MALDITO!

Sérgio Sampaio é um dos artistas mais injustiçados e negligenciados da história do Brasil (mesmo entre a esquerda). Com exceção de seu maior sucesso, “Eu quero é botar meu bloco na rua”, o capixaba de Cachoeira do Itapemirim (a mesma cidade do bem mais “bombado” “Rei” Roberto Carlos) não logrou nenhum outro sucesso que tenha perpassado o tempo e atingido os extremos do país. Há quem diga que na marcha triste, ironicamente sucesso na supostamente alegre festividade que é o carnaval, está o único hit de Sampaio. O que esses não sabem é que o cantor e compoitor não perdeu a boca nem antes e nem depois de botar o bloco na rua, e que possui tantas outras canções do mesmo quilate. Está aí uma parcela da maldição de Sérgio Sampaio: ser definido, por muitos, como o cantor de uma canção só. O que ele, definitivamente, não era e não é. A  alcunha de “Maldito” é justamente fruto dessa injustiça, que também acomete, por exemplo, Jards Macalé. É como se só o sobrenatural possuísse a explicação, os porquês, de um artista tão talentoso não lograr o merecido reconhecimento. Sampaio inclusive era e é conhecido como o “Mais Maldito dos Malditos”.

Sérgio Sampaio era o que alguns podem chamar de desregrado, errático, isso sim (o que pode ser inclusive um elogio, conforme forem as regras). Boêmio, foi acometido em  1992, aos 47 anos, no Rio de Janeiro, por uma das doenças que mais abatem essa categoria, a pancreatite. No decorrer desse quase meio século de vida morou na rua, participou de festivais, fez parcerias – a mais notória delas talvez seja com Raul Seixas -, teve letras censuradas pelos militares e até ganhou um Troféu Imprensa (sim, aquele do Silvio Santos, mas na época em que ele estava na Globo. Sim, ele esteve na Globo). Também pode se dizer que Sampaio teve uma carreira curta, afinal lançou em vida apenas 3 discos, sendo que apenas aquele que trazia seu maior sucesso teve bons números em vendas. Nessa conta, contudo, pode se somar um quarto e último disco, obra relativamente pronta, mas caprichosamente impedida de ir para a rua por conta da morte do cantor. E é sobre esse disco que vamos falar rapidamente aqui, até porque todo o deleite está em ouvi-lo.

“Cruel”, que já estava acertado para ser lançado pelo selo Baratos e Afins, é a soma de diversas gravações em voz e violão de Sérgio Sampaio. Essas faixas originais, inclusive, estão mantidas no disco lançado em 2006 pelo selo Saravá Discos, de Zeca Baleiro (fã declarado de Sampaio – os dois se conheceram pessoalmente – e provavelmente a pessoa mais empenhada, hoje, em divulgar a obra “maldita”). A esses materiais brutos, Baleiro acrescentou outros instrumentos que, maestralmente, formaram a característica estética peculiar de Sampaio, reconhecido por misturar samba, chorinho, rock e baladas.

Sobre a temática, o disco é, em sua maioria, composto por canções de amor, o que, tratando-se de Sampaio, não significa banalidades. Aliás, característica essa que perpassa toda sua obra: ser direto, mas não raso. Um bom exemplo disso vem já de cara com a música que abre o disco, “Em nome de Deus”, na qual o compositor mistura magos, Tarot, I-Ching, Aneis de Saturno, João Batista (esse mesmo, o apóstolo) e Iemanjá, para encerrar com chave de ouro clamando que “em nome de Deus me carregue e me pregue em sua cruz”. Mais adiante, em “Muito além do jardim”, ele emplaca mais uma, dizendo que “nosso amor morreu tão cedo, durou o tempo exato da agonia do Tancredo”.

Mesmo com essa temática quase que central, “Cruel” deixa espaço para outras pautas, como, por exemplo, a crítica social também característica de Sampaio, em “Polícia, Bandido, Cachorro, Dentista” (“eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista”). Outro assunto que merece espaço, e aí, penso eu particularmente, está o melhor tema do disco, é a problemática relação de Sampaio com a indústria da música, relação mais que explícita em “Roda Morta (Reflexões de um Executivo)”. Antes de “Cruel”, Sampaio havia, aparentemente, inclusive desistido de ter uma boa relação com produtores e gravadoras, bancando seu último disco lançado em vida, “Sinceramente”, também trazido novamente às ruas pela Saravá Discos de Baleiro, em 2011, de maneira independente em 1982.

Ocorre, então, que “Roda Morta” evidencia a verdadeira maldição de Sampaio: sua convicção, o que significava não atender aos mandos e desmandos de gravadoras que queriam mais “blocos na rua”. Em terra de malditos como Sampaio, cruel é pensar que ser abençoado significa correr sempre atrás da máquina industrial musical, tentando emplacar o novo sucesso a partir do que as pessoas querem ouvir, e não o que se queria falar.

“Roda Morta (Reflexões de um Executivo)

O triste nisso tudo é tudo isso
Quer dizer, tirando nada, só me resta o compromisso
Com os dentes cariados da alegria
Com o desgosto e a agonia da manada dos normais.

O triste em tudo isso é isso tudo
A sordidez do conteúdo desses dias maquinais
E as máquinas cavando um poço fundo entre os braçais,
eu mesmo e o mundo dos salões coloniais.

Colônias de abutres colunáveis
Gaviões bem sociáveis vomitando entre os cristais
E as cristas desses galos de brinquedo
Cuja covardia e medo dão ao sol um tom lilás. 

Eu vejo um mofo verde no meu fraque
E as moscas mortas no conhaque que eu herdei dos ancestrais
E as hordas de demônios quando eu durmo
Infestando o horror noturno dos meu sonhos infernais. 

Eu sei que quando acordo eu visto a cara falsa e infame
como a tara do mais vil dentre os mortais
E morro quando adentro o gabinete
Onde o sócio o e o alcaguete não me deixam nunca em paz

O triste em tudo isso é que eu sei disso
Eu vivo disso e além disso
Eu quero sempre mais e mais”

 

MALDITO!, pelo viés de Rafael Balbueno

rafaelbalbueno@revistaovies.com