Lembrando o conceito de instrumento de dominação que age por meio de convencimento, a militância pela democratização da mídia e, por consequência, sua regulamentação, parece bater em tecla impossível: mudar o que já está no ar, difundido aos quatro cantos do país. Mas não é aí que vivem os debates e as análises quanto ao nosso atual modelo de imprensa. A crítica à mídia brasileira não parte da tão leviana condenação em buscar por transformar a programação da Rede Globo, por exemplo, ou, por sinônimo de argumentação, esperar uma capa venerável da revista Veja.
Para quem flutua na rede de influências de capital econômico, cultural e social, basta reivindicar o direito à livre expressão, quando, no fundo, seus intuitos são reservadamente de interesse econômico. Se as consequências de uma democratização da mídia afetarem radicalmente os corações da grande imprensa, seus pares e participantes apenas vivenciariam, em experiência própria, o sistema de fazer mais com menos, de fazer com o conjunto, de pautar desde as pessoas e não para as pessoas. Ora, de se fazer imprensa de igual para igual, resgatando cada um seu público, oferecendo ao máximo de pessoas conteúdo de qualidade sem atropelos desleais.
Aqui, contudo, seria necessário considerar: a imprensa não-hegemônica de hoje luta com o pouco que seus pares conseguem agregar, principalmente em razão da colaboratividade. No caso de uma democratização da mídia, a construção de diferentes canais de comunicação, em razão do direito constitucional dos brasileiros à informação – atualmente atacada quanto a questões em termos constitucionais, nas quais não se admitiria e não se toleraria qualquer tipo de preconceito, sendo a diversidade de pensamento, de culturas, de opiniões um norte que deveria ser seguido pelo Estado – colocaria em horizontalidade os acessos a financiamentos públicos a meios de comunicação. Em suma, democratizar, tornar acessível a todos, desde que todo acesso seja mediado e regulamentado. A construção de uma regulamentação vem a ser, portanto, uma relação entre Estado e direitos sociais básicos.
Relativizar o direito à informação, como ocorre atualmente com o formato de mídia brasileira – pouco estratificada, encabeçada por um grupo de detentores do capital simbólico – suscita inúmeros debates. E tantos pequenos disparates. A militância pela democratização da mídia se dá através da mudança estrutural e não da simples regulamentação de leis utópicas que viriam – superficialmente – apenas atacar a hegemonia em sua grade de programação.
Não. O fato de a imprensa necessitar de uma regulamentação, porque a percepção contemporânea nos mostra os meios de comunicação como instituições centrais em regimes democráticos, expõe a fragilidade pública de nosso sistema midiático. Mas assim como a necessidade de democratização, elas não surgem de uma vontade quimérica e interesseira, como tentam criar os factoides da hegemonia. Regulamentar e democratizar representa colocar em correspondência com os direitos constitucionais dos brasileiros também o seu formato de imprensa.
Lutar pela democratização da mídia não é lutar pela mudança de viés das próprias mídias pejorativamente criticadas. Nenhum manifestante contrário ao aumento do preço das tarifas do transporte procura que a RBS dê uma guinada social e parta a apresentar a pauta pelo viés de quem paga mais para andar de ônibus e recebe os menores salários na cidade. O manifestante apenas usa seu poder de fala para tentar influenciar a imprensa, tendo momentaneamente o poder de, como nas manifestações de 2013, receber apoio de quem antes jamais apoiaria. Aqui surgem empirismos ainda novos, porém relevantes. Enquanto as massas começam a dominar formatos diferentes de mídias e plataformas, como as redes sociais, a hegemonia midiática é forçada, como em 2013 e 2014, a se explicar, posicionar ou até mesmo culpabilizar-se pelos vieses corriqueiramente envolvidos com o discurso das assessorias de imprensa de órgãos consignados ao plano hegemônico. Porém, isso não é o bastante, nem de longe perpassa o ideário da democratização.
A pauta não é fazer o grupo Globo guinar ou esperar da Zero Hora um aprofundamento histórico-social sobre o MST através da visão dos próprios sem-terra. A luta dos movimentos que debatem a democratização da mídia é, muito antes, a de dizer que os canais desses poucos grupos – onze famílias controlam a mídia brasileira -, por exemplo, usam o espectro de teledifusão, uma concessão do governo brasileiro outorgada a empresas de comunicação, fundamentada em termos de compromisso de tais empresas com a população, para denegrir etnias, rotular religiões e afrontar a laicidade, para citar aqui alguns dos ataques constantes (e velados pela ideologia comum) difundidos a minorias diariamente.
Há muitos anos, a Globo trabalha sem passar por uma regulamentação ou qualquer tipo de controle. Diz a Constituição que é dever do Estado organizar a difusão, gerir e conceder outorgas de acordo com os interesses que ele julgar serem do Brasil. Se grande parte da programação da grande imprensa é considerada como de interesse do Brasil, algo, desde antes, como a Educação, precisa ser questionado.
Por fatos declarados como estes, nenhum manifestante tem como utopia um novo mundo de justiça social onde conglomerados de mídia, fundamentados no setor lucrativo como os empresariais do Brasil, se transformem em redes comunitárias ou cooperativas midiáticas. Existe mídia além da grande, existe jornalismo além da Globo e da Veja. O que não há é justiça na partilha dos patrocínios governamentais, nem uma regulamentação sobre patrocínios que vise além da integridade do meio de comunicação, o interesse social de existência da mídia. Democratizar não é censurar prepotentemente aquilo que não julgamos correto em ser difundido. Se for consequência da democratização e da possível politização social sobre seus direitos à informação, aí é outra história. Quem cala, neste momento, é a hegemonia, através dos conchavos da imprensa com diferentes instâncias do poder. A mídia deve ser tão plural e os espectadores inconcebivelmente rastreáveis, que nenhum discurso sobre o que deve ser apresentado na TV, nos jornais, nos sites e em quaisquer tipos de mídia será aceito verticalmente por quem debate a democratização.
A crítica não é levianamente direcionada à Globo, ao SBT ou qualquer outro grande meio de comunicação, como se todo o problema fosse resolvido com seu fechamento. Quem fez isso foram os militares, não esqueçamos. Reivindicar mudanças significativas nas estruturas sociais, culturais e econômicas de um país é algo mais profundo do que manter o debate constante com a hegemonia, que usa de argumentos chulos como o ataque à liberdade de expressão.
Se a população, munida de redes informativas horizontais, como canais que recebem a mesma verba publicitária do governo, regulamentados por uma lei idêntica a todos e estruturada pela coletividade social, formar uma nova vivência de consumo de informação, as consequências serão produto da oferta igualitária e justa, e não da imposição do capital simbólico. Quando os “vândalos”, segundo os jornais, se posicionam em sentido de luta a paredes brancas e vidros da empresa em diferentes cidades, tais manifestantes sabem muito bem que destruir a estrutura física é balela, é apenas uma forma de propaganda pela ação. Destruir o castelo para fazer fugir o rei ficou no passado. A luta, agora, dá-se muito antes nos campos dos saberes. E o direito à mídia democrática, quer a hegemonia ou não, é nosso.
DEMOCRATIZAR A MÍDIA: NÃO BASTA FUGIR O REI, É PRECISO MUDAR O REGIME, pelo viés de Bibiano Girard
*texto originalmente publicado no JornalismoB