A arquitetura de e em determinado lugar nos dá valiosas pistas sobre a sociedade que por lá habita. Ela não representa somente a criatividade de quem a planejou e os recursos disponíveis à sua construção. Especialmente a arquitetura da casa é a forma plástica do cotidiano dos moradores somada a valores estéticos que são compartilhados social e inconscientemente por determinado grupo. Dentre os muitos elementos que moldam essa plasticidade do habitar, as portas parecem ser índices das dinâmicas entre os espaços públicos e privados à medida que, beirando ambos, tanto barram como dão acesso.
Estar acima da média de altura implica dolorosas experiências: cadeiras baixas e camas curtas nos dão dor nas costas e pés-direitos muito baixos requerem aquela humilhante posição de Notre-Dame. Não foi com estranheza, portanto, que me esbarrei nas reduzidas dimensões das construções inglesas. Algumas coisas são grandes, é verdade: catedrais, salões, universidades — mas não as casas! Quando cheguei à casa duma amiga, fomos à cozinha, onde a porta da geladeira, quando aberta, barrava a porta da cozinha e não deixava que ninguém por ali passasse.
— Tu não te incomodas com tantas portas? — perguntei.
— Não! Eu, na verdade, até que gosto. — respondeu ela.
Como assim até que gosta?! Meu retruco foi de total descrença, mas a porta da cozinha era só o primeiro beat dum ato que se tem mostrado bem mais complicado — e, talvez por isso mesmo, mais ilustrativo da sociedade inglesa.
Dois meses depois do incidente com a porta londrina, me dói admitir que, já por muitas vezes, me perdi no caminho ao banheiro em prédios públicos. Os banheiros estão, como também no Brasil, levemente escondidos das grandes áreas sociais — especialmente em restaurantes, bares e outros estabelecimentos onde a mera constatação de que sequer haja conexão indireta entre o lugar em que os alimentos são preparados e o lugar em que são, mais tarde, descartados gera asco mesmo nos mais gaudérios. Uma porta entre o primeiro e o segundo ambientes sociais. Outra porta entre o segundo ambiente e a sala de entrada do estabelecimento. Uma terceira porta, com um tímido aviso de toilets e chega-se a um corredor. Nesse mundo paralelo, se acumulavam vassouras, alguns baldes e carrinhos de serviço. Outra porta: o banheiro masculino. Outra porta, o vaso sanitário. Aos ébrios, Alice no país sem mictórios.
Depois de algumas dessas experiências, me obriguei a perguntar a alguns amigos daqui se eles sabiam o porquê de tantas portas. A primeira reação, como se esperaria de alguém acostumado a onde mora, foi de incompreensão da minha dúvida: como assim muitas portas?! Numa primeira tentativa de me explicarem o fenômeno que lhes fora — parecia — recém descoberto, o clima desponta: construções menores consomem menos energia em aquecimento; as portas mantêm o calor onde ele for mais necessário. De fato, a relação entre aquecimento e custo se torna ainda mais importante quando, por exemplo, o preço do gás aumentou 10,4% só neste ano.
Por que havia um mundo paralelo entre os ambientes sociais e os banheiros naquele bar?
Mesmo convencido pelo fator climático, algo ainda parecia faltar. Por que havia um mundo paralelo entre os ambientes sociais e os banheiros naquele bar? Por que uma senhora, num desses reality shows em que os participantes pedem ajuda para comprar sua nova casa, se referiu ao espaço social que combinava cozinha e salas de estar e de jantar com a frase ‘this is just not proper’*?
Proper — esta era a palavra que me faltava. Etimologicamente, vem da mesma raiz que originou ‘próprio’ na língua portuguesa, mas, em inglês, é outro significado que se destaca: o de correto, ajustado, decente — apropriado. Não é, pois, deveras apropriado que se perca dinheiro aquecendo cômodos onde não há ninguém. Tampouco é apropriado que clientes enxerguem os caminhos da sujeira e, além disso, que enxerguem quem a limpa. É inapropriado escutar a descarga alheia. É inapropriado exibir às visitas a bagunça da cozinha quando será a sala de estar ou de jantar o grande parque de exibições e de interações sociais.
As portas anglo-saxônicas e as portas greco-latinas são aberturas que nos apresentam a espaços e que nos conduzem entre eles.
Além dos significados que outorgamos hoje às palavras, acredito que entender os usos históricos nos dê uma visão panorâmica do pensamento através da linguagem. Porta vem do homônimo latino, que, por sua vez, veio do grego poros (meio de passagem). Gerou ainda os sentidos dos verbos italiano portare (levar, conduzir) e francês porter (usar, vestir). No inglês, door vem da mesma raiz que originou, no alemão, Tor (portão). O portão, gate, vem do germânico comum gatą (buraco, abertura). As portas anglo-saxônicas e as portas greco-latinas são aberturas que nos apresentam a espaços e que nos conduzem entre eles.
Na sociedade inglesa, portanto, a função térmica das portas é só uma delas — e, possivelmente, seja a mais tópica. Na Inglaterra em que se desculpar é hábito mesmo quando não parece haver incômodo, na Inglaterra onde paquistaneses e indianos são taxistas e caucasianos viram membros do parlamento, na Inglaterra onde professores universitários são proibidos de se chamarem de professor até cumprirem uma lista de pré-requisitos oficiais e na Inglaterra onde uma localidade precisa da assinatura da rainha para passar de village para town e, então, para city — nessa Inglaterra, onde se misturam influências germânicas e latinas até na língua, as portas nos ensinam o local apropriado de cada coisa e de cada pessoa. Serviçais e clientes não se misturam e, de preferência, nem se enxergam. Corredores viram pequenos não-lugares isolados onde só há passagem, mas nunca há ligação com os espaços sociais. Público e privado não se misturam, eles se evitam e se apartam.
Nesse jogo de exclusão mútua entre público e privado e entre produtores e consumidores, mantém-se um estado de inércia social, uma tradição em conservar cujos desvios são constantemente domesticados pelas passagens e vias de acesso. As portas apropriam espaços e desapropriam subjetividades dissonantes. E olha que aquela senhora já nos dissera tudo isso numa só frase — ‘this is just not proper’*
CLOSE THE DOOR: O QUE AS PORTAS NOS DIZEM SOBRE A INGLATERRA, pelo viés de Gianlluca Simi.
gianllucasimi@revistaovies.com
*’Isto não está certo’.