LIBERDADE À HISTÓRIA DE JANGO

Discurso de Jango na sede do Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, em 31 de março de 1964. Foto: Arquivo O Dia.

Quando quero me irritar, leio os comentários de leitores ao pé das matérias do UOL, a página de abertura do meu computador. Aquilo é um festival de reacionarismo, ignorância política e, principalmente, histórica. Para não falar dos erros gramaticais e ortográficos, assustadores e reveladores do baixo nível predominante. O que não impede essa turma, desprovida de qualquer autocrítica, de exercer suas opiniões com extrema arrogância e violência. Covardemente escondidos em nomes falsos, destilam ali todas as suas frustrações.

Pois bem, um dos mais recentes comentários me deixou perplexo: era um cara achando que João Goulart, o Jango, tinha sido guerrilheiro durante a ditadura. O sujeito, com certeza, nunca abriu um livro de História. Não tinha a menor ideia sobre o personagem que criticava, atribuindo afoitamente a exumação de seus restos mortais a um possível oportunismo da família, que estaria com isso querendo pleitear alguma indenização. Vamos, pois, tentar colocar o trem nos trilhos.

Primeiro, lembrando que Jango começou sua vida pública como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, sendo destituído logo depois, por pressão de um famoso manifesto de coronéis, a serviço do capital, motivado pelo aumento de 100% do salário mínimo. Para citar só os cargos públicos mais importantes, Jango foi duas vezes vice-presidente da República, tornando-se presidente após a renúncia de Jânio Quadros, assumindo no bojo de uma grave crise político-militar, que quase resultou em guerra civil, em agosto de 1961. Em 1964 veio o golpe militar e Jango foi deposto. Exilou-se no Uruguai, onde morreu sem realizar seu sonho de retornar e terminar seus dias em solo brasileiro. Isso nunca lhe foi permitido pela ditadura e eu gostaria de perguntar como classificar tamanha crueldade, a quem hoje acusa a esquerda de revanchismo simplesmente porque busca o resgate histórico.

Como qualquer ser humano, como eu e você, o ex-presidente cometeu seus erros, mas uma característica nele foi marcante: a generosidade. Foi um humanista. E aceitou o sacrifício pessoal do exílio para não jogar o país num banho de sangue, como teria sido a guerra civil em 1964. No início do golpe, o presidente dispunha de forças terrestres, navais e aéreas para ordenar os ataques, mas preferiu não o fazer, porque sabia que depois do primeiro tiro aquilo se transformaria num caminho sem volta e a violência se alastraria, sem controle e sem limites. A direita estava ensandecida por tomar o poder, porque o processo de politização popular, urbano e rural crescia a passos largos, todos os dias.

O projeto do golpe de 64 foi frear e reverter esse processo, sob as bênçãos dos Estados Unidos, que viam em Cuba uma ameaça para todo o continente. Só que o Brasil não era Cuba. Uma virada aqui para o socialismo levaria por efeito dominó todo o continente. As reformas de base preconizadas pelo governo João Goulart, tendo entre seus artífices os notáveis Darci Ribeiro e Celso Furtado, estavam longe de ser uma revolução, mas eram suficientes para causar calafrios na Casa Branca e no Capitólio. Então, através da CIA, os EUA financiaram o golpe, irrigando os cofres do IPES e do IBADI. E desciam com uma frota naval, na Operação Brother Sam, para dar suporte militar e logístico aos golpistas. Começaria pela tomada do porto de São Sebastião, para controlar o terminal petrolífero. Por tudo isso, em caso de guerra civil, acredito que nós, legalistas, teríamos sido derrotados da mesma forma. Só que, no rastro de um banho de sangue, as seqüelas seriam maiores e piores. Jango, portanto, não foi covarde, sim evitou o pior. Só por isso sua memória já merece todas as homenagens.

A família Goulart é rica, sempre foi. Jango era herdeiro de avô e pai grandes pecuaristas de São Borja (RS), onde nasceu e de onde seus restos mortais foram exumados nesta semana, para tentativa de elucidar se foi ou não assassinado por envenenamento, uma grande suspeita da família. Estive, recentemente, pessoalmente com João Vicente, filho de Jango, e com Christopher, o neto. Pessoas da melhor qualidade. Foi num evento na Força Sindical, em São Paulo. Posso assegurar que a família não busca nenhuma reparação financeira. A questão é de caráter moral, para que a verdade apareça e assim fique registrada na História. Tem também caráter didático: as pessoas precisam entender que a ditadura foi o exercício do terrorismo de Estado, repleta de corrupção, repressão e censura à imprensa, não a salvação do país, como ainda alguns tentam fazer crer. Os equívocos da esquerda, na resistência, são outro departamento. Com ou sem os erros da esquerda, a verdade é que a ditadura já tinha mergulhado o Brasil na tragédia, a começar por negar ao povo o direito de votar e de criticar o governo.

Ninguém é obrigado a concordar com as nossas teses. É um direito democrático. Mas, estudar antes de falar e escrever bobagens faria bem à saúde mental de todos.

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Pouca gente sabe, ou hoje se recorda, que Jango foi um grande orador. Seu apaixonado e célebre discurso, na sede do Automóvel Clube, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, às vésperas do golpe, foi de uma beleza digna de figurar nos anais de qualquer Academia de Letras. O presidente falou de improviso e estava cercado por uma multidão de suboficiais, sargentos e cabos das Forças Armadas que lhe prestavam homenagem. Horas antes, alguns aliados – preocupados com a crise institucional já em curso desde a eclosão da chamada “rebelião dos marinheiros e fuzileiros navais” (no Rio) – tinham aconselhado o presidente a não comparecer. Mas ele foi. Não faria mais diferença, o golpe viria de qualquer jeito, faltava só o dia. A precipitação do folclórico general Olympio Mourão Filho, saindo de Minas com uma tropa de inexperientes recrutas, mal armados, assinalou o calendário: 31 de março de 1964. Os legalistas, para fazer chacota, passaram a adotar 1º de abril, o dia da mentira, que foi realmente o mais decisivo.

Eu tinha 18 anos e já começava no jornalismo, era totalmente “foca”¹, mas a política era o principal foco das minhas atenções e temas. E tinha a sorte de começar num jornal de esquerda, “A Cidade”, de Santa Maria (RS). Minha visão do governo Jango se alternava entre a irritação, pois queria avanços mais firmes, e o apoio, necessário à defesa da legalidade constitucional. Como vários dos meus colegas, brilhantes estudantes secundários, todos garotos e militantes da esquerda, eu tinha certeza que aconteceria um golpe de direita. Só cego não veria isso, com Adhemar de Barros, governador, armando a Força Pública em São Paulo; latifundiários se equipando com fuzis e metralhadoras abertamente; a UDN, de Carlos Lacerda, governador da Guanabara, pregando com ênfase o golpe na ilusão de que seria colocada no trono, já que pelas urnas a direita jamais chegaria lá. Os golpistas contavam ainda com a maioria do alto clero da Igreja Católica e com os maiores jornais do país, que tinham grande influência na opinião pública. O único grande jornal que apoiava o governo era a “Última Hora”, uma rede com comando no Rio, de Samuel Wainer (com quem trabalhei em 1974), e edições nas principais capitais, incluindo Porto Alegre. Tanto a esquerda, como a direita, eram pulverizadas em grupos e tendências, moderados e radicais. Havia de tudo. E o PTB, o partido de Jango, e maior do país, fundado por Getúlio Vargas, era um saco de gatos – tinha de tudo – algo meio parecido com o atual PMDB. Ora, montar um dispositivo anti-golpe, num xadrez tão heterogêneo, era uma tarefa complexa, para não dizer quase impossível.

Limitado à visão do que vivi e do que pude ler, afirmo que raros presidentes tiveram que fazer tantos malabarismos para manter um mínimo de estabilidade institucional. A maior prova disso foi a nomeação de Carvalho Pinto, da confiança dos empresários paulistas, para o Ministério da Fazenda. Com a confortável visão de hoje, onde não entra a emoção, entendo a necessidade da conciliação. Na época, é claro que isso ficava difícil. As forças populares se sentiam traídas. Mesmo com todas as dificuldades, discordo de vários historiadores que colocam Jango como fraco e titubeante. Não vejo assim. Sua ousadia, para o contexto da época, foi até muito grande. Por exemplo, o presidente peitava as poderosas e retrógadas oligarquias rurais, que foram seu próprio berço familiar, pregando a necessidade da reforma agrária. Dava cobertura às Ligas Camponesas, de Francisco Julião, no Nordeste, e apoiava os ensaios de reforma agrária de Leonel Brizola, governador gaúcho. Gente, estamos falando de 1961-64…Se hoje, com todas as oportunidades de informação existentes, é ainda difícil lidar com este tema, que o diga a bancada ruralista, imaginem 50 anos antes. E mais: o presidente tentou limitar e controlar a remessa de lucros das empresas estrangeiras, que sangravam nossas divisas. Praticamente não havia o re-investimento. Fortaleceu a Petrobrás, altamente estratégica. Encampou a Refinaria de Capuava, semente da petroquímica, indispensável no mundo moderno. É verdade que o Plano Trienal, de Celso Furtado, fracassou. Mas foi uma tentativa de estabilização.

No dia 2 de abril de 1964, Jango foi convidado, por telefone, pelo general Amaury Kruel, comandante do II Exército (São Paulo), a continuar presidente. Bastaria mudar de lado. Dispensável dizer o que respondeu.

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A maior fase de glórias do sindicalismo brasileiro não foi nos anos 1970, no ABC, como muitos imaginam. Foi no governo de João Goulart. Os metalúrgicos do ABC, liderados por Lula, num movimento que acompanhei a cada minuto durante quase cinco anos, como chefe da Sucursal do ABC do Estadão, tinham conseguido paralisar 120 mil trabalhadores. Agora comparem: a maior greve, durante a gestão de Jango, paralisou 700 mil trabalhadores, de 14 categorias profissionais paulistas, como lembrou em artigo na revista “América” o ex-ministro do Trabalho de Jango, Almino Affonso. Isso não teve paralelo na História brasileira, nem antes, nem depois. E mostra o altíssimo grau de politização que abraçava o povo brasileiro naqueles tempos, só encontrando similares na Argentina e no Chile. Isso fortalece meu argumento do primeiro artigo desta pequena série: o golpe de 1964 tinha como meta apenas conter esse avanço político das massas. O nome do presidente é o que menos importava: fosse quem fosse, seria deposto pelas armas. Eles queriam afastar os civis e impor a ditadura, ponto final.

O Brasil não era fato isolado, isso se inseria numa geopolítica dos Estados Unidos de fomentar ditaduras no Cone Sul, atreladas aos interesses de Tio Sam. Querem uma prova? O governo de Castelo Branco, o primeiro da série de generais, foi reconhecido pelos Estados Unidos em cerca de 24 horas, um recorde em termos de diplomacia internacional.  Argumentos dos golpistas, como “combate à corrupção” e “quebra da hierarquia militar”, entre outras baboseiras, eram apenas pretexto. A corrupção era endêmica, desde o Império, e a hierarquia sempre foi quebrada, principalmente pelos altos comandos. Jango foi derrubado do Ministério do Trabalho de Vargas por causa de um manifesto de coronéis – se isso não é quebra da hierarquia, é o quê? Quem, da ala conservadora, protestou contra a insubordinação de meia dúzia de oficiais da Aeronáutica, quando promoveram as quarteladas de Aragarças e Jacareacanga contra a posse de Juscelino Kubitsheck?  E qual quebra da hierarquia poderia ser maior do que a derrubada de um presidente da República constitucionalmente eleito?

[LEIA AQUI A PARTE 2]

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