O hino está para o clube como o jingle para a publicidade. Um não sobrevive sem o outro. É como uma simbiose que, para impregnar na memória, precisa ser simples, curto e, como uma fotografia, ter o poder de eternizar a glória do produto. E ninguém melhor do que o compositor Lamartine Babo utilizou essas características para traduzir em letra e música o amor do torcedor pelo seu time.
Gênio popular. Rei do Carnaval. Exímio compositor de marchinhas. Versátil. Irreverente e com humor apurado. Boêmio até a décima geração. Malicioso. Homem do tra-la-lá. O curioso que se dispuser a bisbilhotar a biografia desse legítimo carioca, inevitavelmente, vai se deparar com esses adjetivos. O vocabulário que define o músico é extenso e de múltiplas faces.
Definindo os atributos do autor que — mesmo com uma bagagem musical de mais de 400 canções — faleceu pobre, em 1963, no bairro da Tijuca, e teve seu funeral custeado pela União Brasileira de Compositores, o produtor musical Zuza Homem de Mello escreveu: “com humor insuperável, intuição, sentimento e versatilidade, Lamartine Babo criou uma obra tão espontânea quanto perene”.
Nascido no Rio de Janeiro, em 10 de janeiro de 1904, Babo pode ser considerado um daqueles fenômenos que de séculos em séculos surgem no mundo. Muito conhecido no carnaval carioca em razão da sua facilidade em criar marchinhas ‘chicletes’ como “Marcha do Grande Galo” e “Grau 10”, suas atividades artísticas foram premiadas, endossadas pelo sucesso do politicamente incorreto “O Teu Cabelo Não Nega”. Aqui abro um parêntese para dizer que esta canção se viu envolvida em um imbróglio autoral com os pernambucanos Irmãos Valença, que afirmaram que já cantavam a melodia nos bares de Recife desde 1929. Dias após enviá-la para avaliação de uma gravadora fluminense, a dupla viu sua criação, já ‘ajustada ao gosto carioca’ pelas espertas mãos de Babo a pedido da empresa, virar sucesso nas rádios locais.
No final da década de 40, impulsionado pela Copa de 50, que batia às portas, e desafiado por um programa de rádio (Trem da Alegria), o compositor resolveu dar vida aos hinos de todos os participantes do campeonato carioca daquele ano. Reza a lenda que em único dia foram compostas as letras dos quatro grandes clubes do Rio (Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo), e também do time de sua paixão, América, bem como do Bangu. Dias depois, gerou os hinos do São Cristóvão, Madureira, Bonsucesso, Olaria e o desconhecido Canto do Rio, de Niterói. O interessante é que o quadrado principal já possuía hinos oficiais da época da fundação, mas se rendeu às novas composições alternativas, que caíram no gosto popular, de tal forma que das antigas ninguém se lembra — são obras para a Velha Guarda. Já os chamados ‘nanicos’ agradeceram o presente, pois ainda não tinham uma melodia que transmitisse suas glórias ao mundo.
Nada define Lamartine Babo melhor que as suas letras. O seu parque de composição era simples, mas sofisticado — talvez estejam aí os traços de sua genialidade. Babo versava sobre o comum. Esquecia os infortúnios diários e fazia um passeio de cunho social pelo subúrbio e seus hábitos. Nos hinos, trouxe à baila Bangu (e o comércio fechado em dias de jogos), Leopoldina e bairro D. Pedro II como Adoniram Barbosa fez com o Jaçanã, no “Trem das Onze”. Imortalizou grandes craques da época como Domingos da Guia na letra do Bangu e Leônidas da Silva no Bonsucesso. Lamartine colocou em prática todo o repertório autoral na composição desses hinos. Há quem considere a letra/música do América a sua obra-prima. Como também há os que ainda hoje idolatram a letra que homenageia o Canto do Rio. Nela, Babo quase deixou de lado o futebol, criando um híbrido com versos sobre o time e uma carta de amor: “Aquela morena do Canto do Rio, que torce e faz cena e causa arrepio. Queimada da praia, na hora jogo, ela desmaia e pega fogo”. O clube foi apenas um pretexto para versar o sentimento à amada. Os afoitos dirão que, talvez, ela foi uma espécie de precursora da “Garota de Ipanema”, que um dia, em 62, inspirou Vinícius e Tom.
A arte sempre manteve uma relação estreita com o autor. Mesmo sem produzir a perspectiva intelectual de outros nomes da cultura Brasileira, a figura magra e de bigode saliente já foi ouvida na música de Zeca Baleiro e vista no musical de Antunes Filho. Modesto, dias antes de falecer de infarto, ao saber que teria um show em sua homenagem, no Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, disse que sua vida não reunia assunto para um espetáculo de tal envergadura. Mas, para o idealizador do show, Carlos Machado, ele já caminhava ao lado de vanguardistas do cancioneiro popular.
Pegando como fio condutor os problemas de questões autorais já citados, quem quiser garimpar uns minutos mais a vida do “Rei do Carnaval” encontrará também algumas vozes o acusando (sem cerimônia) de plágio em outras duas ocasiões. Uma na letra que criou para o time de coração o América e, outra, na composição feita para o Fluminense.
Na primeira, se baseou na música “Row, Row, Row”, que serviu de trilha para um musical da Broadway, em 1912, chamado Ziegfeld Follies e estrelado por Fred Astaire. Na segunda, utilizou a melodia criada pelo maestro Lírio Panicali, que homenageava a bandeira do Estado de São Paulo. Lamartine apenas reconheceu o ato quando o hino do Flu estourou nos estádios, praticamente o obrigando a solicitar a cessão do verdadeiro autor.
Com certeza, Babo conviveu com esse espinho na carne (que deve ter-lhe causado certas frustrações), mas essa acusação ficou à margem de sua história e o que o marcou na música nacional foram os primeiros predicados citados. E os aficionados por sua obra não guardaram ressentimentos. Para estes — principalmente a massa torcedora dos times cariocas, que o reverencia até hoje, a cada estrofe entoada nas arquibancadas —, seu conjunto autoral não envelhece. A trilha sonora dos estádios leva a sua assinatura, unindo por minutos (sem cinismos) um cenário social multifacetado.
Pegando a ponte aérea, corintiano até a alma que sou, me acostumei a cantar em verso e prosa o segundo e mais popular hino alvinegro “Campeão dos campeões”, brilhantemente criado pelo radialista Lauro D’Avila, em 1953, uma vez que o primeiro data de 1930, cuja letra iniciava com um não instigante “Lutar, lutar”. Entretanto, alguém haverá de me execrar em praça pública, nutro uma preferência (apenas nisso, que fique bem claro) pelo conjunto da obra criada por Lamartine Babo para o Clube de Regatas Flamengo.
Como um Rivellino em seus melhores momentos, dou o drible do “elástico” na minha paixão pelo clube do Parque São Jorge e me delicio com os acordes e refrãos rubro-negros. Na letra, Babo usou sua genialidade para criar conexões inteligentes entre as atribuições do Flamengo, fundado como um clube de regatas, mas que a habilidade no gramado afogou as pretensões marítimas.
As glórias da “terra e mar” figuram nas duas composições, entretanto, Lamartine deixou para trás palavras complexas (denodo), escritas por Paulo Magalhães, e expressões que remetiam à luta pura e simples, e recheou sua criação com a simplicidade de um “ai Jesus”, convocando os torcedores aos estádios sob a mensagem de um time que “vibra” e que o seu lema será “vencer, vencer, vencer”.
LATINOS: LAMARTINE BABO E FUTEBOL, UMA SIMBIOSE, pelo viés de Marco Garcia*
*Jornalista