Em um espaço vizinho à estação rodoviária da cidade de Passo Fundo, caminho entre Santa Maria e Sananduva, a ainda tímida luz do amanhecer permitia divisar um aglomerado de lonas pretas, umas taquaras amontoadas e alguns objetos e peças de roupa de um colorido discreto e meio fosco, talvez devido à poeira, que as destacava das árvores do terreno: tratava-se de mais um acampamento kaingang, provisório e precário, como muitos dos que existem por todo o estado.
A visão que nos recepcionou – a mim e aos indigenistas do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN), a quem acompanhava – na única parada antes de rumarmos à Terra Indígena de Passo Grande do Rio Forquilha foi como um lembrete: para que não nos esquecêssemos, no alvorecer do dia, qual era a questão que acompanharíamos de perto até o entardecer.
A Terra Indígena de Passo Grande do Rio Forquilha fica no limite entre os municípios de Sananduva e Cacique Doble, na região norte do Rio Grande do Sul. Chegando por um dos acessos de chão batido que levam até ela, é possível ver à margem da estrada uma placa metálica que adverte, em letras vermelhas e maiúsculas: TERRA PROTEGIDA. Sobreposto a uma faixa diagonal nas cores nacionais, o aviso é precedido pelo nome dos órgãos e instâncias que são os supostos advertentes: Governo Federal, Ministério da Justiça e Fundação Nacional do Índio (Funai).
A placa sustentada por dois troncos de madeira não é falsa, mas o anúncio oficioso tampouco é totalmente verdadeiro: a terra ainda não é protegida porque o processo de demarcação encontra-se em aberto, quase dez anos depois de seu início. No dia 29 de setembro de 2013, como forma de pressionar o poder público a atentar para a questão indígena e resolver o problema da luta pela terra, os indígenas kaingang de Passo Grande do Rio Forquilha resolveram fazer a simbólica autodemarcação do território.
Desde então, a placa fincada pelos próprios índios à beira da estrada simboliza o descaso do governo federal com a questão indígena e a posição vacilante e ambígua do governo estadual frente aos conflitos que pipocam de maneira cada vez mais urgente em pelo menos 17 áreas do Rio Grande do Sul.
No que concerne aos povos tradicionais indígenas e quilombolas, Passo Grande do Rio Forquilha é um dos territórios que se encontram no cerne da disputa territorial – e, consequentemente, ideológica – no estado.
Isso porque o território de 1916 hectares, que foi reconhecido em 2011 por Portaria Declaratória do Ministério da Justiça como de ocupação tradicional do povo kaingang, abrange cinco comunidades de pequenos agricultores titulados pelo estado e pela União ao longo do século passado. A área é reivindicada por cerca de 240 indígenas de 65 famílias.
A ausência de estrutura e direitos básicos, a demora e o desinteresse do Poder Público na resolução de problemas urgentes, as denúncias de ameaças e tentativas de coerção e uma situação de conflito que tem se acirrado e que já chegou, inclusive, ao confronto direto fazem da área um significativo retrato das condições dos povos indígenas no Rio Grande do Sul.
O impasse de Passo Grande
Em função de um processo histórico de colonização e remoção dos povos indígenas para reservas isoladas e diminutas, grande parte dos 1,9 mil hectares sobre os quais se assenta a terra de Passo Grande do Rio Forquilha são ocupados por agricultores que compraram títulos vendidos pelo Estado. A estimativa é que cerca de 110 famílias de agricultores, donas de 150 propriedades, necessitem ser reassentadas ou indenizadas para que a demarcação da terra kaingang possa ser concluída.
Atualmente, cerca de 40 famílias kaingang ocupam um espaço pequeno, parcela do território já reconhecido, e aguardam o fim da demarcação física da área, com a colocação de marcos nos limites indicados pelos estudos de identificação e delimitação, concluídos em 2008 e declarados na portaria do Ministério da Justiça em 2011.
Depois, ainda será necessário concluir o levantamento fundiário, para avaliar as benfeitorias e as terras que devem ser indenizadas aos agricultores.
Este, justamente, é um dos pontos centrais do conflito estabelecido: segundo a legislação vigente, a FUNAI é responsável pela indenização, em valor de mercado atual, apenas das benfeitorias – ou seja, do que foi construído ou plantado em cima do terreno que pertence à terra tradicional. A indenização do valor da terra não é uma incumbência do órgão federal.
Entretanto, no processo de colonização e reforma agrária ocorridos no Rio Grande do Sul ao longo dos séculos XIX e XX, o governo do estado, imbuído de espírito positivista e republicano, teve papel central, criando aldeamentos e reservas ao passo que loteava terras indígenas e distribuía títulos dessas terras para que colonos, geralmente europeus, “civilizassem” o estado.
Assim, o próprio governador Tarso Genro, em reunião com lideranças indígenas feita em junho de 2013, admitiu que é papel do estado buscar recursos junto à União para indenizar plenamente – ou seja, por terras e benfeitorias – os agricultores assentados sobre terra indígena.
Apesar de essa afirmação ter sido feita aos indígenas em uma reunião no Palácio Piratini, em junho, pouca coisa caminhou nesse sentido. A situação é agravada pelo fato de que representantes dos agricultores no sul, como a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (FETRAF-Sul/CUT), têm se posicionado contra a demarcação das terras e o reassentamento dos agricultores.
A retomada
“No fim, os que acabam sofrendo são os agricultores e nós. Os que não têm culpa, na verdade, nenhuma, acabam pagando por um erro do passado do governo”, explica Leonir Franco, cacique de Passo Grande do Rio Forquilha. “O governo sabia que era uma área indígena, mas mesmo assim tirou os indígenas de cima e titulou os colonos, vendeu uma área que nunca deveria usar e agora não resolve o problema”, sintetiza o cacique, que reconhece que os agricultores construíram uma vida e uma cultura sobre aquelas terras, mas considera que o direito dos indígenas ao território é anterior.
Leonir é uma liderança jovem, de cerca de 30 anos e traços que, diferentes dos de seu avô, não lembram o estereótipo dos índios dos filmes e da TV. Como a grande maioria dos indígenas da área, além de falar um português um tanto marcado, o cacique tem como língua materna o kaingang e conhece com detalhe o espaço físico, a geografia e a história da área tradicional.
Seu avô Antônio Malaquias – retratado, na ocasião de nossa visita, pelo cartunista Carlos Latuff – é um dos seis indígenas que vivenciaram os últimos momentos da ocupação permanente da área e voltaram com os jovens, décadas depois, para retomar o território perdido.
Conforme os relatórios da FUNAI, a presença dos povos Jê meridionais – dentre os quais estão os kaingang – no Rio Grande do Sul é imemorial e remonta a vários séculos, de maneira que muitos dos nomes de municípios da região norte do estado são de origem kaingang.
O registro oficial mais antigo da presença indígena em Passo Grande do Rio Forquilha, especificamente, é de 1889, e os indígenas resistiram na região em ocupação contínua até meados da década de 1970. Quando o último pedaço da terra tradicional foi loteado e os índios foram forçados a deixar a área, os limites do território já haviam se contraído consideravelmente. “O governo se aproveitou da inocência de nossos antepassados, que se deixaram levar pela conversa e entregaram a terra. Foram, na verdade, expulsos”, conta o cacique Leonir Franco.
O nome da terra indígena remete a um ponto onde, em período de seca, o fluxo do Rio Forquilha, que corta o território, diminui e forma-se um “passo”, que os antepassados podiam atravessar a pé. Segundo o cacique, é sabida e reconhecida inclusive por alguns dos habitantes não-índios da região a presença de dois cemitérios kaingang, um do lado de Sananduva e outro do lado de Cacique Doble.
Ele explica que a maioria dos índios que agora ocupam e lutam pelo reconhecimento da Terra Indígena de Passo Grande do Rio Forquilha pertence, como ele, à segunda geração depois daquela que foi por fim expulsa das terras no século passado.
As 55 famílias que iniciaram a luta, em 2004, para a retomada de Passo Grande são provenientes das reservas indígenas de Ligeiro e Cacique Doble, para onde seus familiares haviam sido removidos depois que deixaram a sua terra original.
Desde então, foram seis anos vivendo sob barracas de lona, à beira da rodovia RS-343, e quase três outros anos ocupando um pedaço do território reconhecido. Hoje, a ocupação de 40 famílias conta com algumas casas de madeira, dispostas em uma formação quadrangular não muito grande, e abrange um espaço total de cerca de 80 hectares, dos quais cerca de 60 são dedicados ao plantio de trigo.
Direitos em conflito: terras, tiros e benfeitorias
Duas afirmações, na retórica do cacique Leonir, são claras e irredutíveis: a primeira é que os indígenas não abrem mão de nenhum de seus direitos, especialmente o de acesso à sua terra tradicional, conquistado com muita luta na Constituinte de 1988 e indispensável para a sobrevivência de seu povo e de sua cultura.
E a segunda, não menos importante, é que os índios não consideram os pequenos agricultores seus inimigos. “A gente não é contrário [aos agricultores], a gente é até a favor para que eles recebam tanto a indenização quanto a terra”, afirma. “Se for preciso a gente briga por eles, o nosso processo não é só para que o governo devolva a terra para nós, mas sim para também indenizar a eles, dar terra e pagar as benfeitorias”. Exemplo disso é o fato de que os índios propuseram um acordo aos agricultores da região ocupada: eles terão que deixar a terra tradicional, mas poderão colher tranquilamente as lavouras que já plantaram.
Embora a história das políticas de colonização e a estrutura fundiária particular do Rio Grande do Sul coloquem indígenas e pequenos agricultores em lados opostos, os indigenistas do GAPIN e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Sul ressaltam que o panorama da questão agrária no estado não está completo sem levarmos em consideração as grandes propriedades que concentram a maior parte do território agricultável – muito mais do que os 0,4% que, segundo o CIMI, pertencem a terras indígenas, e muito mais do que podem vir a pertencer caso as demarcações em andamento sejam finalmente realizadas.
Em setembro, as entidades indigenistas GAPIN, CIMI e Conselho de Missão entre os Índios (COMIN), junto ao Conselho de Articulação Indígena Kaingang (CAIK), lançaram um documento denunciando práticas de coerção e manipulação por parte do governo estadual petista. As entidades acusam o governo de favorecer o agronegócio concentrador e expansivo que ataca os direitos indígenas no país inteiro e que, graças à disputa imediata entre indígenas e pequenos agricultores, pode permanecer oculto no Rio Grande do Sul.
Roberto Liebgott, do CIMI, explica que essa situação é também explorada em nível nacional, como se o caso particular do estado pudesse servir de parâmetro para barrar as demarcações em outros estados nos quais a disputa é direta contra o grande agronegócio. “Com as terras indígenas começando a serem demarcadas [no RS] em terras ocupadas por pequenos agricultores, os setores ligados ao agronegócio e ao latifúndio se aproveitam do problema que aqui existe para poder transformar em problema nacional”.
Com a pressão dos sindicatos rurais, o governo estadual retrocedeu em relação aos compromissos assumidos junto aos povos indígenas e quilombolas. Desde junho, diversos prazos e reuniões foram adiados ou simplesmente desconsiderados, a exemplo da ocasião em que, em setembro, indígenas e quilombolas foram alvos de brutal repressão em frente ao Palácio Piratini, com balas de borracha e bombas de efeito moral e de gás lacrimogênio, depois de mais um prazo descumprido.
Após dois dias sem recepcionar os indígenas, no momento do injustificado ataque policial o governador Tarso Genro encontrava-se na cerimônia de abertura da Expointer, onde acontecia uma manifestação de produtores rurais contrários às demarcações.
Diversas movimentações têm ocorrido desde que o processo de demarcação física da terra de Passo Grande do Rio Forquilha iniciou-se, em março de 2013: sucedem-se reuniões e ações judiciais, tanto de reintegração de posse quanto movidas pelo Ministério Público Federal (MPF), exigindo a continuidade do processo.
Por duas vezes, indígenas avançaram na ocupação de partes da terra reconhecida. Desde a última delas, quando a placa representando a autodemarcação foi afixada pelos kaingang, ocupam uma casa abandonada por uma família de agricultores.
Em julho, uma ocupação de oito dias terminou em um conflito armado, no qual foi apreendida uma arma de grosso calibre em posse de agricultores. Um agricultor ficou ferido e um dos indígenas – que não possuíam armas de fogo – foi baleado na perna.
Segundo o relato dos indigenistas, o confronto foi motivado por uma afirmação feita pelo governador estadual a poucos quilômetros dali, na cidade de Erechim. Tarso Genro teria afirmado que, caso fosse ordenada a remoção dos pequenos agricultores, ele não cumpriria a ordem judicial, o que teria exaltado os ânimos.
Diferente das ocasiões em que a polícia do estado agiu de forma repressiva contra militantes de movimentos sociais, em Porto Alegre, o governador teria assegurado perante os agricultores que a Brigada estaria sob seu pleno controle: “Posso afirmar que se houver uma decisão judicial para que a Brigada Militar retire agricultores familiares das suas terras”, teria dito, segundo nota da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, “eu posso ir preso, mas não vou permitir que policiais subordinados ao Estado cometam tal ato”.
Na mesma tarde, horas depois do término da atividade em Erechim, os indígenas de Passo Grande do Rio Forquilha já se preparavam para abandonar a ocupação e retornar à antiga sede quando foram surpreendidos por homens armados que chegaram atirando.
O Ministério Público Federal (MPF) de Erechim, na ocasião, pediu esclarecimentos ao Piratini e instaurou um inquérito civil público para apurar a possível prática de ato de improbidade administrativa pelo governador, por possível incitação pública à desobediência de ordens judiciais, violação de interesses de direito das comunidades indígenas e da própria política de demarcação estabelecida pela União e pela Justiça Federal.
“Tem gente querendo fazer política em cima de direitos”
Em resposta à solicitação do MPF, o governador Tarso Genro afirma que está diante de duas legitimidades: o direito imemorial das comunidades indígenas e o título de propriedade outorgado pelo Estado aos pequenos agricultores.
Algumas manifestações de representantes do governo que circulam na imprensa, entretanto, parecem convergir com as propostas dos ruralistas (defensores dos grandes proprietários de terras), em nível nacional, de relativização dos direitos indígenas.
Em setembro, a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) do estado afirmou, em nota, que “a posição do Governo é de defesa dos direitos dos indígenas e dos agricultores”, e ofereceu seis mil hectares de terras devolutas que estão à disposição de ambos para a solução dos conflitos. O secretário da pasta, Ivar Pavan, declarou que essas áreas poderiam, inclusive, “ser legalizadas e transformadas em área indígena, mostrando que é possível buscar alternativas para além da tradicionalidade das terras”.
Essa opção, como foi por diversas vezes reiterado em notas e documentos, não existe para os povos indígenas. O direito reconhecido pela Constituição é o direito originário às terras tradicionais, pela relação social e cultural particular que estes povos têm com ela, e daí é que advém o impasse. “Não negociamos terras”, reitera o cacique Leonir. “Tratamos de uma questão de memória de nossos antepassados”.
A proposta da Secretaria é questionada por indígenas e apoiadores, que afirmam que grande parte dos 6 mil hectares oferecidos são de áreas degradadas ou com plantio de eucalipto sobre elas.
A relativização do preceito constitucional de tradicionalidade das terras é o que está na ordem do dia, há algum tempo, nos projetos de lei contrários aos povos indígenas feitos pela bancada ruralista, representante dos interesses dos latifundiários no Congresso Nacional. Lado a lado com a tentativa de deslegitimação da Funai, diversos projetos de leis e emendas – que visam a regular ou alterar os dispositivos constitucionais – tentam rever ou anular os direitos dos povos indígenas à terra, como é o caso da PEC 215 e do PL 227.
Entidades indigenistas e indígenas também denunciaram, no documento lançado, a tentativa de integrantes do governo estadual de fazer com que o cacique de Passo Grande do Rio Forquilha aceitasse para a demarcação um pedaço de 237 hectares da área – exatamente o último reduto da ocupação kaingang nos anos 1970, loteado pelo governo do estado – e abrisse mão do resto do território.
“O estado queria que a gente aceitasse meio na marra esses 237 hectares. Se a gente aceitasse, eles vinham e indenizavam [os agricultores] do dia para a noite, e nos davam a estrutura completa que a comunidade tem que ter”, relata o cacique Leonir Franco. Questionado sobre quais aspectos da estrutura ofertada – e condicionada a abrir mão da maior parte da área – a comunidade já conta, o cacique afirma: “não temos nada, só contamos com um pouco de ajuda da SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena] na saúde”.
Mesmo sem água encanada, luz elétrica e acesso à educação infantil bilíngue a que os indígenas têm direito, a comunidade resiste. “A pressão política hoje está muito grande, tem grandes interesses, gente querendo fazer política em cima de direitos”, afirma Leonir.
Têm ocorrido muitas manifestações de agricultores contrários à demarcação da terra de Passo Grande do Rio Forquilha, com trancamento de rodovias e representações em instâncias políticas e judiciais. Durante a ocupação indígena de julho, a Prefeitura Municipal de Sananduva, via decreto executivo, paralisou as atividades administrativas de um dia para o outro, para fomentar atividades em apoio aos agricultores e contra as demarcações.
Em carta divulgada em maio deste ano, a Fetraf-Sul/CUT afirmou que é “injusta e até criminosa a tentativa de desapropriar agricultores familiares que há mais de um século sobrevivem em suas terras”. A entidade afirma que os agricultores são vítimas, tanto quanto os indígenas, e “não podem pagar hoje pelos desmandos das elites latifundiárias, cometidos no passado”.
A organização garante, no mesmo documento, que não é contrária aos direitos territoriais dos povos tradicionais, mas apresenta algumas reivindicações, como a revogação do Decreto nº 1.775/96, que regulamenta os procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas, e o fim da autonomia da FUNAI para as demarcações, com a formação de uma “ampla comissão” composta por diversos órgãos do Governo Federal.
A nota afirma que “é inadmissível tratar regiões de colonização intensiva com pequenos agricultores minifundiários do Sul do Brasil da mesma forma como são tratadas as regiões de antigos exploradores e usurpadores de terras de povos tradicionais como no centro oeste e na Amazônia”. A situação é complexa: embora advogue em nome dos agricultores familiares, a pauta de reivindicações apresentada pela entidade não difere muito daquela defendida pelos ruralistas que, no Congresso, representam os exploradores e usurpadores a que a carta se refere.
Os pequenos e os grandes
A convivência com os pequenos aqui é boa. Quem tiver dúvida disso pode vir a campo, a gente convive e é vizinho dos pequenos
A distinção entre “grandes” e “pequenos” agricultores feita pela entidade dos trabalhadores na agricultura familiar difere consideravelmente daquela feita pelos indígenas. Enquanto a federação afirma que os “os agricultores não aceitam indenização porque não concordam com a desapropriação” e alguns setores políticos fazem uso do acirramento do conflito, o cacique Leonir Franco afirma que quem está barrando o processo de demarcação são “os grandes”.
No levantamento fundiário realizado pela FUNAI e publicado no Diário Oficial da União em 2008, foram elencadas 146 propriedades rurais sobre a terra indígena reconhecida. Destas, além de uma escola municipal, a grande maioria é de pequenas propriedades, conforme a classificação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), muitas delas com menos de dez hectares. Há nove médias propriedades, com aproximadamente 100 hectares, mas 16 imóveis não puderam ser mensurados.
O indigenista Roberto Liebgott, do CIMI, afirma que é importante averiguar se esse levantamento realizado no estudo da FUNAI leva em consideração a posse de títulos das terras, porque as lideranças indígenas relatam a ocorrência de práticas de grilagem na região – situação em que grandes produtores apropriam-se e plantam em terras sobre as quais não têm títulos. “Aqueles que mais pressionam contra a demarcação são os que apenas exploram a terra e que não vivem lá, há suspeitas inclusive de que são grileiros das terras”, afirma.
O cacique kaingang acredita que os conflitos ocorridos foram motivados pelos “grandes”, inclusive, de fora da área. “A convivência com os pequenos aqui é boa”, afirma. “Quem tiver dúvida disso pode vir a campo, a gente convive e é vizinho dos pequenos”. Os pequenos, no caso, são camponeses, proprietários de pequenas parcelas de terra dentro da área demarcada e que convivem diretamente com os indígenas ocupados.
O convite a conferir a situação de perto, para os kaingang, é mais do que um desafio retórico: é uma demanda concreta solicitada repetidamente ao governo estadual, para que este vá a campo e conheça a situação real da parte dos camponeses e agricultores que não se vê representada nas entidades ouvidas pelo governador nas reuniões e que, entretanto, não tem voz.
É o caso de João*, que produz alimentos para subsistência, trabalha de peão para alguns dos colonos da região e é um antigo morador da área. Questionado sobre qual o maior problema, o camponês que mora próximo das casas da ocupação indígena afirma: “tá demorando demais”.
Pai de sete filhos que mora com a esposa e três menores de idade, João afirma que aceita a indenização e o reassentamento, mas que está cansado de esperar. “Eu queria que saísse logo isso aí”, afirma. “Se o governo ajudar, que eu possa sair, colocar meus filhos… se por acaso pagarem, aí resolve para comprar outro lugar e não deixar nós na estrada”.
Como explica Matias Rempel, do GAPIN, a indenização pela terra pode vir a favorecer muitos dos proprietários que, como João, tem menos de um módulo rural. Essa medida, que é um padrão do INCRA variável de acordo com a região e que, no caso dos municípios de Sananduva e Cacique Doble, equivale a 20 hectares, é o valor mínimo a ser indenizado. Além disso, cada filho maior de 16 anos residente na terra tem direito a um módulo extra.
Segundo Liebgott, esses valores mínimos são determinados por portarias e normas administrativas da FUNAI, do INCRA e do Ministério da Justiça, que regulamentam o processo de demarcação e a forma de indenização dos agricultores que possuem títulos de boa fé.
João foi um dos depoentes que, durante os estudos antropológicos, afirmou que a terra era, de fato, habitada por indígenas – dos quais era vizinho e com quem se relacionava, como agora, de forma amigável. Por esse depoimento e pela relutância em revisar a sua posição e apagar os índios da história local, recusando-se a assinar um documento contrário aos indígenas que ele, analfabeto, seria incapaz de ler, o agricultor conta que foi ameaçado por alguns dos “grandões” – produtores das maiores porções de terra aos quais ele se refere com as mesmas palavras do cacique kaingang.
Até o dinheiro para pagar advogados acaba sendo um elemento de diferenciação, conforme o seu relato. “Eles têm dinheiro para falar e dar contra, eles pagam e repagam advogado e tudo. Mas e eu, vou fazer o quê? Eu não estou contra os índios. Por que não decidem de uma vez, não fazem as coisas direito?”
Questionado se, alguma vez, chegou a ser ouvido por alguém do governo, João pensa um pouco e afirma: “não”.
***
No dia 24 de outubro, uma audiência realizada no Ministério Público Federal, em Erechim, determinou a continuidade da demarcação da terra de Passo Grande do Rio Forquilha, que deveria ocorrer entre os dias 11 e 18 de novembro. A empresa contratada pela FUNAI para a colocação dos marcos geodésicos seria acompanhada pela Polícia Federal e poderia solicitar a presença da Força de Segurança Nacional, caso fosse necessário, para concluir as atividades no prazo determinado.
Esse procedimento não significa que os agricultores serão removidos imediatamente, mas é um passo importante para a posterior homologação do território e o levantamento dos hectares e proprietários a serem indenizados.
Na semana anterior à data determinada, produtores rurais trancaram rodovias, manifestando-se contra as demarcações. Oito agricultores, acompanhados de um deputado federal, representantes da Fetraf-Sul e do governo estadual participaram de uma reunião com o Ministro da Justiça, em Brasília, solicitando a suspensão das demarcações.
Em 7 de novembro, a suspensão foi anunciada pelo ministro e os acordos realizados na audiência do MPF acabaram invalidados. Em seguida, o cacique Leonir Franco também participou de uma reunião em Brasília, e ficou acertada uma visita de representantes do ministério a Passo Grande do Rio Forquilha para a próxima semana, com a finalidade de conferir a situação real dos indígenas e dos pequenos agricultores na região.
Um dos possíveis problemas para o governo é que os agricultores, tal qual os indígenas, não aceitem as terras devolutas localizadas nos 6 mil hectares que o estado tem a oferecer para reassentamento: o impasse pode vir a se resolver com a indenização em dinheiro, mas não deixa de fazer-nos lembrar da estrutura agrária estabelecida no estado e da cômoda situação do agronegócio.
Na avaliação de Roberto Liebgott, do CIMI, a pressão para barrar o processo de demarcação em Passo Grande do Rio Forquilha está ligada à possibilidade de se estabelecerem formas de solucionar o conflito sem ceder aos interesses dos ruralistas. “Solucionando aqui, com indenização das benfeitorias e dos títulos de boa fé, abre-se precedente para se proceder da mesma forma no país todo e revela-se, ao mesmo tempo, os grileiros, demonstrando que há outros interesses que não são de proprietários de fato. Uma solução para os pequenos implica o questionamento aos grandes”.
A situação em Passo Grande do Rio Forquilha não é simples e um dia de visita, certamente, não é o suficiente para captar toda a sua complexidade. Mas é o mínimo que indígenas e camponeses não contemplados pelas vozes eleitas para a interlocução oficial esperam do governo, para que finalmente se chegue à resolução do impasse sem que ninguém tenha que abrir mão de seus direitos.
*Nome fictício
PASSO GRANDE DO RIO FORQUILHA: DA AUTODETERMINAÇÃO À AUTODEMARCAÇÃO, pelo viés de Tiago Miotto
tiagomiotto@revistaovies.com
Você não quer ver a minha cor?
Você não pode dizer que a sua cor tem mais valor…
Você não pode impedir da terra ter cor…
Você não pode desprezar a nossa dor…
Você nunca vai poder impedir a minha cor de sentir o amor…
O amor pela terra, o amor pela cor, cor da terra…
que infelizmente você não sabe o sabor…
O sabor do amor, do amor pela minha cor!!!
Um brinde a luta do povo kaingang pela sua terra, pelo seu amor, pela sua cor, cor da terra, cor de muito amor… (Laísa Ribeiro).