[OBITUÁRIO] GABO EM SEU LABIRINTO

O resto eram as trevas. […] Examinou o aposento com a clarividência de quem chega ao fim, e pela primeira vez viu a verdade: a última cama emprestada, o toucador lastimável cujo turvo espelho de paciência não o tornaria a refletir, o jarro d’água de porcelana descascada, a toalha e o sabonete para outras mãos, a pressa sem coração do relógio octogonal desenfreado para o encontro inelutável de 17 de dezembro, à uma hora e sete minutos de sua tarde final.

Simón Bolívar Imagem: Divulgação

Essa frase é tirada do final de O General em Seu Labirinto (no link, leia Estante sobre o livro publicada no viés em fevereiro de 2011), livro que fala sobre a grande viagem que o general Simón Bolívar fez em seus últimos dias de vida. A frase se encontra no final do livro e bem que pode resumir o labirinto que o seu autor sentiu nos últimos anos. Aconteceu que o mundo sentiu um torpor no final da tarde desta quinta, 17 de abril. Um susto grande que, principalmente, a América Latina sentiu. Desde suas veias abertas, seus rios profundos, suas vidas breves, suas chamas no chão, seus grandes sertões, seus heróis e tumbas, tudo que América Latina tem em sua essência artística sentiu a partida de Gabo: Gabriel García Márquez.

Cidadão de Aracataca, Colombia, Gabo se interessou pela primeira vez na atividade atroz da literatura quando leu “A Metamorfose” de Franz Kafka. Depois que leu a derrocada de Gregor Samsa ele pensou: “então eu posso fazer isso com as personagens? Criar situações impossíveis?”. Desde aí, de 1947 em diante fez graduação em ciências políticas mas desistiu para dedicar-se ao jornalismo. Não há que contestar que Gabo foi um entusiasta apaixonado pela labuta do jornalismo, tanto é que “Ninguém Escreve Ao Coronel”, “O Veneno da Madrugada” e alguns contos de “Os Funerais da Mamãe Grande” são obras com a linguagem concisa do periodismo. Cinéfilo crítico, correspondente internacional perseguido e ativista político, Gabo laborava os deveres do jornalismo como uma criança brincando em um campo aberto.

“Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre” Gabo sobre o jornalismo.

Gabo teve muitas vidas: viveu uma pequena cidade de atos impossíveis, famílias destinadas ao fim e borboletas amarelas, a cidade: Macondo; viveu a ideia de pensar que a luz era como a água e outras pequenas historietas insólitas; histórias de amor tão distantes de lugar, de tempo, de vida, de morte e de cabelos longos; a espera de um coronel por sua renúncia; o relato fidedigno de sequestros de jornalistas tramados por Pablo Escobar; um país de um ditador velhaco e conselheiros corruptos. Gabo é muitos de seus personagens, suas criações, seus mundos. Seu mundo.

Em 2009, a mídia anunciou que Gabo não escreveria mais, nem aos leitores nem aos coronéis. Porém, ele mesmo disse que “a única coisa que faço é escrever”. Seu amigo e colega de letras, Plinio Apuleyo Mendonza comentou que ele estava escrevendo uma história de amor. Seu último romance foi o nabokoviano “Memórias de Minhas Putas Tristes”.

“[…] Avistou no céu pela janela o diamante de Vênus que ia embora para sempre, as neves eternas, a trepadeira nova cujas campânulas amarelas não veria florescer no sábado seguinte na casa fechada pelo luto, os últimos fulgores da vida que nunca mais, pelos séculos dos séculos, tornaria a se repetir.”

Gabo (ilustração de Rafael Balbueno)

É bem possível que Gabo estivesse no final de sua vida em um labirinto. Como o general, ele estava fazendo uma viagem a si mesmo para encontrar o mundo de fantasia, de maravilhas, de pessoas simples, de um onírico lado dos latino-americanos. Como há se sair desse labirinto? Quando há de se sair de um labirinto, você pensa que conseguiu resolver um quebra-cabeça complicado e desgastante, como é a vida e suas realizações. Gabriel conseguiu sair desse labirinto chamado vida e será lembrado para sempre nos seus. Gabo, senhor muito velho, adquiriu suas asas enormes.

GABO EM SEU LABIRINTO, pelo viés de Leonardo Pereira Cortes *

* Leonardo é acadêmico de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

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