UMA BIBLIOTECA EM CADA ESQUINA

Uma rápida olhadela pela Saldanha Marinho basta para nos situar no espaço-tempo da Feira do Livro. Os ares de maio, indecisos entre o assanhamento do frio e a intermitência do veranico, a luz característica do outono, o vai-e-vem entre as bancas amarelas, os olhares absortos nos títulos: tudo indica que é chegada a época do ano em que a praça fica repleta de livros e leitores; gente de todas as idades – da mais tenra à mais madura – no tráfego lento da curiosidade, vagando na procura do tropeço com a capa que há de guardar a próxima leitura.

E é sempre bom ver a praça assim. Com todas as limitações que podem nos provocar algumas ressalvas (a estrutura que, reincidentemente, cede às chuvaradas da temporada, o excesso de bancas com livros de autoajuda e congêneres fajutos), ainda preservamos a impressão que estes poucos dias de feira comportam muito bem a ideia de convívio público. Ainda que a feira seja essencialmente comercial, é inegável o seu apelo mesmo para além do consumo. Há teatro, música e debates de boa qualidade ali – estes sim, sem custos para quem circula pela Saldanha.

E tempo de Feira do Livro é também uma boa oportunidade para pensarmos sobre o luxo que consiste no ato de comprar um livro hoje. Livro é coisa cara, e por isso mesmo, um símbolo de distinção – quando não de segregação. Afirmar a paixão pela leitura não pode nunca ser um manifesto de alienação: considerar-se elevado espiritualmente pelo bom gosto literário é ignorar as causas dos baixos índices de leitura no Brasil. É virar as costas para a precariedade de condições existenciais que determina quem lê e quem não lê, quem domina os códigos da ‘alta literatura’ e quem, privado do direito ao acesso, se vê diante do desafio de inventar sua própria poesia, com os recursos quem tem a mão.

O espaço deste texto é exíguo, e a reflexão sobre o tema, inesgotável. Mas mesmo ciente da pouca profundidade implicada no esboço de pensamento, eu não deixaria de fazer uma provocação: quem reivindica hoje a valorização da arte e da literatura, estaria ciente das mil formas com que os sujeitos à margem da cultura oficial reinventam linguagens e suportes, driblando obstáculos para redefinir o que é ou não poesia?

Seria forçosa uma associação entre a poesia concreta e o pixo, ou entre o verso livre e as batalhas de hip-hop, por exemplo? Entre o registro artístico da performance e do happening e o risco de escalar prédios para, contra todas as convenções, intervir esteticamente na cidade?

Longe de mim as equações que explicam tudo pela falta, e reduzem tudo ao esquema simplista de causa e efeito. Tampouco acredito em ‘iluminar’ outros indivíduos, como se este ou aquele repertório cultural fosse o legítimo – e o outro, passível de recriminação  e reintegração à norma.

Mas também não me apressaria em descartar a relação entre a insuficiência dos serviços básicos e o anacronismo da educação com os improvisos criativos que ocupam os ambientes urbanos. Menos para explicar e enquadrar as novas linguagens, e mais para atestar a nossa ignorância e inércia frente aos incontáveis modos de fazer arte na atualidade.

A questão que me aflige é mais no sentido de, ao fazermos o papel de entendidos e preocupados com a falta de cultura (sic) alheia, estarmos justamente provando a nossa insensibilidade abissal para com toda a manifestação artística própria do nosso tempo, mas não necessariamente apegada aos mesmos valores que cultuamos.

A Feira do Livro está na praça; mas será que nos basta uma feira e uma praça?

Esta semana, Santa Maria perdeu um poeta que nunca será nome de rua, nem ganhará busto na praça. Dificilmente alguma Casa do Poeta, dessas esgueiradas preguiçosamente à sombra dos cânones, lhe concederia a honra da ‘imortalidade’. Cantava rap nas esquinas de sua comunidade e em eventos ignorados pelos cadernos de cultura. O nome do rapaz era Igor, mais conhecido como Magrão.

A morte do Magrão, aposto, não será lembrada nos versos das confrarias amigáveis e mornas de poetas ‘bem-apessoados’.

Na África, segundo me contaram, diz-se que quando um velho ou um sábio morre, com ele incendeia uma biblioteca inteira. Acredito que com a morte de alguém como o Magrão, em cada esquina da cidade uma biblioteca incendiou.

Não demora, o mesmo espaço hoje ocupado pelas bancas de livro e pelas boas conversas que derivam das páginas folheadas darão lugar aos famigerados comícios do ano eleitoral. Saem de cena os poetas e apaixonados pelos livros; entram para fazer seu jogo os candidatos e sua retórica circular, impregnada do vale-tudo das urnas, que guardam pouco da ideia de democracia e res publica, mas dizem muito sobre o atual estado das coisas no circo do poder. Fala mais quem paga mais, e paga mais quem pode comprar o direito de ser mais igual que os outros. É o que temos pra hoje.

A pergunta que eu faria para um candidato que se diz preocupado com a cultura na cidade, é se ele teria a disposição e a honestidade de investir menos em tiros e mais em incentivo para os ‘Magrões’ que, infelizmente, não são os homenageados de solenidade alguma.

Mas estão lá, aqui perto, transbordando de vontade de fazer poesia. Do seu jeito, na sua língua, sem fazer concessões aos donos do bom-gosto.

UMA BIBLIOTECA EM CADA ESQUINA, pelo viés de Atilio Alencar*

Originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br

* Atílio Alencar é produtor cultural e midialivrista, formado em História pela Universidade Federal de Santa Maria.

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