“Há um projeto de privatização dos espaços públicos. Isso pode ser visto, por exemplo, na retirada dos camelôs da Avenida Rio Branco, nas abordagens policiais em massa que vêm acontecendo nas praças, na perseguição inquisitória à pixação (operação cidade limpa, operação rabisco, nova lei da pixação) enquanto a publicidade invade cada vez mais o nosso espaço, gerando muito mais poluição visual, sonora e material – um exemplo: o “M” do McDonald’s pode ser visto muito mais de longe e por muito mais pessoas do que qualquer símbolo da cidade.” – Lucas Wommer
Santa Maria recebe muitas vezes a alcunha de “cidade cultura”. Os acontecimentos de janeiro, porém, colocaram de maneira mais efetiva no cotidiano o debate sobre a privatização dos espaços de lazer para a juventude. Se nos anos anteriores apenas os “maconheiros, bardeneiros e marginais” mostravam a cara ao ocupar as praças e ruas da cidade, hoje já vemos que essa ideia – aparentemente inovadora, mas na verdade presente há anos na ordem do dia – agrega, a cada ato, mais pessoas interessadas em discutir a situação dos espaços públicos de nossa cidade.
Nesse sentido, o início do mês de setembro trouxe mais uma atividade com o caráter de incentivar a ocupação dos espaços públicos e questionar o porquê da cultura e do lazer estarem cada vez mais vinculados a setores privados da sociedade. O evento “A cidade é nossa”, chamado principalmente pelas redes sociais, ocorreu nos dois primeiros finais de semana do mês. Em sua organização estavam diversos movimentos sociais e coletivos culturais dispostos a discutir a cultura de Santa Maria, como o Gapin (Grupo de Apoio aos Indígenas), o Co-rap (Coletivo de Resistência Artística Periférica) e o Museu Treze de Maio. Eduardo Moreira, estudante de filosofia e membro do grupo Articulação Libertária, comenta que ao surgir a ideia de realizar, de fato, uma intervenção cultural, muitas outras pessoas começaram a se envolver na produção da atividade.
“Analisando o contexto em que a cidade se encontra, com a recente tragédia da boate Kiss, pensamos em utilizar os espaços abertos que a cidade nos disponibiliza. Sem falar que, criar um evento em lugar público faz com que o espaço seja utilizado não apenas culturalmente, mas para lazer, conversas informais, até discussões políticas.” – Eduardo Moreira
E foi assim, recebendo apoios e aproximando pessoas na construção, que as quadras do Parque Itaimbé recepcionaram adultos, jovens e crianças em duas bonitas tardes ensolaradas. Artistas independentes e bandas locais deram o tom da festa que, além de proporcionar a cultura e o lazer, também surgiu para incentivar o debate político existente na ocupação dos espaços públicos. “A espontaneidade com que isso brotou é um sintoma da urgência que todos sentimos de recuperar o que é nosso.”, explica Lucas Wommer, músico e estudante de filosofia que ajudou na construção do evento e também se apresentou na tarde do dia 8 de setembro.
Ao final da segunda edição do evento, ficou visível a apreciação de todas e todos que participaram. As intervenções artísticas no “microfone aberto” questionaram para quem existe cultura na “cidade cultura” e por que o poder público prioriza incentivos a atividades culturais lucrativas, que restringem o acesso de grande parte da população santa-mariense à própria cidade.
Dessa forma, ampliando o contexto da discussão, Eduardo ressalta a participação coletiva das pessoas em questões centrais da cidade: “Usando um espaço público, tu não limita as pessoas de participarem de discussões políticas que diz respeito a todos, contrapondo a política convencional representativa, onde não temos uma participação ativa das pessoas em políticas públicas.”.
Certamente ainda precisamos de muitas atividades que destaquem o sentimento de que a cidade é do povo e a ele cabe o pleno direito de ocupá-la sem a necessidade de pagar por isso. Os debates e manifestações político-culturais vêm apontando cada vez mais para a transformação do modelo consumista e lucrativo de entretenimento que acompanhamos em nosso dia-a-dia. “A cidade é nossa” chamou a atenção para que cultura queremos construir e incentivar, afinal, as expressões artísticas populares estão e sempre estiveram por aí. Devemos ter consciência, entretanto, de que no sistema em que o valor das moedas brilha mais do que as pessoas; a arte, o lazer e a cultura acabam sendo restritos a quem pode pagar por eles. Assim, as manifestações culturais independentes assumem um papel fundamental de resistência e de luta por uma cidade acessível para toda a população.
A CIDADE É NOSSA E A CULTURA TAMBÉM, texto pelo viés de Marina Martinuzzi e fotos de Marina Martinuzzi, Luciele Oliveira* e Kamyla Belli*.
*Estudante de jornalismo na UFSM
**Estudante de publicidade e propaganda na UFSM
marinamartinuzzi@revistaovies.com