Em 1º de Novembro, entrou em vigor na Alemanha uma lei que cria um novo mecanismo nas políticas de desígnio sexual, isto é, em como as pessoas são classificadas morfologicamente de acordo com o que se convencionou chamar de sexo. Esse mecanismo é a criação de um campo em branco e/ou indefinido além das opções “masculino” e “feminino” – categorias binárias amplamente inteligibilizadas no âmbito estatal dos governos mundiais. A medida foi chamada de criação de um “terceiro gênero” e parece estar sendo considerada uma medida ousada e avançada do ponto de vista das políticas identitárias.
Contudo, será que tal medida sobrevive a uma análise mais minuciosa?
As pessoas mais afetadas, as pessoas intersexo, não são contempladas por essa medida e, devo dizer, segundo as organizações intersexo ativistas como a Organisation Intersex International (OII), a medida pode incentivar ainda mais as chamadas mutilações genitais ou “cirurgias corretivas” coercivas – cujo fim é uma bandeira antiga do movimento.
Explico. Primeiro, a medida parece ter sido direcionada justamente às pessoas intersexo, mas apenas àquelas que nascem com genitália ambígua. Ou seja, as pessoas intersexo que não nascem com genitália ambígua não terão acesso a tal medida. Segundo, fica a questão: se o critério será genitália ambígua, quem decidirá quais pessoas intersexo podem ou não acessar a resolução? Quem avaliará os corpos dessas pessoas? Aquelas pessoas que socialmente já detém o poder sobre seus corpos: os médicos. Assim, a discussão se dá em torno de autonomia corporal, e não de políticas identitárias.
Liberdade de Identificação para Todxs:
Ainda que a ideia de um campo em branco seja, em tese, uma ideia que tenta fugir do binarismo masculino/feminino, a medida ainda parece ser só aplicável para pessoas intersexo. Pessoas não-intersexo não poderiam também ser designadas fora do binário para no futuro escolherem? Por que só as pessoas intersexo? Vemos então que se criam mecanismos de exclusão na tentativa de inclusão, como a OII Europeia bem colocou:
“Ao invés de permitir que o registro de sexo fique aberto para todxs, e não apenas para crianças intersexuais, novamente regras especiais são criadas, o que produz exclusão. As condições de vida da maioria das pessoas intersexo não irão melhorar como resultado disso.” (tradução própria).
Além disso, o fato do campo em branco ser mandatório significa que então uma categoria é necessariamente exigida e, como antes, uma criança terá que ter alguma identificação de sexo, mesmo essa categoria sendo “indefinida” ou “em branco”. Com isso, trocamos seis por meia dúzia no quesito autonomia e estaremos decidindo, novamente, pela criança.
Necessitamos retirar dos médicos a autoridade de decidir sobre os corpos intersexo. Aliás, sobre todos os corpos no que concerne a sexo – não só pessoas intersexo, mas pessoas trans* também sofrem com os desígnios coercivos do poder médico.
A OII da Austrália colocou algumas questões, sobre as quais vale a pena refletir, a serem discutidas sobre a resolução.
- É uma classificação mandatória [o campo em branco] para crianças que apresentem características físicas específicas? Nós nos opomos fortemente a isso; Na nossa visão, isso irá provavelmente encorajar cirurgias para alteração de tais características.
- Essas cirurgias serão criminalizadas? Tal pré-requisito poderá fornecer um contexto adequado, mas ainda coloca crianças intersexo como alvo de tratamento diferenciado.
- Os bebês, crianças e suas famílias estarão protegidxs de discriminação? Esse é um pré-requisito. Como serão integradxs na escola e, posteriormente na vida, como irão acessar a gama completa de possibilidades de trabalho e em relacionamentos interpessoais?
Por fim, vemos que o “terceiro gênero” não é, na realidade, terceiro gênero coisa nenhuma. Infelizmente os tablóides deslocaram a discussão do campo da autonomia corporal para o das políticas/direitos de identificação. O centro da questão são as pessoas intersexo e a mais-que-urgente bandeira das cirurgias não-consensuais de mutilação genital, a qual as crianças intersexo ainda são submetidas para serem designadas como de um sexo ou de outro. Mesmo com a opção “indeterminado” ou “em branco”, a opção de desígnio continua mandatória, fazendo com que a autonomia corporal e de identificação dessas pessoas permaneça nas mãos dos médicos que irão avaliar seus corpos, classificando-os. Enquanto o poder decisório manter-se nas mãos de outrxs, especialmente de autoridades, não existirão resoluções – por mais avançadas que pareçam – que garantirão a autonomia que precisamos para viver uma vida mais plena enquanto sujeitos trans*, intersexo, gênero não binários e/ou outros.
O “TERCEIRO GÊNERO” E PORQUE ESSA DISCUSSÃO NÃO TEM NADA A VER COM POLÍTICAS IDENTITÁRIAS, pelo viés da colaboradora Hailey Kaas*
*Tradutora residente em São Paulo; Pesquisadora das áreas de Linguística, Teoria Queer, Gênero e (Trans)feminismo. Transfeminista e ativista por Feminismo Intersecional. Escreve no blog Gênero à Deriva: http://generoaderiva.