Mulher, negra, catadora de papel, mãe solteira de três filhos, semi-analfabeta e escritora best seller da literatura periférica. Carolina de Jesus, falecida em 1977, comemora o centésimo aniversário em 14 de março deste ano – um centenário marginal. Moradora da favela do Canindé, em São Paulo, a autora presenteou o Brasil e o mundo com Quarto de Despejo, livro em forma de diário que continha relatos do cotidiano que vivenciava. Foram 30.000 exemplares vendidos na primeira edição da obra, posteriormente traduzida para treze línguas. Não se trata apenas de expor um tema marginal, ao menos à época: o livro condensa os escritos de Carolina sobre a favela do Canindé como uma fuga também dos padrões estéticos da Academia. Não raro, os relatos esbarram em erros ortográficos honestos, frutos da realidade de uma semi-analfabeta que preserva a linguagem oral e bate de frente com os cânones literários. É literatura marginal em sua mais pura acepção.
Mas Carolina não inovou apenas ao desajustar a estética corrente à época: ela também fazia parte do restrito número de autores negros no Brasil. E mais: representava a sua realidade, tantas vezes relegada pelos demais escritores. Não é de se surpreender, portanto, os resultados da pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília. Eles indicam que a literatura brasileira é um campo predominantemente dominado por autores homens e brancos.
O recorte da pesquisa de Regina, publicado no livro “Literatura brasileira contemporânea”, abrange 258 romances brasileiros lançados entre 1990 e 2004 por três das maiores editoras do país: Companhia das Letras, Rocco e Record. Dentre os dados levantados pela professora, estão que 72,7% dos romances foram escritos por homens e 93,9% por brancos. A representação dos negros, na ficção, se dá em sua maioria como bandidos; as mulheres, como donas de casa ou prostitutas; e o homem branco, como artista ou jornalista.
Regina acredita que os dados da pesquisa não seriam muito diferentes se realizados com outras editoras. “Também temos números semelhantes aos que obtivemos em relação à autoria dos romances na telenovela, no jornalismo, na câmara dos deputados… Os espaços de produção de discurso ainda são, predominantemente, domínio de homens brancos de classe média. O que implica em predominância de uma determinada perspectiva social, e que vai dar, muito frequentemente, em uma construção discursiva semelhante a respeito do outro.” Atualmente, a professora dá continuidade à pesquisa, agora analisando os romances publicados no período de 2005 a 2014. Os dados parciais, por enquanto, não diferem muito das pesquisas anteriores.
A história e a sina do romance brasileiro
Segundo a antropóloga Érica Peçanha, a literatura é uma construção catalisadora de emoções, conhecimentos, valores e mensagens políticas. Ao mesmo tempo em que ela pode divertir e entreter, também informa e amplia a capacidade crítica do seu leitor. “Literatura é sempre uma representação que interpreta e organiza aspectos da realidade, em termos estéticos. Como produção artística, carrega consigo marcas históricas, convenções e construções sociais”.
Sendo assim, se textos literários trazem determinados aspectos de seus autores, a representação de negros e mulheres na pesquisa de Regina não surpreende tanto, dado que estamos inseridos em uma sociedade brasileira ainda racista e machista. Érica cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu para explicar que escritores, quando se lançam ao campo literário, estão orientados pelas ideologias e práticas de suas classes sociais. Dar voz ou silenciar certas camadas da sociedade seriam aspectos intrínsecos à própria produção literária.
Éle Semog (pseudônimo de Luiz Carlos Amaral Gomes, poeta, militante do movimento negro e atual Secretário Executivo do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas) considera complexo para a maioria dos escritores brancos brasileiros construírem subjetividades e humanidades nas personagens negras. “É a história e a sina do romance brasileiro”, lamenta. No entanto, Éle encontra personagens – homens e mulheres negros – na literatura afro-brasileira que ocupam outros lugares. “A literatura negra brasileira, a partir de fins dos anos de 1970, se estabelece com o propósito ideológico de dar outro destino aos personagens negros, homens, mulheres, crianças e idosos, e, principalmente, combater o racismo no Brasil”.
Um texto literário, no entanto, não é o principal responsável pela discriminação e preconceito de determinados grupos. Também não deve ser entendido como a ferramenta que transformará essa situação, escreve Regina Dalcastagnè. Isso, no entanto, não exclui a responsabilidade social que há por trás da literatura. Entendida como um discurso, a narrativa ficcional pode tanto reforçar preconceitos como questioná-los e abordar novos modos de pensar nossas relações com o outro.
Preconceito em forma de ficção
Um dos casos emblemáticos de discriminação na literatura brasileira é a polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato. O autor foi acusado de racismo nos textos “As Caçadas de Pedrinho” e “Negrinha”, além de simpatizar com as ideias da Ku-Klux-Klan e da eugenia, base do pensamento nazista. Éle Semog não considera a discussão nem mesmo um “caso”, mas um “desastre”.
É comum argumentar que ler Lobato não torna a pessoa racista. “Mais notável ainda, todos eles [os leitores de Lobato] declaram com absoluta certeza não terem se tornado racistas. Isto num país em que mais de 90% da população reconhece a existência do racismo (ao mesmo tempo em que, claro, mais de 90% declara não ter nenhum preconceito racial)”, explica Idelber Avelar.
Idelber é professor titular de Literaturas Latino-Americanas e Teoria Literária na Universidade Tulane, em New Orleans. Sobre o racismo na literatura, ele ainda comenta: “O brasileiro branco se acha uma ilha de tolerância cercada de racismo por todos os lados. Mas, basta colocar em pauta um caso óbvio [o de Lobato] para que o negacionismo se veja de forma nítida, em geral com um furor que recorre a termos como ‘censura’ antes sequer que se coloque em pauta o problema de indicar ou não livros de um racista como ele a crianças de dez anos de idade, na escola pública. O caso Lobato é uma grande lição sobre os mecanismos através dos quais opera o negacionismo no Brasil.”
Mesmo os cânones literários não escaparam de sofrer preconceito. Se chamar Machado de Assis de mulato em 1908 causava espanto, que dirá 103 anos depois o branqueamento do autor em um comercial da Caixa Econômica Federal? Da mesma forma, também o caso de Lima Barreto, que fora recusado na Academia Brasileira de Letras – além de utilizar um português mais coloquial em seus textos, fugindo aos padrões da época, era pobre, negro e alcoólatra. Barreto se junta à Carolina de Jesus, mulher, negra e igualmente uma transgressora de padrões estéticos, e João Antônio, escritor que retratava os protagonistas das periferias brasileiras. O trio de autores desajustados pode ser considerado como os precursores do movimento da literatura marginal.
À margem dos padrões sociais e estéticos
Se Lima Barreto não conseguiu entrar na Academia Brasileira de Letras no começo do século XX, as possibilidades atuais não seriam muito mais animadoras. Para o professor Fernando Villarraga do curso de Letras da UFSM, o fenômeno da literatura marginal-periférica é tanto reconhecido como ignorado em determinados setores. São raros os currículos que incluem disciplinas para discutir o tema dentro da universidade. “A questão concreta é que ela está aí, está viva e está funcionando, e tem um tipo de produção e circulação por canais que nem sempre o mundo acadêmico gosta de olhar sem preconceito”. À exceção de Ferréz, articulador e ideólogo do movimento, há poucos autores estudados no contexto acadêmico.
Tanto Érica Peçanha quanto o poeta Nelson Maca reconhecem que as atenções para a literatura marginal-periférica se dão muito mais nos âmbitos sociopolíticos do seu surgimento do que na reflexão crítica sobre os fenômenos estéticos que envolvem a corrente. O que diferenciaria, por exemplo, os textos de Rubem Fonseca, sobre a periferia, e os de Ferréz? Nas palavras de Idelber Avelar, as respostas vão desde os processos de produção, circulação e consumo destas obras até o pacto de comunidades interpretativas sobre o que é legitimamente estético ou não. Para além disso, deve-se levar em conta ainda a ideologia que cerca seus personagens, como observa Regina Dalcastagnè: “há um indisfarçável ponto de vista da elite nos contos do primeiro [Rubem Fonseca], mesmo quando narrados por marginais, o que permite uma identificação mais fácil do leitor de classe média. Já o segundo [Ferréz] traz justamente uma crítica a esse olhar, desestabilizando-o ao se colocar ao seu lado como outra perspectiva possível.” Não à toa, boa parte da literatura marginal-periférica possui caráter autobiográfico.
Mesmo nos cânones literários, a função estética também pode se perder. Segundo Regina, não é apenas a função social da literatura que deixa de existir quando exclui grupos, mas a própria reiteração de estereótipos de negros e mulheres, por exemplo, torna o conjunto empobrecido. Se a literatura marginal-periférica tende a tornar sujeitos segregados como donos de seus discursos e dar visibilidade a novos olhares sobre a periferia, então o fenômeno merece atenção, especialmente nas novas discussões que pode trazer dentro do campo literário. Viver do passado – em busca de um novo Machado de Assis, “preferencialmente” mais branco – é renegar os novos Limas Barretos, não somente dentro da Academia, mas também do debate literário. Procurar novas Clarices ou Guimarães não faz sentido, já que o conceito de valor literário trabalhado pelas comunidades interpretativas, como explica Idelber, foi estabelecido pela própria Lispector, pelo próprio Rosa. Por ora, a busca de velhos cânones para resguardar a “alta” literatura bate de frente com o crescimento dos atentados poéticos da periferia – queira ou não a Academia.
OS PROTAGONISTAS ESQUECIDOS, pelo viés de Dairan Paul
Texto originalmente publicado na revista Nimbus.
Gostei muito da publicação. Li o livro ‘quarto de despejo’ quando fazia nono ano e na época achei ruim. Hoje, com um pouco mais de criticidade, vejo que estava errada e o quanto a realidade de Carolina está ainda presente, principalmente nas favelas. Hoje assistindo mais uma reportagem sobre o caso Cláudia, a mulher morta inocentemente em uma favela do Rio, me recordei da mesma realidade do livro. O quanto as duas se parecem no quesito esforço. Procurando lembrar do nome do livro, encontrei essa publicaçao maravilhosa. Parabéns por recordar dos ‘protagonistas esquecidos’ que há aos montes, que em sua maioria somos nós, que trabalhamos e estudamos muito para o melhor, uma realidade diferente.