Em outubro do ano passado, Bruno Cava, que mantém o site Quadrado dos Loucos, filósofo do Direito que escreveu A multidão foi ao deserto (AnnaBlume, 2013) sobre os protestos de junho a outubro, esteve em Santa Maria junto de Talita Tibola, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), para a segunda edição do evento Cidade em Transe, no Boteco do Rosário, com o intuito de reunir representantes dos movimentos sociais da cidade para discutir orientações e posições. Aproveitando a oportunidade, a revista o Viés os chamou para uma entrevista de apresentação da Uninômade, da qual ambos participam. Também participou Leonardo Palma, de Santa Maria, outro integrante da Uninômade.
Procuramos abordar os pontos teóricos que constroem a abordagem da Uninômade sobre a realidade, nos aproximando de conceitos que são largamente discutidos nos materiais produzidos por esse grupo (ver Revista Global), tal como multidão, êxodo, enxame, mestiçagem. A partir daí, discutiu-se a forma atual de apresentação do capitalismo — o capitalismo cognitivo — e as formas de enxergá-lo criticamente. Através da copesquisa, a Universidade Nômade se dispõe a construir o conhecimento através da vivência e do encontro com as práticas do que está acontecendo pelas ruas. Assim, traz uma leitura dos movimentos sociais que os transformam em uma grande multidão multifacetada, que se articula para todos os lados, que promove, também por meio de seus afetos, uma transformação nos rumos da vida e da política.
Na época da entrevista, havia recentemente ocorrido as grandes manifestações de junho e o país estava arrefecendo, as pessoas tentando localizar os acontecimentos em um panorama mais amplo, o que trouxe o assunto para perto da nossa roda de conversa. Durante as manifestações, por exemplo, muitos grupos partidários — PT, PSDB, PSOL, PSTU — foram expulsos. Falamos sobre pontos cruciais da manutenção do sistema, como a ideia de sucesso, impulsionada pelas novas condições materiais de fomentação direta de renda, apresentando paradoxos no desenvolvimento de uma nova classe média. Paradoxo que se encontra no próprio sequente fechamento de diálogo entre movimentos e Estado, com o governo Dilma. Também foram retomadas as críticas ao Fora do Eixo, tratado como uma empresa cultural 2.0.
De onde vem a Uninômade?
BRUNO CAVA (BC): A Uninômade vem de uma tradição autonomista. Ela nasce de uma leitura da esquerda e você está em um momento em que é necessário fazer movimento, que é necessário se organizar politicamente além da representação, ou seja, além das instâncias partidárias, sindicais, além dos governos. Você tem de valorizar a autonomia dos movimentos. Então, dentro dessa tradição, desse meio autonomista, que, aqui nas Américas, talvez o grande precursor foi o Zapatismo, em 95, com o encontro em que participaram vários autonomistas do mundo inteiro, encontro que teve em 1995 em Chiapas [México], qualificou bastante as lutas daqui, na época das lutas da alterglobalização, do círculo de ação global, todo esse movimento que teve na virada dos anos 90 para os anos 2000 de tradição autonomista da esquerda.
Nesse contexto, surge um grupo no Brasil de professores, intelectuais e ativistas ligados seja a militância dentro da universidade, que encampou o discurso das cotas em um momento em que ele era profundamente desqualificado como um discurso ingênuo, como um racismo às avessas; quanto à reforma universitária, no começo do governo Lula, nos anos 2000; ativistas dos cursinhos pré-vestibulares para negros no Rio de Janeiro, foi muito forte dentro desse grupo; alguns elementos do movimento das rádios comunitárias, alguns elementos do movimento indígena e coletivos de tradutores e intelectuais que trabalhavam a teoria e os conceitos do ponto de vista autonomista. Nesse momento se forma um grupo, com algumas figuras-chave, dentre elas o próprio Leonardo, que está aqui, e a Bárbara Szaniecki, que é designer. Tem o Giuseppe Cocco, que é professor da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]; a Ivana Bentes, também professora da UFRJ; o Alexandre Nascimento, que é o organizador do cursinho pré-vestibular para negros; o Wallace Rangel, que é ligado ao movimento das rádios universitárias; Tatiana Roque, que também é uma professora muito engajada.
Assim se forma um grupo dentro dessa tradição autonomista, dentro de um momento em que você tem uma falta concreta, alguns pontos concretos de atuação, e começa a produzir conhecimento a partir disso. Começa a produzir textos, produzir mídias, produzir revistas – a Revista Global é da Uninômade, surgiu com a Uninômade e começa a participar de um debate público, começa a interagir dentro tanto de um debate mais ativista quanto de um debate mais intelectual, principalmente no Rio de Janeiro.
A Uninômade fala de conceitos como multidão, enxame, êxodo e produção do comum. De onde vêm e o que significam?
BC: Esses conceitos são conceitos da tradição autonomista. São tentativas de você pensar a organização política, a mobilização política e a produção do político, a produção de forma de vida, que ao mesmo tempo eles afirmam uma alternativa ao mundo do trabalho, ao mundo normatizado, a essa estrutura da sociedade normalizada. Ao mesmo tempo que é micromolecular, tem uma ideia de você — ao invés de ser pautado pelo Estado, pelos partidos, pelo governo — você pautar os partidos e o governo. Você pensar que o mais produtivo, o mais rico, o mais abundante, o mais imediato é o movimento, é a luta, por exemplo, da mulher, do negro, dos movimentos sociais sem terra, sem teto, produção de mídia alternativa, dos midialivristas, das rádios comunitárias, do software livre, ou seja, o que tem de mais rico é imediatamente a autonomia desses movimentos.
Por exemplo, o conceito de multidão se opõe ao conceito de povo. O povo você precisa de uma unidade, de um Estado que determine uma nacionalidade e o povo é todo aquele que faz parte da nacionalidade. O conceito de multidão tenta pensar isso sem passar por essa integração através do Estado-nação. Ela pensa justamente a partir da singularidade, das diferenças que existem entre os movimentos, ou seja, ela vai permitir que militem juntos os camelôs, que os hackers militem junto dos cursinhos pré-vestibular para negros. A multidão é uma tentativa de você traduzir teoricamente essa luta a partir dos movimentos.
O êxodo, por sua vez, é o conceito para você não fazer o enfrentamento direto, você não tentar disputar o poder, ocupar o poder pra ser o Estado. É você entrar em êxodo em relação ao Estado. Criar formas de governar, de se relacionar, que não precisem do Estado. Então, você cria a utopia de um mundo sem Estado no lugar de disputá-lo. Ao invés de a gente ficar disputando o poder, vamos transformar o poder, vamos sair e criar fora dessa estrutura.
E enxame é a ideia de você não ter uma vanguarda revolucionária, não ter um grupo de iluminados que estão ali para conscientizar as massas e dirigir a forma revolucionária. O enxame é quando as singularidades se juntam em determinado momento, atuam e, depois, sem formar instituições, elas se dissolvem. É a luta em tempos em que você tem a ação de um poder muito molecular, muito controlador, que é o biopoder, ou seja, um poder modulado de controle dos corpos e que você não pode se expor tanto, então age como enxame.
Vocês têm um manifesto que diz assim: “ao fim de um ciclo, abrem-se amplas oportunidades e cabe a nós transformar a crise da representação e do capitalismo cognitivo em novas formas de democracia absoluta”. Quais as formas que a Uninômade pensa, como ela pensa? O que ela quer dizer com multidão multifacetada?
LEONARDO PALMA (LP): Posso fazer uma brincadeira? É uma sacada que, ao contrário de todo o discurso clássico da esquerda, de que o sujeito era o capital, sempre a figura do trabalho aparecia como trabalho vivo completamente determinado pelo trabalho morto, a sacada é de que a gente vive em uma fase em que houve uma inversão. A potência da vida se colocou em uma escala onde a centralidade é a do trabalho vivo. Então, não tem nenhuma esfera que não tenha sido afetada e transformada pela afirmação, pela presença, pela tomada de palavra do trabalho vivo. Nesse sentido, o conceito de trabalho imaterial, capitalismo cognitivo, seja o que for, tenta pensar porque, em algum momento como hoje, a composição de classe numa escala tão potente que o conceito de vida se opõe ao capital. Em qualquer lugar onde a vida seja afirmada, ali a resistência, a composição de classe se coloca em uma escala inédita. Essa é a transformação que determina o lugar heurístico da hipótese operarista. Só que a percepção disso coloca uma posição radical: é da singularidade de cada modo de vida que essa potência aflora e se efetua. Quer dizer, não é por acaso que a resistência ganha escalas absurdas hoje. Assim, conceitos aparentemente abstratos como multiplicidade, multidão — não é teoricamente que se efetuam. O conceito de povo depende do território nacional, de uma hierarquia e uma centralidade que pode ser localizada na fábrica, na indústria, na estrutura administrativa. De repente, o que aparece com essa afirmação da potência de vida é uma proliferação abundante, rica, exuberante de afirmação de vida e resistência que é incontrolável. Não tem um regime discursivo que dê conta dela, que determine um controle. O único controle possível é indiretamente com o sistema financeiro tentando de alguma maneira parasitar, em uma escala aparentemente abstrata; e o outro modo é a repressão direta e violenta militar e a guerra contra o povo. É a guerra de todos os Estados contra todos os povos. Porque a centralidade do trabalho vivo colocou uma composição de classe inédita; ela é heterogênea, ela é completamente múltipla, não tem a figura da homogeneidade, da centralidade que a modernidade propôs, da figura do sujeito histórico da transformação que fosse um partido, que fosse o sindicato, que fosse uma estrutura organizativa centralizada e hierarquizada com líderes repetindo de maneira industrial o modelo da organização capitalista moderna.
Dentro ela é heterogênea, mas a repressão fez o estado econômico, o estado social, estado político para um mesmo público oprimido. Público que é heterogêneo em si, mas quando é o Estado contra ele, ele volta a ser homogêneo ou não?
LP: Ele é contra qualquer manifestação de vida na sua diversidade — essa é a questão. Por isso a escala de composição de classe hoje, essa coisa de composição de classes é fundamental.
BC: Estou totalmente de acordo com esse painel que o Leonardo falou, mas para tentar, digamos assim, dar mais uma realidade para a questão. Primeiro lugar, a Uninômade não pensa em um modelo para a sociedade, não se propõe a pensar soluções ótimas para nenhum dos problemas. Pelo contrário, tem uma questão metodológica que é você construir todas as soluções, você construir todas as propostas alternativas a partir de lutas que já estão acontecendo. A Uninômade com uma leitura autonomista e materialista, ela vai se apoiar sobre o que já está acontecendo na sociedade, as resistências que estão acontecendo, os lugares em que há uma produtividade onde você tem movimentos criando, discussões ricas, onde você tem uma produção excedente. A partir disso, a Uninômade propõe criar redes, formas de comunicação, formas de gerar um comum sem desrespeitar as diferenças.
Então, por exemplo, vou pegar os camelôs, que é um movimento que a gente vê bastante. Os camelôs para o Estado, para a cidade, sobretudo para a cidade clássica, são trabalhadores precários informais cujo destino, dentro da normalidade, é ser integrado no mercado de trabalho informal recebendo os direitos trabalhistas, terem um lugar para trabalhar e pagarem impostos assim fazendo parte do sistema econômico, no sentido formal e, assim, na cabeça desse Estado, eles estariam incluídos no modelo. Como é que seria o pensamento autonomista dos camelôs? Esse seria o pensamento de uma esquerda estadista, uma esquerda trabalhista. No pensamento autonomista, os camelôs não estão na rua simplesmente porque eles estão em uma situação de privação, não estão na rua porque eles precisam estar na rua somente. Eles estão na rua pois estão criando uma forma de trabalhar, uma forma de se relacionar com a sociedade, um tipo de mobilidade na cidade, um tipo de relação com a rua que é diferenciada em relação ao trabalho formal. Então, na verdade, eles não querem ser conhecidos como trabalhadores formais, eles querem ser conhecidos como trabalhadores informais. Eles não querem o direito ao trabalho, eles querem o direito ao trabalho informal, ter uma renda para estar na rua, uma oportunidade sem apanhar da guarda municipal. Então, o pensamento de uma democracia absoluta nesse caso seria pensar a rua não no ponto de vista visto de cima, uma prefeitura que organiza o trabalho, organiza a ocupação da rua a partir do direito ou a partir de uma visão do emprego, seria uma visão de baixo. Como o camelô pensa a rua? Ele pode ganhar até mais dinheiro, mas não é uma questão de ganhar mais ou menos, é que ele entende aquele público.
Quem não gosta de um camelô? Está num evento na rua e tem alguém vendendo água ali do teu lado, ou em um show. Até as pessoas que moram na zona sul, o ponto mais conservador, não são contra os camelôs; quem não tem uma relação com o camelô de, por exemplo, você compra um CD, ele dá problema e o camelô troca para você; você tem até a questão da democratização dos bens culturais, ou seja, isso foi só um exemplo, a gente pode pensar tudo a partir disso. Os sem-teto, sem-terra, ou seja, a possibilidade de se criar não a partir de modelos dos especialistas, mas criar a cidade a partir de seus viventes mesmo. Isso é democracia no sentido multitudinário e não no sentido povo.
Você acabou de falar agora do movimento como ele é e a partir do que ele é e, no início da nossa entrevista, falou do movimento zapatista. A Universidade Nômade tem também essa preocupação de não ser uma ciência dura, branca e heteronormativa, como o zapatista é, uma criação popular? Tem essa preocupação de uma voz da rua também ser publicada em um artigo, em um livro?
BC: A Uninômade tem um método de pesquisa. Na verdade, é um método de pesquisa autonomista que tem várias nomes, várias vertentes, mas a Uninômade adota o termo copesquisa. Ou seja, o conhecimento, ele é produzido no tecido social, em lugares onde ocorre resistência, onde ocorrem ocupações, onde ocorre acumulação de vida fora dos escaninhos das ciências duras. Então, na copesquisa, você tem que se implicar em situações, você tem de entrar em rede com os protagonistas dessa situação e, a partir daí, vai gerar o conhecimento implicado. Esse conhecimento pode não seguir regras e formatos do mundo acadêmico tradicional, mas tem um rigor também. A linguagem – não se tem essa ideia de cultura de elite e cultura popular. Na verdade, o popular também é profundamente sofisticado, porque chegar em um nível de manifestação do funk, do hip-hop ou de um artista de rua, poeta de rua, ou de um pixador, existe uma arte ali dentro que é tão sofisticada quanto a arte acadêmica e é tão atravessada pela vida e pelas relações quanto uma arte importada, por exemplo.
Mas ela é traduzida para o meio dela?
BC: Exatamente. Mas a copesquisa permite que você estabeleça uma tradução entre as várias línguas, ou seja, num sentido que você produz conhecimento para gerar organização política e essa organização envolve mais gente. A copesquisa são três coisas: uma militância situada, autonomia — você não se subordina a nenhum tipo de controle superior — e organização. Ou seja, esse conhecimento é usado pra você se empoderar, para você gerar mais lutas. Isso não é um método só da Uninômade, é um método que está acontecendo o tempo todo e é assim que funcionam as lutas urbanas. Os Kaingang estão em contato com os Pataxós. Os camelôs daqui entram em contato com a rede de troca de bens do mundo inteiro a partir da democratização dos bens culturais. Enfim, na verdade, esse conhecimento já está aí circulando, só que ele não é reconhecido.
A Uninômade, então, recusa o espaço oficial ou ela cria um outro corpo e nega esse ambiente de disputa do discurso oficial da Universidade, por exemplo?
BC: Não, não nega, é o êxodo. A questão é que essa dicotomia não faz sentido do ponto de vista autonomista. Você colocar que tem o Estado e o não-Estado. Na verdade, o Estado só existe, o capital só existe porque o trabalhador existe. Se não estivéssemos nós trabalhando, criando, se relacionando, não existiria Estado. O Estado é parasitário, então, o primeiro passo é reconhecer que nós não precisamos do Estado, mas o Estado precisa da gente. Então, quando a gente está gerando, está criando, vem uma série de aparelhos de captura, uma série de institucionalidades interessadas nessa riqueza. A luta é isso, um sistema de relação. Qual a nossa relação com o Estado? Com o capital? Também a gente não pode cair na utopia de que, de hoje para amanhã, não vai mais existir Estado. É uma luta acontecendo em muitos pontos e que tem uma relação estabelecida.
Então ela cria um outro corpo?
BC: Um outro corpo que é atravessado pelo Estado e que você tem de lidar com isso.
TALITA TIBOLA (TT): É um tipo de disputa, por isso que é importante também essa questão interna, de linguagem, de discurso. Por exemplo, pegando essa questão da copesquisa de se inserir dentro da Academia a partir da linguagem das lutas — isso, de certa forma, é um tipo de contaminação que você pode fazer em um certo tipo de transformação possível da própria Academia. Não existe um dentro e um fora total, uma diferença da cidade e da Universidade.
BC: Você assume posições abstratas, o capital vira um monstro e esse discurso tende ao purismo. Você sempre está sendo perseguido dentro de si mesmo por esse grande monstro. Então, tem de assumir que a gente vive em um mundo capitalista, nossa existência é dentro do capitalismo, a gente não pode ter essa utopia, que na verdade tem um fundo moral, de que a gente consegue viver sem dinheiro. A questão é assumir e lidar com a relação, essa que é a questão, isso que é o difícil.
A gente vive em um mundo que se diz globalizado. Claramente, esse mundo globalizado se diz branco, heterossexual e homem. Vocês falam em mestiçagem cultural, simbólica e racial e financeira…
BC: Todo ciclo de lutas de que os zapatistas fazem parte, mas também o movimento de Seattle, de Gênova, também no Brasil o movimento de mídia tática, nunca foram, na verdade, antiglobalização. Se você conversar com os militantes da época, eles não vão aceitar esse termo ‘antiglobalização’. Na verdade, eles falam em alterglobalização. Por quê? Porque, ao mesmo tempo em que existe a globalização do capitalismo, a globalização da cultura pop e dessa grande norma de homem branco, cristão, hétero — enfim, trabalhador, pai de família — existe também a globalização das resistências. Que é a oportunidade de ter, por exemplo, um movimento negro global. Quando se fala em globalização, tem um processo de ambivalência. Não é negá-la como processo tendo uma nostalgia de um tempo em que o mundo era dividido em Estados-nação, em que o forte era você defender sua pátria, você defender seu povo, sua etnia. Em vez de negar isso, é assumir que existe um processo de globalização e disputar isso, no nível da mídia também, não somente no discurso.
Que é o conceito de mestiçagem?
BC: Mestiçagem é um conceito mais polêmico. Mestiçagem foi uma leitura muito forte que foi discutida na Uninômade entre 2005 até 2008, que é uma tentativa, justamente, de dizer o seguinte: existe um discurso preconceituoso da democracia racial, o discurso de “não somos racistas porque reconhecemos que não existem raças no Brasil, as raças já estão diluídas”, um discurso profundamente racista, o sol do nosso discurso branco ilustrado; até na Academia se vê muito. Então, mestiçagem era vista como uma tentativa de você diluir a potência, a raça negra, a raça índia, porque sempre mestiçagem termina no branco. O negro vai se misturando com o branco e vai virando branco. O índio vai se misturando com branco e vai ficando branco. Branco tá sempre ganhando. Mestiçagem é inverter isso. O índio mistura com o branco e o caboclo é mais índio do que branco. É o mulato assumir, realmente, que é negro. E mais: é assumir que uma série de ciências, conhecimentos, manifestações culturais e de cultura de resistência são protagonizados pelo negro e pelo índio. E a mestiçagem que ocorreu é, na verdade, uma mestiçagem [em que] você está se apropriando da cultura branca. Vocês está pegando do congelador o que te interessa e se apropriando disso, em nome da afirmação do negro e do índio. É uma inversão daquela mestiçagem conservadora. No Brasil, tem a psicóloga Leonora Corsini, que trabalha com isso. Mas é uma tentativa de afirmar a mestiçagem enquanto potência das minorias. Valeria para Marcha das Vadias, para o [movimento] Queer.
Partiria também daquela nova concepção do mestiço de nós não sermos africanos que saímos da África, mas de sermos africanos do Brasil, porém negros e descendente de africanos?
BC: Sim. A mestiçagem incomoda muito até mesmo o movimento negro e índio, que são mais fechados, tem uma visão mais identitária, mais fixa do afro.
E mítica também…
BC: É, ancestral. Por exemplo, quando foram traficados para cá pelos portugueses, eles foram separados, foi proibido qualquer tipo de culto da cultura originária, para criar uma debilidade mesmo nos escravos e eles se recompuseram fugindo para os quilombos e criando uma cultura de resistência. Essa cultura de resistência não é uma cultura originariamente africana. Já a cultura brasileira, que traz a potência do negro, aí cria a capoeira, o samba, o candomblé, ou seja, se apropria da cultura branca (candomblé), se apropria desses elementos e se organiza. Mas é uma mestiçagem, não uma mestiçagem como dissolvendo o negro e o índio e, sim, um resgate do negro e do índio agora. Agora! Ou seja, o que é a potência do negro agora. A Bolívia é um exemplo clássico disso. A Bolívia, por exemplo, tem um presidente indígena, uma série de políticas indígenas, você não tem um Estado-nação europeu com um índio no poder, você tem os índios hibridizando a constituição do Estado-nação boliviano. Isso é uma mestiçagem potente.
Vocês também usam o conceito de Vida Mais Vida e tratam da questão dos afetos.
LP: A primeira vez que eu fui para o Rio, eu vi um homem desdentado quase cair e ele caiu dando risada. A vida se afirma numa graça, em um gracejo, que às vezes o discurso duro da luta não capta. E a gente tenta muito mais a afirmação de vida, da exuberância disso, do que quando a gente fica preso ao universo do capital e fica só reagindo a ele. É por isso a brincadeira do êxodo: como é que tu sai fora da linguagem que tu aprendeu? Cria um outro circuito, um outro fluxo que desarma o poder. Ri do poder, de certa forma.
BC: A resistência e a formação de vida é possível em qualquer situação. Grande parte da resistência acontece não com uma negação, uma reação dura, mas uma transfiguração do sofrimento em cultura de resistência. Em arte, em construção política, em fortalecimento daquele grupo que está sob uma condição de pobreza e sofrimento. Muitas vezes, a esquerda tem um problema de sempre ver como tudo está sendo dominado, como estamos perdendo, estamos sendo destruídos, o poder [estadunidense], está tudo dominado, acabou, não temos mais o que fazer. Mentira, está tudo vazando, extravasando em novas produções, novas culturas de resistência, em novas formas de vida. A dificuldade é organizar isso. Organizar não por cima, mas por dentro. Então, o Mais Vida é a ideia de que você não pode separar a vida cotidiana das pessoas de sua realidade, mais no sentido afetivo mesmo, e a política. Tem que caminhar junto. Isso é uma autocrítica de muitos movimentos. O próprio feminismo dos anos 60.
São dois pontos debatidos em que um está dentro do outro. O sujeito ferrado, mas que ainda tem vida e a crítica à esquerda enrijecida que não canta, não dança.
BC: Claro! No sujeito abatido, tem uma questão moral. Uma moral ascética. Como um ‘quem sofre mais’? Como se o sofrimento fosse dignificar, como se ser ferrado fosse bom. Tem um jogo aí que é um jogo um pouco masoquista. Só que o cara que realmente está em uma situação precária, ele não goza com isso. Seria inverter a situação e dizer que a vítima gosta de ser vítima — e isso é inaceitável. Não é isso! É uma questão de reafirmação de propósitos. Tem que mudar a sua vida e mudar a dos outros também. Essa é a ideia de Mais Vida. É o Homem Nu, de Oswald de Andrade. Que é um selvagem, que é superabundante.
E o cidadão que luta para se tornar participante do sistema capitalista? Como vocês avaliam partir de um ponto em que a gente não queira ser cidadão, que a gente não parta da revolta, mas queira ser um novo cidadão e uma nova cidade?
TT: Nem sempre acontece isso. O que eu vejo nas manifestações, por exemplo, agora, é que não existe algo pronto e que as pessoas lutem para serem um cidadão. Eu questionaria a posição do cidadão. Quando as pessoas entram para a luta, para a revolta, elas entram porque veem que está tudo errado. E aí cada um vai entrar pelas suas lutas ou pelas suas necessidades. Não existe uma visão prévia desse desejo de ser cidadão. Os afetos, justamente, que colocam a gente na luta transformando a pessoa nesse processo. A transformação das pessoas vai transformando a própria luta e transformando as próprias possibilidades. Que transforma a própria possibilidade da sociedade, do que se pode pensar, do que se poder ser na sociedade. E do que se pode pensar sobre o que é ser cidadão. Então, não existe ‘o que é ser cidadão’ antes da luta.
É preciso se inteirar pra conhecer a sua própria realidade.
BC: O Brasil vive hoje um momento de expansão do capitalismo brasileiro, assim, do capitalismo global, mas da expressão brasileira do capitalismo, está havendo uma expansão enorme do mercado de trabalho e do mercado de consumo nos últimos dez, 15 anos. Dentro da visão do governo, isso significa que você admite mais sócios nesse clube em que o trabalhador pode consumir, vai ter acesso a bens e serviços, carteirinha de nova classe média. O que isso significa fazendo parte da população brasileira que há quinze anos não tinha acesso a bens de consumo, não poderia, por exemplo, fazer uma viagem de turismo, ir no pet shop, fazer escova progressiva, comprar iogurte, ter dinheiro para pagar a universidade, comprar livros, enfim, para uma grande parcela da população não existia futuro porque não tinha condições de ter um pensamento prospectivo para esse futuro, viviam a lei da necessidade. De dez anos para cá, isso mudou. O capitalismo se aprofundou, o mercado de consumo aumentou, precarizado, obviamente, todo endividado, mas aumentou. Nesse momento, você cria a ideia de que o sucesso é possível.
Muda o capital simbólico totalmente?
BC: Totalmente. Ou seja, eu posso ter acesso ao sucesso. Mas o capitalismo é sempre contraditório. Tem esse lado da possibilidade, mas, por outro lado, te gera uma montanha de cobranças, expectativas, autocobrança para o sucesso. Teu capital cultural é diferente do de alguém que já vem de várias gerações com alguém na universidade. Esse sucesso exige um enorme esforço.
E o capital também vai fazer um enorme esforço para fazer ele acreditar que tem que alcançar?
BC: Exatamente. É uma construção publicitária. E aí você tem um livro, por exemplo, do Jessé Souza, que fala de cem milhões de pessoas que fazem de tudo para construir sua subjetividade para estarem preparadas para isso emocionalmente. E aí entram as pentecostais, microcréditos, o discurso do empreendedorismo, sustentabilidade…que prometem ajudar a pessoa com o sucesso. Mas, ao mesmo tempo que você promete o sucesso, tem o fracasso. Antes você era o fracassado, era pobre, não tinha porque se preocupar com isso. Agora, hoje, se você não conseguir reunir os elementos do sucesso, você é fracassado por sua culpa. Você não se esforçou o suficiente. Então, isso gera mais uma pressão subjetiva, que é o fracasso. E quando você fracassa vai para o Rivotril, para a terapia. Tem que processar o fracasso que todo o sistema joga em você. Então, dentro do capitalismo brasileiro, você tem uma situação paradoxal. Na televisão, o discurso grandiloquente de exemplos de sucesso, os indicadores do país, Brasil potência e, do outro lado, um ônibus apertado e, nesse sistema, não coloca mais a culpa no sistema de transporte, mas em si mesmo, por não ter carro. Se seu filho está numa fila no hospital, não te parece que não é o sistema que é ineficiente, mas você que não foi bem-sucedido o suficiente para pagar um plano de saúde. Você está numa escola pública em greve não é por causa do sistema educacional, mas a culpa é sua por não ter o dinheiro. Ou seja, nós não temos mais direitos, nascemos com dever. O problema das manifestações é que parece mais fácil entrar nesse sucesso inglório de pagar colégio particular, plano de saúde, do que me juntar às pessoas que estão na mesma situação em uma luta coletiva. Por isso que o governo Lula e a expansão do capitalismo que vem por dentro desse modelo alimentou um monstro que agora está devorando ele. Então, a carteirinha de nova classe média é ambígua. Tem que reconhecer a inclusão social, mas também reconhecer que vai cavar a própria cova.
Falando do governo Lula. Em um manifesto de vocês diz assim: “O governo Lula, a partir das cotas, do Prouni, da política cultural (cultura viva, pontos de cultura) e da distribuição de renda (programas sociais, bolsa família, valorização do salário mínimo) pôde apontar, em sua polivalência característica, para algo que muitos no mundo, hoje, reivindicam: uma nova esquerda, para além dos partidos e Estados (sem excluí-los)”. Depois veio o governo Dilma, com problemas como Belo Monte e Pinheirinhos, qual é panorama do ponto de vista de vocês? E aproveitando, qual a diferença do programa venezuelano, desde o início, para o nosso?
BC: A Uninômade, durante todo o governo Lula, escreveu manifestos, publicou artigos, editou revistas especiais defendendo o governo Lula contra uma tentativa de desconstrução pela direita, com seu discurso moral que descaracterizava as políticas e uma desconstrução de esquerda que atacava o Bolsa Família, atacava os Pontos de Cultura, que atacava essa questão da distribuição da renda direta como algo assistencialista, como algo que não era a verdadeira política de esquerda, mas uma política de Estado.
Tem uma visão dentro do governo Lula, nacional-desenvolvimentista, baseada em grandes obras, no Estado como grande gerenciador da economia e do mundo do trabalho, que é uma visão de esquerda baseada no socialismo, que é muito forte dentro do PT, muito voltada para a gestão, que é muito voltada para a construção vertical e que o maior representante disso, dentro do governo Lula, talvez fosse a própria Dilma, como a ‘mãe’ do PAC. E existiria, na leitura da Uninômade — na época, 2011 —, um Lula minoritário aberto aos movimentos, aos pobres e aí esses que não votavam no PT, não votavam na esquerda e que, com os programas de renda direta, a partir de efeitos escalonados, difusos, gerasse autonomias, gerasse a oportunidade de alguém no interior do país ter condições de criar um pequeno comércio, ou numa cidade, em um Ponto de Cultura, criar um ponto de mídia para gerar um coletivo de cinema ou uma pequena editora. Esse lado do governo Lula a Uninômade apoiou bastante e a abertura que ainda havia com os movimentos. Bem ou mal, Lula era um bom interlocutor. Quando entra o governo Dilma, esse espaço minoritário que estava aberto, se fecha. A Dilma é a madrasta dos movimentos sociais, ela não está interessada em interlocução, em copesquisa, em ouvir; ela acha que tem a solução. As manifestações são resultado do fechamento do governo Dilma. Há esse êxodo, a multidão foi ao deserto. Você tem uma renúncia a todas as mediações em que o petismo esatava acomodado, como a UNE, a CUT. Então foram para o deserto e, no deserto, tem que reconstruir; é o povo nômade reconstruindo. Então a visão da Uninômade é por aí. Um lulismo minoritário que deveria ser fortalecido por dentro, blindando os ataques da direita e, com a Dilma, a leitura de que isso se fechou.
O pessoal cansou de receber uma negativa e resolver partir para um ataque?
BC: São várias coisas. Eu acho que, primeiro, esse processo de autonomia dos quase cem milhões de pessoas ganhou uma massa crítica muito grande a ponto de formular alternativas. Em segundo lugar, o ‘não aguento mais, não aguento mais a policia no território do Rio de Janeiro determinando quando pode ou não ter baile funk ou oprimindo a juventude negra’.
Mas muitos movimentos que estavam com o Lula ainda estão com a Dilma?
BC: Sim, mas esses movimentos são incapazes de ter qualquer controle sobre as manifestações e não têm capacidade de mobilizar também. Manifestações não passam pela CUT e pela UNE. Elas passam por outro lugar, o lugar que surgiu nos últimos 10 ou 15 anos.
A leitura da Uninômade, hoje, é a de que ou a representação se abre para as bases potentes das manifestações ou ela vai acabar, porque as manifestações não irão ceder. E essa questão da culpa, de eu sou fracassado por minha culpa, não está colando mais. Quero que baixe a tarifa, vou apoiar os professores em greve. Não tem como ficar em uma situação imóvel, inerte, por ter fracassado. Não! Fracassado é o Estado.
Isso também é consequência de um governo que vinha com uma promessa de arrumar as coisas. Todos esperavam um governo melhor. Por isso elas foram tão grandes?
BC: Eu não sei se a leitura é essa de que a esquerda não é esquerda o suficiente. Existem alguns movimentos que fazem essa leitura. Mas nessa multidão toda, gritar eu sou mais à esquerda não faz mais sentido. Mesmo quem fosse de partido, no dia 20 de junho, foram atacados pela multidão, atacados, expulsos. Não só o PT. Foram expulsos PSDB, que apareceu pela primeira vez na vida, PSOL e PSTU.
Por parte de movimentos anti-partidários?
BC: Por parte do movimento que vê os partidos como parte do problema. Que vê os partidos como um lugar improdutivo para as suas demandas. No Rio, hoje, mudou. Você tinha muitos da campanha do Freixo, alguns movimentos também ligados ao PT e ao PSOL, integrados com os anarquistas. Já houve uma nova recomposição. As manifestações perceberam como fazer suas diferenciações e algumas correntes minoritárias de alguns partidos estão se abrindo. Não pode embarcar nesse discurso criminalizador ou qualificador de que é fascismo, são alienados, são coxinhas. No Rio, eu vejo a campanha do Freixo e uma juventude bem juventude do PT; o PCO, com certeza, totalmente dentro da manifestação.
E quanto ao debate midialivrista e à democratização das mídias?
BC: No governo Dilma, não se acredita em nenhuma dessas políticas para a comunicação. A melhor política de mídia era através dos projetos da cultura. Criava um bunker com a galera dos Pontos de Cultura, do Passe Livre, do hackerativismo. As melhores políticas de comunicação estavam acontecendo no ministério da cultura, com Gilberto Gil.
E quanto ao Fora do Eixo? Vocês falam que eles são envernizados de esquerda, exploram seus colaboradores e usam verba pública. Falam de exploração do comum. Como se dá isso?
LP: Seria quase uma outra entrevista, porque são muitos pontos. O Fora do Eixo é um dentre tantos que tenta aproveitar, que se abre de potência em novos movimentos e lutas, num sentido de capitalizar essas lutas. Não por acaso, agora na crise dos partidos de esquerda, ele vira um referencial forte de como talvez tentar nesse novo cenário. Ele é um próprio Estado, tem a estrutura de um partido leninista, ele bebe muito do velho movimento estudantil e a montagem de uma certa estrutura que, independente do que produz riqueza, ela possa ser parasitária a partir não de uma efetiva composição de classe mas no aproveitamento que aquilo tem no marketing de uma determinada marca.
BC: Quando o capitalismo muda, mudam as formas de exploração. Ou seja, no capitalismo industrial clássico, você explorava o operário. No capitalismo hoje, que é um capitalismo cognitivo, que passa pela parte material, pela parte de serviços, a exploração se dá em outros níveis, se dá dentro da sua subjetividade na empresa. Não só no tempo que você se dedica à empresa, mas em todos os seus hábitos, postura, imagem pessoal. É muito mais sofisticado do que na época do capitalismo industrial. Quando apareceu a mídia NINJA fazendo a cobertura dos processos no Brasil, de fato, parecia a cara e a alma daquele movimento, daquela intensidade ofegante, aquela correria, aquela grande emoção de estar ali presente.
As pessoas fazendo a sua própria narrativa.
BC: Enfim, as tecnologias permitiram aquele transmissão em tempo real e aquela integração, você podia acompanhar o painel das manifestações no Brasil, isso fortaleceu o movimento, sem dúvida. Mas aí começaram coisas estranhas, por exemplo, quando a Mídia NINJA ganhou destaque na imprensa, o Eduardo Paes, prefeito do Rio, marcou uma exclusiva com a NINJA e, nisso, não tem nada de novo. O mote dessa mídia é de que é o novo contra o velho. De um lado, o jornalismo e a imprensa velha e, do outro lado, o novo jornalismo ou o pós-jornalismo e a pós-mídia, pós-TV. E, ao mesmo tempo, foi para uma exclusiva, que é a forma mais tradicional, verticalizante. Poderiam fazer, no mínimo, uma coletiva, nem se pede uma multitudinária, em que todo mundo pode participar e interagir, não, uma coletiva. Além disso, fez uma entrevista não só convencional, mas pacificada, o que gerou um sentimento óbvio de decepção. Depois teve uma entrevista no Roda Viva, em que apareceu a Bela e a Fera. O bonzinho que vai fazer o meio e o malzinho que é o arrogante. Aí começou aquele Fora do Eixo para cá, Fora do Eixo para lá. A Mídia NINJA acabou parecendo uma marca do Fora do Eixo. Enfim, em seguida teve o texto da Beatriz Seigner, que participou do Fora do Eixo e se sentiu prejudicada e aí choveram declarações. O que mais impressiona é que o cerne do discurso deles, essa vida alternativa que acontece nas casas, a horizontalização do trabalho — e, quando você lê as declarações, percebe que o ponto de partida do posicionamento do Fora do Eixo é o lastro. Só que o lastro não é mais do que a velhíssima antiguidade, porque você nunca vai ultrapassar ninguém que é mais alto que você. Isso gera a perpetuação da mesma cúpula, a concentração do trabalho, a reprodução de uma mesma figura, porque é meio “onde está Wally?”, sempre aparece lá aquela figura. Então, vamos pegar esse discurso todo e passar o filtro da realidade. Nesse sentido, então, que a Uninômade se afastou do Fora do Eixo — entre outros, Fora do Eixo é apenas um caso.
E o comum é um conceito de produtividade, eu produzo dez, você produz dez, o Leonardo produz dez. Se nós três compartilharmos experiências e a produtividade entre nós, nós não teremos dez, vamos fazer 100. Agora, como o capitalismo controla a gente? Ele dá um valor fixo para cada um de nós. Ele vai nos tirar 70, como uma mais-valia. Tem empresas que vivem de capturar esses 70 sem produzir nada. Exemplo clássico é o Facebook. O que ele produz? Nada. Quanto mais a gente vai engolindo a internet, mais ele vai valer porque existe um efeito de escala, um mais valor difuso que é gigantesco. Voltando para o Fora do Eixo, vamos dizer que ele tenha 10 coletivos e comprovou que pagou dez para todo mundo; ele tem casas, festivais de cinema, festivais de música, todos associados à marca Fora do Eixo e isso não vale dez mais dez mais dez, vale mil. Ele consegue vender essa marca para a Heineken, consegue capital político e, através disso, editais ou patrocínios. Enfim, é uma acumulação baseada na imagem. E eles estão cientes disso, eles se colocam como uma empresa cultural 2.0.
LP: E consegue se tornar um interlocutor com o governo, inclusive representando movimentos sociais.
BC: Então, tudo bem, mas vamos chamar as cosias pelo nome. Às vezes, eles parecem uma mistura de vanguarda leninista com fé, disciplina e parecem também uns executivos workaholic [viciados em trabalho], trabalham 24 horas por dia. Mas não é leninismo, porque leninismo é insurreição proletária, dos pobres, é uma leitura de classe.
ENTREVISTA UNINÔMADE: BRUNO CAVA, LEONARDO PALMA E TALITA TIBOLA, pelo viés de Caren Rhoden e Bibiano Girard
carenrhoden@revistaovies.com
bibianogirard@revistaovies.com