Já chegou?
Mais uma vez, a voz úmida soando incessante, vez após vez, como uma inocente torneira defeituosa, já chegou, já chegou, já chegou, e agora, estamos chegando. Respiro, digo que não, ainda não, é preciso calma, meu bem, e essa parte ela não sabe, mas é mais pra mim mesma – é preciso calma! Pelo retrovisor, seu corpinho miúdo descansa no banco acolchoado, mas a cabeça vai em pé, resistindo, analisando inquieta todos os vestígios da paisagem, como quem tenta captar um fragmento compreensível entre frases de outros idiomas.
De repente, me vem um amor fumegante e a vontade de informar sutilmente àquela pequena criança desavisada que, seja em que língua for, seremos nós as sempre estrangeiras. Não se engane, não ouse um pertencimento, muito menos caia na tentação de um conforto qualquer, estrangeiras sempre. E ecoar esse berro até que ele corte fundo, já não mais tão sutil, estrangeiras estrangeiras estrangeiras! Se for preciso, também sacudir a criança junto às palavras de guerra e cravar meus olhos de quarenta e quatro anos em seus olhos de cinco até que ela pesque neles o diagnóstico que nos cabe e o guarde resignada até atingir uma velhice ainda tão remota, mas, com alguma esperança, segura. Estrangeiras.
E agora, chegando?
Ao redor, a paisagem vai ficando cada vez menos familiar e, entre árvores e penhascos, começam a surgir pequenas casas, pobres e desorganizadas, algumas delas com galinhas rondando e cachorros bancando os donos da rua. Uma lanchonete de estrada, um carro vendendo abacaxis. Eu sei que em absolutamente nada disso a criança pode encontrar refúgio, nada disso lhe pertence, a nada disso ela quer pertencer, e – se aguarda tão ansiosa o destino da viagem – é pela esperança infundada de encontrar no ponto de chegada o que não aceita perder no de partida. Ainda, continuamente, meu silêncio preenche o carro enquanto mentalmente repito com a dor de todas as mães que não vejo em um raio de sei lá quantos quilômetros enfiadas juntas em mim: meu amor, não se engane, isso não é uma travessia, a ponte não chega ao outro lado, o destino de toda fuga é o percurso contínuo e incansável até que – até. Meu amor, a gente não cabe aqui.
Na margem do asfalto, um homem faz sinal com os braços, como se oferecesse os serviços da lanchonete, do banheiro, do descanso, venha fazer uma pausa e recuperar o fôlego para continuar. Talvez fosse o caso e eu cogitasse a ideia se seu rosto barbado não me lembrasse o dele, e, de repente, toda a cena me retorna feito um sintoma incurável; porta batida, vidro ao chão, cabelos molhados de sangue e gozo, a unha enterrada na carne, a carne esfolada ao nervo, o nervo pulsando vermelho, puta, vadia, quer de novo? se não me obedece, a faca volta, biscate! Pé afogado no acelerador, cento e vinte por hora, seco o suor das mãos e entendo que a faca não vai mesmo embora nunca.
E agora, já chegou?
Não, não chegamos, não vamos chegar, você ainda vai perguntar muitas vezes e eu vou repetir muitas vezes: não, não chegamos, não vamos chegar! Até que se cale e desista e aceite o silêncio e abrace resignada essa paisagem esdrúxula com suas galinhas aleatórias, seus cachorros independentes, seus abacaxis maduros, entre árvores e mais árvores de vida desconhecida, a quilômetros e quilômetros da vida que antes se conheceu, até que se apegue a ela e a tome por tua, tua única vida viável a partir de hoje, encarando-a e aprendendo a ver nela a beleza que só se encontra no inevitável.
No rostinho bochechudo e amedrontado, vejo a espera inútil do momento em que o carro para e se pode, enfim, colocar os pés no chão e reconhecer com os pés o chão e se apropriar com os pés do chão – firmando o olhar, que, por tantas horas, escorreu entre imagens diferentes, em um ponto só, um só quadro, uma paleta de cores, é isso o que temos e, seja muito ou pouco, é isso o que deve ser encaixado em mim. Mas nem isso, nosso carro segue incessante e só eu sei, em meu silêncio autoimposto, que ele vai continuar correndo sabe deus por quantas horas, sabe deus por quantos dias, sabe deus por quantos meses, como uma torneira inocentemente defeituosa, aguardando a chegada milagrosa de um lugar nunca antes previsto ou se rendendo ao fardo de continuar buscando, de continuar correndo, até que se apague nossa resistência estrangeira marcada na carne. Porque, minha pequena criança desavisada, isso não é uma travessia.
E agora?
ISSO NÃO É UMA TRAVESSIA, pelo viés da colaboradora Maíra Ferreira