Você caminha no meio do black bloc e vê de tudo. Tem gente que se define anarquista, socialista, anticapitalista, autonomista, anarcocomunista, anarcoinsurrecional… longo etcétera. Tem também quem diga: “Eu? eu sou favela”. Ou “Eu sou Amarilda”, partilhando a indignação pelo sumiço de tantos Amarildos e Amarildas nas mãos do estado. Ou ainda, eu já ouvi, “Eu sou ninguém”. Estão unidos menos por uma causa ou bandeira do que por uma ética. Uma ética que também é uma estética. A revolução, já dizia Gláuber, é uma eztetyka.
É a ética da recusa radical: vou pra rua pra protestar e enfrento quem quer que tente me impedir. Finco pé e mando às favas. Protestar não funciona sem incômodo, sem transtorno, sem repor o inconveniente diluído no cotidiano em um ato direto, um propósito inequívoco. Sem transtorno você não prova sequer a sua existência.
Quem vê o black bloc passando sabe que eles não vão embora pra casa sem alguma intervenção. Dá pra sentir isso, essa iminência, especialmente quando começam os gritos de “sem violência”. Sente a excitação ventando de rosto em rosto, uma comunicação silenciosa à moda das formigas. Eles afirmam uma abundância, uma velocidade. Vão arrastando, pelo transe, pras ações precariamente planejadas. É outra experiência de cidade, correndo e bloqueando vias, dispersando e reagrupando, fugindo, mas fugindo com um sorriso no rosto. Uma experiência que parecia definitivamente enterrada pelo trânsito e seu magma sonoro, o grande protagonista do espaço urbano.
A grande imprensa, seus intelectuais orgânicos e sobretudo os partidos políticos só conseguem ver um bando de malucos quebrando tudo, sem nenhum objetivo senão uma autoafirmação irresponsável. Ou são “políticos” demais, porque manipulados por ideologias e grupelhos anacrônicos. Ou são despolitizados demais, porque sem liderança, voluntaristas e desprogramados. Insistem despudoradamente, sabe-se lá por qual pesquisa-relâmpago, que não passa de minoria sem respaldo da população. Tascam uma ou outra entrevista sob medida no noticiário, uma ou outra fala de especialista, para frisar: “manifestação sim, vandalismo não”. Não olham e quando olham não vêem. Se vêem, não enxergam. Em todo caso não entendem. Ou melhor: entendem que algo de visceralmente novo no Brasil está surgindo que eles não entendem, e isso dá medo.
O protesto é expressão de condições econômicas e sociais. O novo Brasil com chances pra todos propiciou à maioria da população o que ela não tinha: um futuro. Pensar um futuro. Os pobres conquistaram uma passagem para o futuro, em vez de existirem “presos” ao presente. Puderam livrar-se da lei da sobrevivência, que impunha a necessidade do aqui-agora. Agora, podem estudar, ter carreira, planejar as férias, projetar os filhos. Contudo, na medida em que o sucesso se torna acessível, o fracasso também vem a reboque. Na nova realidade brasileira, preciso fazer mil e uma coisas, me qualificar permanentemente, me produzir empreendedor, criativo, sustentável, para alcançar o cobiçado sucesso. E se não me esforçar e conseguir… terei fracassado. O acesso ao futuro me lança no jogo da vida entre o sucesso e o fracasso. O novo Brasil nasce com uma montanha de cobranças, expectativas e exigências de adaptação. Quanto medo do fracasso, da vergonha, quanta culpa acumulada! Esse o fardo da “nova classe média” ou “Classe C”, conclamada a participar do moinho satânico do mercado atual, de trabalho ou consumo.
No Brasil ascendente de hoje, ser bem sucedido é uma obrigação. Toda a publicidade das empresas, a psicologia motivacional, a pressão familiar e os slogans dos governos tentam te convencer disso. No Brasil desenvolvido, você já nasce devendo o sucesso, já brota sem direitos que não o de pagar por eles. Se está no ônibus atritando e disputando centímetros com a carne alheia, a culpa é sua, por não ter sido bem sucedido em comprar o conforto de um carro. Se o filho está na escola pública sem aulas, você deveria ter sido bem sucedido o suficiente para poder pagar a particular. Se está na fila do hospital com um familiar, humilhado e esperando o atendimento que nunca chega, a culpa é sua por não conseguir bancar um plano de saúde. A responsabilidade é sempre sua, nunca do sistema de transportes, da educação, da saúde. Somos concitados a um empenho individual hercúleo para pagar carro, plano de saúde e escola particular. Imagine se esses empenhos individuais, em geral inglórios, fossem reunidos num esforço coletivo para abrir as caixas pretas dos sistemas de transportes, hospitais e escolas públicos?
Eis as manifestações, o descarrego multitudinário das culpas. Uma revolta contra o “sucesso” de uma sociedade, contra um projeto civilizatório de mentes e afetos.
Quando o Black bloc ataca os símbolos do poder, não está fazendo mais do que contestando uma ordem social que naturalizou a violência. A ponto de disfarçar-se de sucesso, desenvolvimento, pacificação, com a maior boa consciência de telejornal. Mas a baderna nunca deixou de ser um dos preços da democracia, e um dos menores. Thomas Jefferson, que não era nenhum anarquista, escreveu que não poderá haver regeneração das instituições democráticas “sem uma rebeliãozinha de vez em quando”. Que conquistas de direitos, afinal, se deram historicamente na base do consenso? Essa “violência” atribuída às manifestações é minúscula, desprezível, se comparada não somente com os sumiços e homicídios praticados pelas polícias e milícias contra a juventude negra e pobre, como também ao colossal acúmulo de violência impregnado no sistema de saúde, transporte e educação.
Não fosse o interesse da grande mídia no abafamento de uma revolta que lhe ameaça os anéis e os dedos, certamente as coberturas teriam outras prioridades e preocupações. A pergunta certa não é porque se indignam com tanta ênfase. Mas, sim, como não se indignariam, quando sequer o básico é garantido, enquanto a cidade se transforma num playground exclusivo de rico? Como não se indignar o tempo todo? Quando violentam camelôs, sem tetos, estudantes, favelados e manifestantes, para que um punhado de rostos soberbos possa brindar ao triunfo da vontade modernizadora e suas grandes obras?
O black bloc transfigura a violência de classe, naturalizada e generalizada, na figura de um amor brutal. Não é tanto guiado pelo ódio… bem menos do que se pensa. Horda odiosa você vê na repressão indiscriminada, em prazer sádico, por que o que move o protesto é o amor. Um amor que usa preto e calça botas, nada complacente. É um amor pela rua, a rua à espreita no interior da gente, o nosso próprio primitivismo. Afeta a gente ali, no limiar subdesenvolvido onde perdemos a “naturalidade” dos gestos, das muitas pequenas resignações ao cotidiano, das tantas culpas. É no limiar de onde saímos que nem um “bando de malucos” pela cidade, uma matilha querendo outra coisa e muito. É o limiar onde o medo se converte em determinação, a culpa em sentimento de poder e ação coletiva. Determinados a existir, a existir, além da situação de isolamento controlado, com que a nova sociedade pretende, com seu imaginário e seus remédios, modular a vida e o trabalho.
A eztetyka da revolução não é bonitinha e é bom que não seja. Não esperem marchas anódinas de 200 cupinchas com bandeiras vermelhas. Não aguardem procissões corporativistas comandadas por carros-de-som pedindo salário. Nem pessoas distribuindo flores em nome da redenção pela paz.
Por muito tempo, as elites brasileiras exploraram a cultura dos pobres repondo no lugar de sua alegria e vitalidade usurpadas o signo do horror. Só assim puderam reconhecer a força dessa cultura, demonizando-a. Hoje, novamente, o horror e o escândalo servem às caricaturas decadentes atrás da alta sociedade de sucesso, enquanto os “horríveis” vestem máscara. Não são mais anônimos. Amarildo finalmente tem um nome, e vive.
OS HORRÍVEIS VESTEM MÁSCARA, pelo viés de Bruno Cava*
*Bruno é autor do site Quadrado dos Loucos.