa está entre as 1600 marcadas para demolição total ou parcial graças ao alargamento da Avenida Tronco, obra que pretende escoar o trânsito de carros que não poderão passar por perto do estádio Beira-Rio durante a Copa. José concedeu ao site Jornalismo B, reproduzida pela revista o Viés, a entrevista abaixo:
Como está sendo o processo da organização da Copa na Vila Cruzeiro?
JA: Desde o início desse processo na verdade a Prefeitura não apresentou nenhum projeto, ela simplesmente marcou uma reunião na comunidade, o prefeito foi pra lá, disse que as famílias tinha que colaborar com a Prefeitura por causa da Copa do Mundo, e que 1600 famílias teriam que ser removidas da região. E as remoções teriam que ser feitas para a Pitinga, 20 km longe daqui, que é lá depois da Restinga, e que não tinha outro lugar. E a gente questionou, que sair 20 km longe da região não estava dentro da lei, que a própria lei diz que as famílias poderão ser reassentadas até 2 km longe do seu local original. Ele disse que isso não era possível, disse “nós não temos espaço na região pra fazer casa pra todas essas pessoas”. Eu disse assim: “se tu quiseres, eu conheço toda a geografia dessa região, eu posso elencar quantos terrenos estão vazios todo esse tempo e que a Prefeitura pode desapropriar, e então fazer a instalação dessas habitações. Entregamos tudo de mão beijada pra eles, eles foram pra cima, desapropriaram, e os terrenos estão lá para serem construídos com o “Minha Casa, Minha Vida”. No início eram 39 metros quadrados. E eu disse assim, “39 metros quadrados, são poucas famílias que moram em um espaço assim”, “é, mas não tem outra maneira”. “E quanto ao pagamento?”. “O pagamento vai ter que pagar à Caixa Econômica 10%. Se ganha 500 vai ter que pagar 50 por mês”. Eu disse assim: “eu fiz a minha casa, nós fizemos nossas casas, com nosso suor, nosso trabalho, não pedimos dinheiro pra ninguém, e hoje vocês querem nos tirar dali pra outra casa e nós vamos ter que pagar pela outra casa? Não vai acontecer isso aí, ninguém vai aceitar isso aí”. Tinha certeza que ia dar um movimento muito forte. No fim veio com uma história depois que mudou, que não ia ser paga, e não ia ser mais 39, foi pra quarenta e pouco, agora parece que está em 52 metros quadrados – mas eu também não sei se é verdade, porque desse governo, desse prefeito, a gente pode esperar tudo. A palavra dele não vale um tostão pra nós. Não tem ética, não tem transparência. E a gente fez vários movimentos lá com a comunidade, fizemos assembleia. Fizemos uma assembleia muito grande lá e saímos pra rua, fechamos a avenida, e aí deu aquela confusão toda. E aí ele foi pra Zero Hora dizendo que “não, eu já estou acertado com a comunidade, isso aí é um bando de baderneiros que não querem progresso, não querem a Copa”, e a imprensa marrom não dá um espaço pra ninguém, nem um líder, nem ninguém, ir lá se defender e dizer “não, nós não somos contra a Copa, não somos contra a avenida, acho que tem uma necessidade mesmo, desde 1959 tá prevista essa avenida, mas não assim de uma hora para a outra e dizer que está dentro do pacote da Copa”. Não está. O entorno do Beira-Rio, as outras mobilidades…mas essa aqui, avenida que não tá dentro do perímetro, não tá. Quer aproveitar pra ver se ganha o dinheiro, e foi justamente o que aconteceu. Então ele começou o alargamento da avenida em um lugar onde não precisava tirar ninguém, gastou bastante dinheiro ali, agora parou a obra porque não tinha mais dinheiro. A primeira coisa de errado que ele fez foi que não trouxe nenhum projeto de habitação para as famílias, trouxe simplesmente um mapa dizendo assim, ó: “as casas já marcadas tinham que sair”. Não trouxe um projeto pra discutir com a comunidade, isso é uma falta de respeito.
JA: Não houve. E aí vem dizer que a gente é baderneiro. A gente não é baderneiro, a gente quer que aconteça tudo isso, mas que os nossos direitos sejam respeitados.
Como a comunidade conseguiu se mobilizar em torno disso?
JA: Quando aconteceu tudo isso as lideranças se mobilizaram e começaram a chamar o povo pra fazer assembleias, reuniões, pra discutir tudo isso aí. E de fato no início teve bastante…mas aí existem preocupações. Se tu passar por lá vai ver que tá parecendo o Iraque, o Afeganistão, tudo demolido. E as pessoas ficam impressionadas, “se eu não sair vão derrubar a casa comigo em cima”. É uma pressão psicológica, é um horror o que está acontecendo lá”.
E o processo de construção do “Chave por Chave”, como foi?
JA: Justamente foi em uma assembleia que a gente teve antes do Prefeito. Eles marcaram uma reunião com a comunidade pra apresentar a empresa que ia fazer o cadastro socioeconômico das famílias. Fazer o levantamento, quantas pessoas moram, o tamanho da casa, essa coisa toda. Marcaram lá e a gente disse que não ia fazer cadastramento nenhum se o prefeito não fosse lá para dar explicações sobre o que estava acontecendo. Eles marcaram, chamaram a comunidade e a comunidade foi, mas quando chegaram já disse “olha, não vai ter reunião”, eu disse pro pessoal, “deixa eles abrirem, quando eles terminarem deixa comigo”. Aí o DEMHAB, começaram a falar, e assistente social. E eu disse “em primeiro lugar, pode parar com isso. Hoje não vai sair nenhum encaminhamento pra que o cadastro se inicie, nós dissemos que não ia começar se o prefeito não estivesse aqui, então vocês podem embrulhar todos os pacotinhos de vocês e irem embora”. E o povo começou, ninguém aceitou, e dissemos que nós não queríamos nem o aluguel social, nem o bônus moradia. Que quando a Prefeitura entregasse a chave da casa nova, a gente entregaria a chave da casa velha. E a gente fez um movimento grande, tem camiseta, tem adesivo. Tentamos de todas as maneiras. Está um pouco parado agora que as obras estão paradas. As obras estão paradas, não há dinheiro pra nada. Se tu passa dentro da cidade tu vês que o negócio tá muito devagar.
Com essa mobilização já foram alcançadas conquistas?
JA: Uma das conquistas foi essa, de a gente não sair da região, que quem quiser ficar na região, fica ali. Mas ele já fez errado que a primeira coisa que ele tinha que ter feito era contratar a empresa pra fazer as moradias. Mas iniciou primeiro a obra, achou que todo mundo ia sair.
Participas de organizações dentro da Cruzeiro?
JA: Dentro da Cruzeiro agora não, agora só estou no Comitê. Existia, uns anos atrás, a União de Vilas da Grande Cruzeiro, antes eram umas 30 associações de bairro ali lutando sozinhas contra o governo. E aí numa reunião que a gente fez em uma das comunidades, a gente achou que o melhor seria ter uma entidade que congregasse todas essas associações pra ter mais força pra lutar contra o governo. Aí foi fundada a União de Vilas da Grande Cruzeiro, que reunia todas as associações, no espaço que era do IPE, na Cruzeiro mesmo, um espaço que eu conhecia também fazia muitos anos, um espaço grande, enorme. E a gente ocupou aquele espaço lá com umas barracas pretas. Ficamos ali, veio a Brigada, a gente resistia. Fogo no meio, fazendo a comida, vinha a gurizada…contratamos umas professoras…não tinha escola ali, elas davam aula embaixo da lona pra esse pessoal. Depois a gente conseguiu montar uma sede e a escola foi feita lá. Era na época de 1988, que o Olívio era candidato. Aí convidamos todos os candidatos pra ir pra lá, pra discutir que a gente queria que eles desapropriassem, fizessem alguma coisa ali pra gente fazer as casas das pessoas, desafogar um pouco das vilas. E o Olívio chegou lá pra subir o barranco de barro, chovendo, os brigadianos tiveram que ajudar ele. E então ele tomou conta do barraco. Pra início de conversa, eu nunca fui filiado a partido nenhum, eu não torço pra partido nenhum. E a gente conversou e depois que ele foi eleito ele fez uma negociação com a Prefeitura e o IPE. Eles tinham uma área na frente da Zero Hora que era ali a Imperadores do Samba, a escola. Ali era da Prefeitura e aquela era do IPE. Aí fizeram uma permuta ali, aquela área pela do IPE, pra fazer as casas. Foi tudo feito como mutirão, as famílias trabalhavam fim de semana, ajudando pedreiros que são de profissão…e foi indo e era uma atividade boa, e ali tinha bastante força. Aí eu fiquei cinco anos na coordenação e cansei, aí passei pra outros, eu andava meio ruim de saúde também.
A tua participação em mobilizações, em militância, é de longa data, então?
JA: Sim, eu sempre fui muito…na época que não podia, não tinha a não ser apelar em abaixo-assinado pra vereador, pra deputado. Naquela época não tinha como chegar neles a não ser com isso aí. O Morro Santa Tereza não tinha água, não tinha luz, não tinha ônibus, não tinha nada. E todos os equipamentos que tem lá hoje foram conquistados através disso aí. Ou depois que já passou esse tempo de abaixo-assinado teve o Orçamento Participativo, que hoje é negativo, no início se conseguiu muitas coisas, mas agora não. A luta tem sido muito árdua. Desde 73 mais ou menos que eu estou na luta sempre diária. Agora estou mais ativo, a minha casa vai ser atingida também…
JA: Não, eu não pretendo sair de maneira nenhuma. Até eu fiz algumas convocações de uns parceiros, o Fernandão que é dos Amigos da Terra, a Claudia que é arquiteta, e um advogado. Aí eu entrei ano passado com o processo de uso-capião daquela área. Mesmo eu já sabendo que lá no fundo do terreno sai metade de casa, eu entrei com uso capião, porque aí fica mais difícil me tirarem dali. Até agora eles não me procuraram, porque sabem que eu sou osso duro de roer.
A comunidade, especialmente os que estão sendo atingidos, queriam a Copa antes? Querem agora? Como é essa relação com a Copa do Mundo?
JA: O problema da Copa tu sabes que é tudo euforia do momento, né. Quando se vê Copa do Mundo, o Brasil campeão não sei quantas vezes, todo mundo ama o futebol…todo mundo não, mas a maioria. Então que bom, né, que vai vir a Copa. Só que não sabiam de todo esse processo que ia vir. Muitos que estavam apoiando já não apoiam mais. Vejo muito na rua que “não vai ter Copa”, e coisas assim.
E os atingidos por essas remoções?
JA: Ah, esses não querem mais, né. Esses se pudessem implodir o Beira-Rio lá eles implodiam.
A comunidade da Cruzeiro vai ganhar alguma coisa com a Copa? De alguma forma a Copa do Mundo vai ser benéfica pra essas pessoas?
JA: Quem é que vai ganhar com a Copa do Mundo? Provavelmente a Fifa, secretários, ministros, governo, que vão ganhar um bom dinheiro em cima disso aí, vão embolsar vários milhões de reais pra eles…porque eles não estão fazendo graça para o diabo rir. Eles vão ser beneficiados. A população em todo o Brasil não vai ser beneficiada com nada. O que vai ficar de bom pra população? Beira-Rio, bom, particular, vai ficar talvez bonito, o entorno tá virado numa mixorda. Nas outras capitais a mesma coisa. Não tem nada de benéfico. O legado da Copa vai ser bom pra quem tem dinheiro. Pra quem tem carro, vai ficar bonito pra eles andarem, o transporte coletivo vai continuar a mesma porcaria. Se fosse pra melhorar tudo isso e fizesse um processo de que o transporte ia ser bom…eu até não sou muito de ser gratuito, tem muitos que estão defendendo. Mas pelo menos que fosse decente, com um preço que coubesse dentro do salário das pessoas, e não acontece isso aí. Em todo o Brasil. Na África do Sul, 12 mil famílias estão até hoje morando em casas de lata, em contêineres. Famílias que foram removidas com a promessa de voltar, e não vão, vão morrer ali. Em todos os lugares onde a Fifa passa com esses mega eventos, não fica nada para a população, principalmente para os mais pobres. Porque esses não têm vez mesmo. A avenida é boa pra quem tem carro, que vai se deslocar. Mas as pessoas que não vão sair porque não estão dentro do traçado e vão ficar na volta. E essas famílias que ficaram, amanhã ou depois vão começar a chegar as empreiteiras pra tentar comprar a casa das pessoas. Ali é uma área nobre, então eles vão começar a pressionar as pessoas pra sair.
A maioria dessas pessoas que estão sendo removidas mora ali há bastante tempo?
JA: Sim. Ninguém mora há menos de dez anos. Eu moro ali onde estou agora há 40 anos. Nasci na região, lá no Morro Santa Tereza, 74 anos eu faço agora, nunca saí da região, e só ali faz 40 anos. E assim é. Meus vizinhos também…
Com todo esse histórico e tendo em vista como está sendo feito aqui, a Copa poderia ter sido feita de uma forma que beneficiasse a maioria da população?
JA: Com certeza até um leigo sabe disso aí, e eu sou bem leigo. Se em 2007, quando foi decidido que a Copa seria no Brasil…não precisa ser nem em 2007. Se em 2009 o governo tivesse se movimentado, feito todos os projetos, encaminhado tudo pra licitação, pra obra disso, pra obra daquilo, pras casas que tinham que sair…daria tempo tranquilo pra que chegasse agora…agora já estaria tudo pronto pra Copa do Mundo, se tivessem um projeto viável pra isso aí. E não sei nem se o Beira-Rio vai ficar pronto pra receber a Copa. Tomara que não. Aliás, eu até quero que termine porque é um clube de futebol, cento e tantos anos…mas pelo governo eu preferia que não saísse em lugar nenhum a Copa. Porque é um desespero, é um horror o que eles estão fazendo com a população. E não foi por falta de encaminhamentos. Nós fizemos vários encaminhamentos, fizemos relatórios, fizemos dossiês. A gente fez vários encaminhamentos aqui desde o início, pra Procuradoria, para o Ministério Público Federal, fizemos uma assembleia com o Ministério Público Federal, Estadual, Prefeitura e as comunidades. Alguns encaminhamentos foram tirados lá, não foram respeitados. Tudo isso foi encaminhado, toda essa documentação a gente fez, tem tudo protocolado, mandamos pra Maria do Rosário, também, dos Direitos Humanos, toda essa documentação e não resolveu nada, não tem nada. Não tem nem “o, seus abostados, vocês vão ter que sair daí mesmo”. Não teve nem resposta. É isso que o governo tem de transparência com a população? O povo tá sofrendo todas as amarguras porque o governo não tem uma boa gestão, não vai ter nunca uma gestão decente, que pense no povo. Eles pensam neles, “eu to ganhando, botando no meu bolsinho uma propina daqui, outra dali, das empreiteiras, da Fifa, e os outros que vão pro raio que o parta, isso é que é o importante”.
Como tu vês a forma como a mídia retrata a questão da Copa e as lutas contra as remoções?
JA: É difícil, né. Se tu pegares todos os jornais da época, tu vais ver que nenhum deles se interessou em procurar as comunidades pra saber o que achavam do que estava acontecendo. Alguns até fizeram, o Correio do Povo fez alguma reportagem, o Correio do Povo, também, alguma coisa interessante a favor da comunidade. Mas o resto dos jornais, Zero Hora, então…esses outros jornais que tem por aí afora, esse O Sul…isso aí é tudo uma panela só, eles não têm como chegar na consciência e dizer: “eu to dizendo pra vocês que as violações estão acontecendo, que o povo está sendo pisoteado”. Não. Estão dizendo “ah, é uma obra necessária, então tem que ser feita, só vamos ter que amenizar a maneira de fazer esse processo”. Mas eles não se empenham a fundo de dizer que está tudo errado.
O que os movimentos sociais e as organizações podem fazer ainda nesses últimos meses?
JA: Bem, não tem muito o que se possa fazer pela via judicial, porque até agora a Justiça não fez nada por nós, nem promotoria, nem defensoria, nem ministério, nem presidência, nem governador, então a única maneira de a gente fazer alguma coisa e pressionar, é o povo na rua. Todas as conquistas, desde que eu me conheço por gente, foi com bastante povo na rua, pressionando. Naquela época não faziam muita quebração, mas hoje os jovens estão mais dispostos a enfrentar a polícia. Naquela época a gente também apanhava bastante, naquela época da Legalidade eu fui um dos voluntários, a gente também era pressionado. Mas hoje a garotada e mais os coroas que estão se misturando estão fazendo uma pressão mais forte, e uma maneira de mostrar que o povo não tá satisfeito é essa, é quebrar a Zero Hora, quebrar os bancos que financiam toda essa sem-vergonhisse que está por aí. O povo na rua tem que fazer um movimento grande pelo menos pra pressionar pra mostrar para o mundo que a Copa do Mundo não é toda essa beleza que a Fifa mostra em vídeos, em cartazes, e que é benéfica para o país que recebe a Copa do Mundo. A Copa do Mundo só serve mesmo pra quem tem dinheiro.
JOSÉ ARAÚJO: “A COPA SÓ SERVE MESMO PARA QUEM TEM DINHEIRO”, pelo viés de Alexandre Haubrich*
*Haubrich é jornalista, editor do site JornalismoB e escreve para a revista o Viés.