A violência não é uma novidade para quem sobrevive às margens daqueles direitos considerados básicos para uma vida digna: a realidade de parte considerável dos povos indígenas no Rio Grande do Sul e no Brasil inteiro é a de comunidades que permanecem acampadas sob lonas, à beira de rodovias, muitas vezes sem água, sem luz, sem acesso a serviço de saúde e educação.
Por isso, para muitos, a violência brutal utilizada pela Tropa de Choque da Brigada Militar em frente ao Palácio Piratini para reprimir indígenas, quilombolas e apoiadores na sexta-feira (30) não foi mais do que a evidência crua de uma política sistemática de invisibilidade e esquecimento.
No início de junho, foram recebidas pelo governador Tarso Genro representações indígenas guarani e kaingang e quilombolas que buscavam efetivar, na prática, o direito às terras tradicionais que a Constituição de 1988 lhes garante no papel. Palavras foram ditas, prazos e medidas foram acordados e soluções para os conflitos que se acirram por todo o estado foram apontadas. Entre os dias 13 e 15 de junho, um cronograma de ação foi elaborado.
Três meses depois, com os prazos iniciais prorrogados por um mês e, novamente, vencidos sem nenhuma providência prática, lideranças indígenas e membros de comunidades quilombolas, juntamente com camponeses do assentamento Madre Terra, em São Gabriel, retornaram à capital do RS, em vigília, para exigir do governo estadual um posicionamento efetivo e formal.
Um acampamento foi erguido na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, na quinta-feira, dia 29. No dia seguinte, pela tarde, seria realizada a Assembleia dos Povos, espaço de discussão organizado por indígenas, quilombolas, assentados, movimentos e entidades de apoio, identificados pela aliança na luta contra o latifúndio e na defesa dos direitos dos povos originários.
A pressão de indígenas e quilombolas ocorre em meio a um contexto de ataques contra seus direitos em âmbito nacional, com a suspensão das demarcações em mais estados e projetos de lei e de emendas, como a PEC 215/2000 e a PL 227/2012, que visam a impedir na prática a realização de qualquer demarcação e, inclusive, rever as que já foram realizadas. A PEC 215, por exemplo, pretende passar do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de aprovar as demarcações, o qual é dominado por representantes do latifúndio.
No contexto local, conflitos têm se acirrado em diversas regiões do estado e surgem denúncias de práticas coercitivas de integrantes do governo, com o fim de intimidar e forçar os indígenas a aceitarem terras compradas pelo estado no lugar dos territórios que reivindicam e identificam como tradicionais. Em uma moção dos povos indígenas do RS elaborada no 7º Fórum do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) e publicada algumas semanas atrás, os indígenas afirmam que “esta política protege o agronegócio, desvia o foco do real problema agrário do Estado e fere nossos direitos constitucionais”.
Na manhã da sexta-feira, em meio ao dia nacional de lutas organizado por centrais sindicais, enquanto o governador Tarso Genro participava da cerimônia de abertura da Expointer, exposição voltada ao agronegócio, movimentos social e sindical encontravam-se e solidarizavam-se à frente do Piratini. Estudantes, sindicalistas e professores grevistas da rede estadual, que lutam pelo pagamento do piso pelo governo do estado, dividiram espaço com indígenas e quilombolas em um caminhão de som.
No dia anterior, quilombolas e lideranças de quase 30 comunidades indígenas guarani e kaingang que aguardam a demarcação de suas terras no RS haviam entregado um documento dirigido ao governo Tarso, solicitando um posicionamento oficial do governo do estado em relação às demarcações e aos compromissos assumidos anteriormente pelo governador.
Em junho, havia ficado acertada a garantia de segurança aos grupos de trabalho responsáveis por prosseguir com as demarcações interrompidas e a incumbência de buscar, junto à União, os recursos necessários para a indenização dos agricultores cujos títulos assentassem sobre terras reconhecidamente indígenas. Até o final de agosto, entretanto, nada disso havia sido feito.
Sobre o caminhão, no final da manhã de sexta, o cacique Abílio, da aldeia kaingang de Borboleta, em uma fala premonitória, sintetizou o sentimento de muitos indígenas, professores e assentados descontentes com a política do governo petista: “Nós acreditamos na estrela, e a estrela se transformou em uma bomba que caiu sobre os movimentos sociais”.
Essas bombas, no sentido literal, não tardaram a chegar. Pela tarde, quando iniciava-se a Assembleia dos Povos, o líder kaingang Luís Salvador, de Rio dos Índios, afirmou que os prazos haviam acabado e que os indígenas queriam uma resposta do governador. Largou o microfone, passou pela roda em que seus companheiros dançavam e entoavam cânticos e pulou o gradil que isolava o Palácio.
Largou sua borduna e, de mãos erguidas, dirigiu-se à fileira de capacetes laranjas do Batalhão de Choque da BM, que guardavam o Piratini desde cedo. Ao mesmo tempo, alguns indígenas forçaram as grades de isolamento e duas delas caíram no chão. Não houve agressão por parte dos indígenas e nenhuma tentativa de ocupação à força, embora os ânimos estivessem exaltados. A violência foi iniciativa exclusiva da Brigada Militar, ainda que, em depoimentos à mídia tradicional, responsáveis pela corporação tenham afirmado o oposto.
O que se viu nos minutos seguintes foi um cenário desolador: a Tropa de Choque iniciou o bombardeio, com bombas de efeito moral, gás lacrimogênio e balas de borracha. Indígenas e manifestantes reagiram, com lanças, pedras e flechas. Crianças, homens, mulheres e idosos sofreram com os efeitos do gás. Alguns foram atingidos, e outros tiveram que ser levados ao hospital com problemas respiratórios, pois as bombas não pouparam sequer as lonas do acampamento erguido na Praça, sob as quais descansavam algumas crianças.
Além do tratamento desumano contra grupos sociais que vivem à margem de direitos básicos e lutam para preservar sua existência e sua cultura, a situação foi ainda mais grave pelo fato de o ataque policial ter atingido indistintamente crianças e idosos. Marcelino, líder guarani idoso, passou mal com o gás e teve que ser hospitalizado. Um quilombola centenário do Quilombo de Morro Alto também passou mal com o gás, e pelo menos uma menina e um adolescente de 15 anos foram alvejados por balas de borracha.
Após o confronto, o chefe da Casa Civil, Carlos Pestana, e o chefe de gabinete do governador, Ricardo Zamora, receberam representantes indígenas e quilombolas do lado de fora do Palácio. Com a garantia de uma reunião do governo estadual com representações indígenas e quilombolas, com a presença do Incra, da Funai e do Ministério Público a ser realizada na quarta-feira, dia 04 de setembro, o acampamento foi levantado ao anoitecer.
Na segunda-feira pela tarde, uma nova denúncia de práticas de intimidação evidencia a tensão e o tratamento dispensado aos povos originários: segundo relato do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN), o cacique Valdomiro, da aldeia kaingang de Morro do Osso, foi interrogado por policias da Brigada Militar que chegaram à comunidade sem aviso prévio e com a finalidade de prestar “retratações” pela ação truculenta de sexta-feira. Ainda conforme o relato, o cacique respondeu que as retratações devem ser públicas e negou-se a responder questionamentos sobre lideranças e apoiadores dos indígenas.
Quilombolas e indígenas aguardam a resolução para as situações que já se desenrolaram em conflitos armados e ameaças em mais de uma localidade, e esperam obter nesta quarta-feira um posicionamento claro do governo estadual sobre as demarcações e as indenizações de pequenos agricultores assentados pelo Estado sobre terras indígenas.
Em todo o país, uma voz cheia de energia e disposição, ancestral e calejada, levanta-se sem medo de enunciar algo que já perpassa a noção de muitos brasileiros e brasileiras: o “celeiro do mundo”, essa imagem que festeja um Brasil grandioso e produtivo baseado na concentração fundiária, na exportação de commodities e na financeirização da terra, não tem ajudado a resolver de fato os problemas da grande maioria da população e, além disso, só tem amarrado mais forte os laços da dominação de uma minoria – que, sobrerrepresentada, só é maioria no Congresso Nacional, sob a alcunha de Bancada Ruralista.
A disposição para lutar pela terra onde seus ancestrais “enterraram o umbigo” permanece forte entre os povos indígenas. O cacique Valdomiro, ao afirmar que os indígenas não desistiram de lutar pelo que consideram seu mesmo depois de séculos de extermínio e exploração, descreve o estado de espírito daqueles que tentam reaver, por meio da terra, seu modo de vida e sua identidade: “O índio não tem medo de morrer. O índio tem medo de ser esquecido”.
Videorreportagem feita pelo Coletivo Catarse sobre o acampamento e a repressão policial contra indígenas e quilombolas.
“A ESTRELA SE TRANSFORMOU EM UMA BOMBA QUE CAIU SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS”, pelo viés de Tiago Miotto