Em termos de debate, nem seria necessário empreendermos tempo para saber quem leva a melhor: Pepe Mujica e sua política progressista de combate ao tráfico ou Rachel Sheherazade, a âncora iludida do SBT que dá tiros de conservadorismo para todos os lados. A fim de alavancar a audiência de um canal que oferece todos os dias aos brasileiros programas de auditório onde mulheres viram carne à venda e aviõezinhos de dinheiro são jogados por um barão a um público majoritariamente pobre, a âncora de um dos telejornais do canal não economiza lugares-comuns e frases levianas de impacto para causar algum fuzuê.
A busca pelo espetáculo, que no SBT também ocorre através de incriminações ralés por parte da jornalista, fundamenta-se numa verdade estabelecida por Sheherazade, mesmo que anualmente sejam publicados mais de seis mil artigos científicos sobre o uso medicinal da droga em revistas especializadas e outros tantos milhares de artigos aprofundados que questionam a controvérsia da proibição da maconha e a liberação – e manutenção de um mercado fabricante poderoso do álcool – em sites especializados pelo mundo.
Em entrevista à revista Carta Capital, o cientista político Valeriano Costa, da Unicamp, fez um paralelo entre Brasil e Uruguai: “Somente flexibilizar a política de consumo de drogas não gera nenhum impacto positivo, pois outro cerne principal é a produção e comercialização da droga. E o Uruguai, exatamente com a lei aprovada nesta semana, está enfrentando o ponto crítico da questão – que é o controle da produção, compra e venda da maconha”. Sheherazade não concorda.
Ora, se for para falar sobre drogas, lembremos que o SBT, assim como tantas outras grandes empresas de comunicação do país, é patrocinado por cervejarias, laboratórios farmacêuticos e farmácias. Sejamos francos: como é mais fácil um cidadão brasileiro entorpecer-se até causar danos aos outros ou até mesmo se suicidar? Usando maconha – que é militarmente combatida nas ruas – ou tomando uma caixa inteira de barbitúricos expostos em estantes de farmácias?
Sejamos mais uma vez muito francos. A jornalista acusa o governo uruguaio de virar sócio do tráfico. Talvez não tenha lido por inteiro o projeto de lei aprovado ou não conseguiu compreendê-lo em sua farta alienação conservadora. Pois sem regulamento algum que proponha antes assegurar o bem dos espectadores ante ao lucro, o canal do Sr. Abravanel tem um dedo de associação sobre os milhares de suicídios causados com medicação liberada para venda em farmácias ou contribui para a carnificina no trânsito brasileiro. Ou por acaso o SBT não publicita bebidas alcóolicas e automóveis em sua grade de programação em troca de gordos patrocínios?
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Embora não se tenham dados confiáveis a respeito, provavelmente os acidentes de trânsito causados ou pelo excesso de velocidade ou pelo uso de álcool sejam também a causa principal de lesões e traumatismos. Além de matar, as bebidas publicitadas pelo canal também deixam ao governo – ou ao povo brasileiro – uma dose tremenda de gastos na Saúde pública. Quer dizer: seriam os trabalhadores do SBT sócios da chacina nas estradas? Fica sem via de resposta, a jornalista, se afirmar o velho e batido discurso das liberdades individuais de escolha. “Beber e dirigir é escolha do cidadão”. E então caímos sobre o controverso: o uso de maconha no Uruguai também partirá da vontade única e exclusiva do usuário. Você não será obrigada a fumar maconha em Punta del Este, Sheherazade.
É também muito questionável a arenga irresponsável empreendida pelo telejornal, que incentiva a manutenção da guerra contra o narcotráfico assim como ela se encontra atualmente no Brasil. Pois publicamente contrária à maneira de combate ao narcotráfico que se inicia agora no país vizinho, o SBT e a jornalista devem achar de bom tamanho que 56% dos homicídios ocorridos no Brasil tenham ligação direta com o tráfico de drogas. Os mortos, em sua grande maioria, são de jovens pobres de 15 a 25 anos. Mas o que importa se a entrada deles no Baú da Felicidade jamais será permitida?
Cerca de 30% de todas as vítimas femininas fatais tiveram algum tipo de envolvimento com a venda ou o uso de entorpecentes. Não estamos falando da farmacêutica que vendeu duas caixas de Rivotril para sua avó dormir tranquila. Estamos falando de mulheres pobres que se veem longe de qualquer auditório onde outras mulheres da periferia são impulsionadas humilhantemente a catar dinheiro no chão em rede nacional. A funcionária Rachel Sheherazade se sente representada pelas propagandas machistas de cerveja, propagadas pela empresa onde trabalha, onde mulheres são seres exclusivamente úteis a retirar uma cerveja gelada do freezer, de biquíni, e fazer cara de excitada?
É mesmo muito interessante estudar a proposta uruguaia, que defende a redução de danos e o combate ao narcotráfico por um viés impossível de ser entendido por cidadãos alienados na certeza da antiga brincadeira entre polícia e bandido. Seria muita inocência ou má fé dizer que o governo uruguaio quer se transformar em sócio do narcotráfico. “E se o tráfico de drogas não fosse o grande inimigo público contemporâneo? Quem culparíamos pela violência sistêmica?”, questiona a jornalista Anelise Dias em artigo publicado na revista o Viés: “Em quem e no que ancoraríamos o medo e a insegurança, valores tão caros à sociedade burguesa tão emocionalmente ligada à propriedade e à posse de bens?”, questiona.
Pelo furor e pela audiência, a âncora do SBT finca pé no fracasso histórico dos preventismos, dos proibicionismos e do sistema punitivo falido, antes admitindo uma guerra civil até hoje incontrolada, com caveirões pelas ruas, policiais militares fortemente armados repreendendo cidadãos e milhares de mortos pelas esquinas, do que fomentando reais debates sobre os efeitos da liberação da venda e da produção (controladas) da droga no país vizinho.
Antes de usar o espaço do canal, que é uma concessão pública (que segundo a lei deveria proporcionar programação com finalidade educativa e cultural), para tentar abranger inúmeras dúvidas surgidas entre os brasileiros acerca da lei aprovada no Uruguai, os interesses do dono da emissora detêm-se em conquistar o máximo de espectadores e obter o máximo de lucro.
Nessa guerra de um mercado sujo, comandado por milionários donos das ondas de difusão no Brasil, criminosos por não respeitar a lei de Concessão Pública, o debate de interesse popular passa longe dos discursos aloprados da jornalista. Se no Uruguai discute-se redução de danos, por aqui a ideia ainda é manter o caveirão no meio do combate. O governo uruguaio busca afirmar uma posição realista sobre o uso massivo de maconha e a tentativa de não se forjar um Estado fundamentado no medo e superficialmente seguro através do belicismo. “Não há dúvida de que o álcool e o tabaco são prejudiciais, porém não são proibidos. Fazemos campanhas massivas de conscientização”, diz o secretário adjunto da Presidência da República do Uruguai, Diego Cánepa. O governo quer debater, não reprimir.
Visa-se a não repetição de grandes derrotas, como lembra Anelise Dias em seu artigo, das políticas proibicionistas que criam o mercado paralelo e colocam na frente de batalha – majoritariamente – o pobre, vítima do mesmo Estado que o abusa e depois repreende. Para o SBT, que se salvem aqueles que puderem. Televisores ligados e público inerte já está de bom tamanho.
Texto originalmente publicado em www.jornalismob.com
A ÂNCORA DO SBT QUE MERGULHA FUNDO NO MAR DO CONSERVADORISMO, pelo viés de Bibiano Girard