CONTRIBUIÇÃO PARA UMA TEORIA DO DILETANTE

Diletantes, a bem da verdade, sempre existiram. Relatos de arqueólogos, antropólogos e historiadores da cultura dão conta de que em toda e qualquer formação social se verifica a presença desse indivíduo que parece ter, a despeito da maior ou menor variedade de ocupações possíveis em seu respectivo meio, a tarefa precípua de entupir os ouvidos dos seus semelhantes com elucubrações as mais fantásticas que a mente é capaz de criar. Se sempre existiram, é razoável supor que sempre existirão. Talvez se possa considerar a presença do diletante, assim como a linguagem falada e o processo de trabalho, um elemento determinante do ser das sociedades em geral, uma característica fundante, algo como a condição ontológica da humanidade, um traço ineliminável da constituição vital do homo sapiens sapiens.

Ocorre que hoje, há que se ponderar, não temos diante dos olhos um simples diletante, isto é, um diletante qualquer, assim, tomado genericamente, de forma abstrata, ou algo que o valha. Temos, em verdade, um diletante determinado, específico, relativo ao nosso tempo, e que, pelos males que pode causar à sociedade, cumpre, mais do que nunca, identificar.

É relativamente fácil reconhecer o diletante hodierno, democrático e popular, em meio a uma reunião, multidão, associação de bairro, ou mesmo no interior de um bar lotado. O diletante não espera que o interlocutor pare de falar: ele fala junto, gesticula, se atravessa. Em verdade, trata-se de elemento humano com considerável dificuldade para controlar o ímpeto do livre dissertar. Dois diletantes conversando falam de forma efusiva e ao mesmo tempo. Três diletantes podem se irritar em razão da acirrada disputa pela palavra e pela atenção do ouvido alheio. Quatro diletantes formam um ruído incompreensível, semelhante a uma avenida movimentada na hora do rush ou à turbina de um avião que se prepara para a decolagem. Cinco ou seis diletantes reunidos, ao se lhes contarem um chiste, história jocosa ou causo divertido, riem como hienas, ou, pior, como aquelas risadas convencionais de fundo dos seriados norte-americanos de humor.

Essa figura esdrúxula multiplica-se, agora, por aí, de forma permissiva e risonha, sem qualquer sombra de pejo, no Brasil do “nunca antes na história deste país”. É uma marca distintiva, um ícone profano, um símbolo derradeiro de nosso contexto histórico-social. Universalizou-se, em verdade, juntamente com a privatização do patrimônio estatal, os grandes eventos esportivo-midiáticos, os programas de educação à distância e o uso diário das novas tecnologias de comunicação, nas assim chamadas “redes sociais”.

Faminto por “memes”, macetes e estatísticas, goza da condição de cidadão emérito de nossos dias. Tornado massa em um país que galga os pontos mais altos do desenvolvimento capitalista, não há temática que o iniba, nem ambiente que o constranja. Frequentemente, de fato, é flagrado a postos, intrépido e altivo, destemido e preparado para disparar sua engenhosa superficialidade em qualquer tertúlia que a sua volta se apresente.

Em números absolutos, o diletante só é igualado pela figura do assim chamado pelego, o típico oportunista político-partidário que costuma se construir na vida pública intermediando, de forma conciliatória, as relações entre patrões e operários. Não raro, o diletante se confunde com o pelego, numa medonha síntese de estupidez e prepotência, destilando sua soberba em cada canto em que se encontre e produzindo, de maneira trágica, danos irreversíveis à cultura da nação. É fato facilmente verificável que o diletante, porque gosta de sintetizar pontos de vista opostos e contraditórios, frequentemente se torna um pelego. Ao passo que o pelego, por sua vez, encontra sua forma desenvolvida ao assumir-se como diletante.

Irritante ao extremo, capaz de vertiginosos malabarismos ideológicos a fim de justificar a calma, a demora e a paciência para com as mudanças sociais profundas, essa patética criatura é cada vez mais flagrada aprontando das suas nos diversos ambientes de que participa, do trabalho ao lar, do boteco à academia, sobre os variados assuntos que dizem respeito ao vulgo.

O diletante está sempre convencido da justeza do seu saber. Por esse motivo, é difícil demovê-lo de sua opinião. Como é capaz de falar fluentemente sobre qualquer assunto, possui certo magnetismo desconcertante capaz de prender o interlocutor incauto que, por pudor ou respeito excessivo, é incapaz de desviar o olhar ou de virar-lhe as costas e deixar-lhe a falar sozinho.

De fato, não é simples livrar-se da teia comunicativa que tece o diletante. Comporta-se, nesse sentido, como sombrio e sorrateiro aracnídeo. Cria armadilhas discursivas, alçapões argumentativos, arapucas dialógicas. Qualquer clichê é uma teoria que ele pode defender. Um lugar comum é uma palavra de ordem. Fragmentos de conhecimento científico se entrechocam e se intercalam sucessivamente, em sua fala, junto com lendas, fofocas, boatos e teorias da conspiração. É, nesse sentido, a bizarrice encarnada.

O bom diletante está sempre, no mínimo, no plano do seu discurso, um nível acima da sua instrução formal. Se é do ensino médio, fala como graduando; se é graduando, como um mestrando; se é mestrando, como um PHD em conhecimentos gerais e ciências interdisciplinares. Consegue ficar, assim, em destaque em relação ao meio. Isto satisfaz o seu ego, cai-lhe como uma luva na alma. Ele pode voltar para casa tranquilo e repousar, de forma mansa, sobre seu travesseiro.

É quase impossível contar uma novidade ao diletante. Como bom canibal do mundo das informações, como bom maníaco das superficialidades, ele tem por hábito proferir frases do gênero: “Eu já li sobre alguma coisa parecida com isso em algum lugar”, a cada vez que alguém procura lhe ensinar algo.

O diletante verdadeiro, autêntico, de raiz, é aquele sujeito que, sentado em meio a um círculo de pessoas, fala de peito estufado, com gestos teatrais, tencionando o debate. Acredita-se irônico, mas tem no máximo a capacidade da pilhéria. Nunca perde o tom intrépido e confiante e, mesmo que se enfureça com algum questionamento recebido, se esforça por manter as feições serenas. Ele sabe, afinal, que sempre pode confundir o interlocutor com uma combinação precisa de retórica incisiva, expressão facial contundente e argumentos tautológicos. Enrola, em última instância, mas enrola com segurança na postura e firmeza no olhar.

Quando encurralado com uma questão difícil, abre o debate para o campo das infinitas possibilidades ou manda o diálogo para as nuvens. Diz, por exemplo, algo como: “Somente no vigésimo sexto volume do livro do pensador Fulano de Tal é que se resolve tal questão” – geralmente, é um livro de difícil acesso, que quase ninguém leu, ou que raramente se pode encontrar nas prateleiras.

Quando necessário, concorda com o desacordo (!) oferecido pelo seu oponente. Um “mas é claro!” seu, colocado nessa hora, pode desconcertar o interlocutor e garantir preciosos segundos de espanto e mudez que lhe permitem recuperar a capacidade de improviso e de argumentação oca e capciosa. Irrita, por fim, intencionalmente, o debatedor, com vistas a obnubilar-lhe a capacidade de raciocínio e a clareza de compreensão das coisas.

O diletante profissional está sempre a balançar afirmativamente a cabeça quando vê alguém falando sobre um assunto qualquer, mesmo que não entenda nada sobre. Sentado ao fundo de um auditório lotado, é como um eco intermitente repetindo, com suas próprias palavras, as palavras do palestrante.

Acredita que suas produções teóricas são maravilhosas e que consegue resolver problemas intricados debatidos há milênios pela humanidade com textos, artigos ou relatórios de pesquisa. Seus escritos têm, por isso, tons grandiloquentes unidos a uma enorme dose de “lero-lero”.

Adora uma plateia. E, por incrível que pareça, frequentemente a consegue, porque usa de artimanhas. Começa sua conversa no melhor estilo “fala mole”, um papo que aparenta ser interessante, e, quando percebe que todos estão prestando atenção, engata a quinta marcha de sua verborragia rasteira. Seu discurso, no entanto, não funciona por meio de lógica e de conceituação racional, e sim através de livres associações. Falar em público tem, por isso, um caráter de terapia para o diletante.

A sua ansiedade dispara quando se encontra em um grupo em que não consegue centralizar o discurso. Quando está sem a palavra, o diletante se coça e se atiça. Surgem-lhe nessa hora os tiques, os transtornos obsessivos compulsivos: arranha a pele, estala os lábios, mastiga o chiclete com a boca aberta, sua frio. Fica inquieto, agitado. Desestabiliza-se de pronto. É só então que procura se atravessar na frente dos outros. Pigarreia. Tosse. Atrapalha. E quando, enfim, consegue dissertar livremente durante uns bons minutos, ele relaxa e se tranquiliza. (Mas essa paz é tênue e efêmera. A tensão se refaz rapidamente e logo lhe sobrevém a necessidade brutal de dar mais uma vez vazão às suas carências congênitas).

É uma criatura feliz, sobretudo. Alegre de uma alegria inerte, faceiro de uma faceirice atônita – não raro, letárgica. Regalado como nunca, lambuzado e lambendo-se os dedos, acredita que tudo vai de vento em popa, apesar dos sinais de crise, que de todos os lados chegam, e da inquietação da turba, que subterraneamente se movimenta para por em questão o atual estado de coisas em que nosso mundo se aprofunda.

CONTRIBUIÇÃO PARA UMA TEORIA DO DILETANTE, pelo viés de Augusto Pinto dos Santos

Augusto é antropólogo e dramaturgo

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