“Não… aqui não tem partido não… vocês de partido são oportunistas!”
Esta exclamação é reveladora de uma incompreensão política de primeira ordem. Infantil porque se faz sem maiores explicações, apenas afirma exclamando de forma reducionista algo que é mais complexo. De primeira ordem porque é imediatista e verdadeiramente oportunista dos focos de levantes sociais que se revoltam diante da política. Colocado desta maneira, passemos ao centro da problemática: o vaidoso diante das jornadas populares.
Movidos pelo ativismo mais romântico, e nobre por certo aspecto de crença em transformações rápidas na política, milhares de pessoas saem às ruas para protestarem de forma histórica contra um conjunto de elementos político-sociais.
Parte destes ativistas reivindica-se apartidários e contra o oportunismo político de partidos e suas bandeiras (independente de suas cores). Estufam o peito para dizerem: “Não… aqui não tem partido não!”.
Esse comportamento é perfeitamente entendível diante das decepções que esses ativistas depositavam em partidos políticos, com efeito no PT, considerando a crença de uma possível transformação da sociedade brasileira. Ledo engano, pois não só o PT como a maioria absoluta dos partidos políticos não estão preocupados em realizar grandes transformações sociais em nosso país. É perfeitamente entendível que essa descrença se estenda aos partidos revolucionários, pois as experiências da URSS, Cuba, China, etc. redundaram em ditaduras que reabilitaram a administração do capital depois de terem expropriado a burguesia (caso da Rússia). Ligando-se a isso o fato de os governos capitalistas investirem pesado na produção intelectual para postularem o fim da História e que o capitalismo vencera as bandeiras vermelhas, fica mais nítido o terreno que estamos construindo. É importante levarmos isso em consideração para não reproduzirmos o que vemos nas ruas: o infantilismo político.
Não podemos simplesmente apontar o dedo para a cara de uma pessoa que se coloca como apartidária e taxa-la de fascista, nazista, etc. Seria simplismo demais praticarmos isso. É necessário dialogar no sentido da construção de uma direção forte, unificada, onde a classe trabalhadora seja a maior expressão de suas deliberações.
Entretanto, juntos a essas pessoas apartidárias, encontramos outro tipo de pessoas que devemos apontar sim o dedo em sua direção e com toda a força denunciá-los para o movimento: trata-se do oportunista maniqueísta.
Este sujeito também se apresenta como apartidário, como sendo contra qualquer tipo de partido político. Na verdade, constatamos o contrário, pois este lacaio tem total consciência de que os problemas centrais que assolam a vida dos trabalhadores são outros. Ele sabe que neste momento histórico os partidos ainda são vitais para a transição de outra sociabilidade que rompa com as relações sociais vigentes no capitalismo; sabe que nem todos os partidos são iguais; que os programas são radicalmente diferentes e conhece os partidos revolucionários que existem no Brasil. Por que então esse grupo específico de apartidários age desta forma?
Responder de forma única seria comparar-se a estes lacaios que vergonhosamente se colocam junto aos apartidários. Centrarei em apenas um dos vários motivos que dão vida a essa espécie de comportamento junto às manifestações históricas em nosso tempo presente: a vaidade.
Como alertei nas linhas acima, a vaidade não é o único motivo, mas certamente é um dos motivos na perspectiva daqueles que desejam segurar o pincel diante de Dorian Gray.
A valorização desesperada da própria aparência, tangível ou não, que se alicerça no desejo de ser reconhecida, referendada, desejada e admirada pelos outros é um grande problema diante das recentes manifestações. A vaidade é uma velha conhecida na História que se faz presente de forma especial em nossa sociedade capitalista.
Ovídio em sua obra “Metamorfoses” (séc. VIII) nos apresenta Narciso apaixonado pelo seu reflexo e vitimado com a vaidade após desprezar a ninfa Eco que sofrera desesperada, restando a ela apenas a voz de palavras repetidas de terceiros. Narciso, ao desprezar aqueles que se encantavam com sua beleza, recebe o que dava aos seus admiradores: apaixonar-se por si mesmo e nunca ter o que desejasse. Assim o jovem se definha na margem do lago virgem até a sua morte. Montaigne, em 1580, dedica no livro III da obra Ensaios, especificamente no capítulo 9, referências à vaidade e para isso parte da sua mesmo, nos dando ideia das coisas mundanas. A vaidade fora bem abordada por Oscar Wilde em sua obra “O Retrato de Dorian Gray” onde esta característica se manifesta da forma mais abusiva diante das relações sociais, demonstrando que o vaidoso apresenta plena sintonia com a sociedade capitalista do século XIX, e, diria, se estende à sociedade capitalista atual. É claro que Wilde aborda muito mais do que a vaidade em sua literatura, entretanto é possível observar o peso desse substantivo como central na sociabilidade retratada pelo autor.
A vaidade política se manifesta no campo da individualidade e também no grupo, organizados ou não em partidos ou outras instituições. O vaidoso representa um projeto político egoísta, centrado em si mesmo. Ele se apresenta politicamente como o detentor da sabedoria que as massas desorganizadas não possuem, embora seu discurso seja entoado de forma a não revelar este comportamento. Ele se diz pluralista, acima de qualquer instituição, liso e preparado para ser referência entre os manifestantes. O vaidoso nega a vaidade de forma falaciosa, pois sabe que sua vaidade pode não ser desejada. Assim, continua se apresentando em um malabarismo infinito entre a sua vaidade e táticas personalistas para esconder esse comportamento que nega e afirma ao mesmo tempo.
A vaidade política, como colocamos, se destaca como um desvio grave, capaz de colaborar para a desorganização de classe dos trabalhadores frente as manifestações. A vaidade que diz zelar pelo apartidarismo em uma semana e na outra se arrepende rastejando oportunistamente aos partidos negados acaba por confundir aqueles que caem em sua aparência pintada durante o processo de luta e construção revolucionária. Em uma semana, o vaidoso se coloca a gritar contra os partidos revolucionários; na outra, senta para negociação com os partidos de direita; noutra, volta a cortejar as organizações de esquerda. Esse caos é típico do oportunista vaidoso que se apresenta como liderança em todas as instâncias, pois a confusão é o palco de suas aparições relâmpagos.
O vaidoso adora participar de coletivas para a imprensa burguesa. Não importa que este posicionamento seja reprodutor da mais-valia da grande imprensa, pois o que vale é possuir alguns holofotes, mesmo que seja por alguns instantes. Vale tudo para aparecer, pois o sol não nasce para todos e qualquer feixe de luz deve ser bem aproveitado, assim: “você está gravando?!”
O desfavor que o vaidoso faz é tão grande que se soubesse ficaria envaidecido. Ao conduzir as massas sem um projeto construído no coletivo da classe trabalhadora, estas réplicas de Dorian Gray empurram parte das manifestações para um abismo de derrotismo individualista e retrocesso nas lutas. O retrato pintado não passa de apenas um espelho voltado para a multidão onde apenas se enxerga a si mesmo em um descampado. Essa manifestação vaidosa que o novo Dorian Gray postula se choca com o que há de melhor em parte da tradição marxista.
A tradição marxista que nos referimos aqui é a trotskysta. Para estes a vaidade política é a expressão de parte da mentalidade pequeno burguesa que se encontra entre os trabalhadores nas manifestações de massas. A vaidade se apresenta como algo da mais alta complexidade, maior do que a do próprio Narciso de Ovídio.
A necessidade de organização pela base, ou seja, pelos trabalhadores, é ignorada à medida que o vaidoso não aceita ser colocado em cheque. Debater de forma crítica e fraterna é algo que ele não consegue conviver, pois ele deve ser o grande líder e o grande líder não erra, pois ele é mais preparado e o coletivo deve segui-lo, deve aceitar ser subalternizado pelo novo Dorian Gray. O vaidoso se deleita diante de parte das massas desorganizadas, pois ele, como bom oportunista, se utiliza da moral judaico-cristã para se apresentar como o bom pastor que conduzirá as ovelhas desesperadas.
Isso ajuda a entender porque é que se desespera, agitando em grande estardalhaço, quando entre os manifestantes a vaidade se depara com outros militantes organizados internacionalmente. Sabe-se que o coletivo é que decidirá, que é a base que irá deliberar o que fazer e o que não fazer. O vaidoso se desespera, pois entende que neste momento o seu espetáculo, o seu quadro, não mais dará a linha política, por isso a alternativa (típica dos desesperados e de pouca visão) é o ataque fulminante a parte da vanguarda organizada. O novo Dorian Gray se recontorce, pois sabe que para os trotskistas a estratégia jamais pode estar desvinculada a qualquer tática. Sabe que para os trotskistas há um programa forjado na luta e que seus princípios não serão recuados por conta da vaidade política daqueles que desejam o espetáculo. O vaidoso político sapateia porque sabe que para aqueles que reivindicam o socialismo revolucionário não há espaço para aventuras fenomênicas, pois toda tática deve estar claramente vinculada ao projeto revolucionário! Estes princípios que reivindicam os trotskistas, como parte da tradição marxista, incomodam os vaidosos, pois a classe é o foco e não o individualismo hegemônico do mundo burguês.
Os trotskistas possuem plena consciência de que a revolução que postulam só pode ser realizada, levada a termo, pela classe trabalhadora revolucionária. A vaidade política não possui espaço entre estes revolucionários, pois ao invés de privilegiar as ações individuais o que se postula são as ações da classe trabalhadora revolucionária e para isso buscam construir o trabalho mais duro, sem holofotes e de pouca visibilidade: a contribuição para a organização da classe trabalhadora.
Radicalmente diferente do novo Dorian Gray, pois não se ocupam para colocarem-se como os iluminados, os mais revolucionários, nem como sendo os mais puros e sem erros. Mas se colocam, sim, de modo crítico e revolucionário na organização da classe trabalhadora. Diferente do vaidoso, estes revolucionários muitas vezes abandonam seus projetos de vida mais particulares para dedicarem-se a construção da revolução socialista. E neste processo histórico de avanços e recuos da consciência revolucionária os vaidosos não passarão! Pois o que está em jogo aqui é a construção de um novo ser social e não um arremedo mesquinho de um personagem emblemático da literatura de Wilde.
A ATUALIDADE DE DORIAN GRAY: A VAIDADE POLÍTICA COMO PROBLEMA DIANTE DAS MANIFESTAÇÕES RECENTES, pelo viés do colaborador Jean Paulo Pereira de Menezes*
*Jean Paulo é professor de História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Marília.
Para um texto que utiliza Dorian Gray no título e termos como “o novo Dorian Gray”, dizer apenas que a vaidade do personagem de Wilde o colocava à certa posiçāo social nāo faz jus nenhum ao pomposo nome “A atualidade de Dorian Gray”. O texto em si nāo questiona a atualidade de Dorian Gray em momento algum, apenas utiliza-se do termo como armadura intelectual para tentar forjar um invólucro em um texto que nāo vai além de uma rasa mençāo à obra-prima de Wilde.