TARIFA ZERO E PEC 90: TRANSPORTE PÚBLICO COMO DIREITO

No dia 6 de junho, quando a primeira manifestação pela redução da tarifa do transporte público ocorreu em São Paulo, não se imaginava a avalanche de manifestações que tomariam todo o Brasil entre junho e julho de 2013. A questão ali era basicamente o debate do transporte público em duas pautas: por um lado, a imediata redução da tarifa de R$3,20 para R$3,00, barrando o aumento anunciado dias antes pelo prefeito petista Fernando Haddad; por outro, o debate com relação à tarifa zero nos transportes públicos.

Após o dia 6, os protestos se sucederam, cada vez maiores, nos dias 7, 11, 13 e 17 de junho, dia este em que as manifestações já se espalhavam por todo o país. Entre as faixas e cantos, muitos lembravam os movimentos vitoriosos em outras cidades como Porto Alegre e Goiânia, onde os aumentos tarifários já haviam sido barrados pela pressão popular.

Em todos esses movimentos, desde aqueles que ocorreram antes dos protestos no eixo Rio-São Paulo como em Goiânia, Natal e Porto Alegre, até aqueles que se seguiram espalhados por todo o país, o transporte público e o debate que o envolve eram pauta central de um movimento que, paulatinamente, ganhou heterogeneidade nas demandas. E, junto com a pauta, um movimento ganhou notoriedade nacional, o Movimento Passe Livre (MPL). Apontado pela grande mídia primeiramente como um vilão que parava o trânsito, e, num segundo momento, como o aglutinador da população em um movimento nacional “civilizado e ordeiro”, o Movimento permaneceu como peça chave para entender duas questões centrais no país hoje: o transporte público como direito e a tarifa zero como a realização plena deste.

O MPL consolidou-se em janeiro de 2005, durante a Plenária Nacional pelo Passe Livre, realizada em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, onde foi definido o seu caráter: horizontal, apartidário e autônomo.  Seus princípios e suas bandeiras vinham de uma construção e debate já presente em protestos ocorridos nos anos anteriores e que se tornaram nacionalmente conhecidos – como a Revolta do Buzu, que ocorreu em Salvador em 2003, na primeira Revolta da Catraca, em Florianópolis em 2004. Em 2005, já organizado como MPL, o movimento participou ativamente da segunda Revolta da Catraca na capital catarinense.

Aos poucos o Movimento foi crescendo e ganhando relevância em protestos pelo transporte público em outras cidades brasileiras. Em São Paulo, participou ativamente das campanhas contra o aumento de 2006, 2010 e 2011, ano em que começou uma coleta de assinaturas para apresentação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Tarifa Zero. A proposta, que precisa de 500 mil assinaturas para ser levada à Câmara, defende a gratuidade do transporte público através da criação de um Fundo dos Transportes, alimentado por repasse de valores arrecadados por meio de impostos de forma progressiva. Além disso, o projeto pretende instituir o Conselho Municipal de Transportes, que teria representantes da Secretaria Municipal de Transportes (SMT) e da sociedade civil, que ficariam responsáveis por fazer a gestão do sistema.

Mas a campanha pela Tarifa Zero não surgiu com o Movimento Passe Livre. Em 1990, Lúcio Gregori, então Secretário de Transportes da cidade de São Paulo, havia apresentado à prefeita Luiza Erundina um projeto que permitira que, em uma das maiores cidades do mundo, os ônibus pudessem circular sem catraca, ou seja, sem que os usuários precisassem desembolsar um centavo para locomoverem-se pela cidade.

Mas como esse projeto seria possível? Não seria a Tarifa Zero uma pauta totalmente utópica?

Foto: Everson Klein
Foto: Everson Klein

O que é a Tarifa Zero?

Um estudo realizado em 1986 apontou que a população paulistana gastava em torno de 22% do seu salário com o transporte. Percebendo o quanto tal montante era absurdo e o quanto afetava o direito de ir e vir da população, Lúcio Gregori criou, a partir das várias experiências existentes no exterior, o projeto de Tarifa Zero, garantindo a gratuidade para todos que utilizassem o transporte público.

A proposta foi apresentada pela prefeita petista Luiza Erundina aos vereadores da Câmara Municipal no dia 1º de outubro de 1990, onde o projeto acabaria enterrado, visto que não era unanimidade nem mesmo dentro da própria bancada do PT, que alegava que o projeto não havia sido discutido internamente. Mas não só de dentro da Câmara vieram as reações contrárias. Grupos de empresários do transporte, construção civil e do comércio começaram a fazer forte lobby contra o projeto, assim como movimentos surgidos nos bairros nobres da cidade, como Higienópolis e Cidade Jardim. Mas por que esses pequenos grupos posicionaram-se contra o projeto de Tarifa Zero, que, segundo pesquisa do Instituto Toledo e Associados em dezembro de 1990, chegou a alcançar 76% de apoio popular? A resposta para essa pergunta está em outra pergunta: de onde sairia o dinheiro para bancar o transporte público gratuito?

Havia apenas duas maneiras possíveis de custear um projeto tão ambicioso: reduzir o investimento em outras áreas, como educação, saúde e infraestrutura – algo que o atual prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o atual governador do estado, Geraldo Alckmin (PSDB), ameaçaram fazer, em relação aos R$ 0,20 da tarifa que caíram após as grandes manifestações desse ano – ou então realizando uma reforma tributária. Como, desde a Constituição de 1988, cabe apenas ao âmbito da política federal criar novas taxas – como os impostos que revertem verba para a educação pública, saúde, saneamento básico etc. – e o processo para a criação de novos impostos costuma demorar muitos anos devido à burocracia da aprovação de qualquer projeto na Câmara de Deputados e no Senado, o meio viável seria fazer uma reforma tributária a nível municipal. Quer dizer: mexer no IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano), o imposto do qual se pretendia tirar a verba para o custeamento da Tarifa Zero.

Para aumentar a arrecadação do IPTU, o projeto pretendia aumentar a arrecadação por parte da população mais rica da cidade, justamente a parcela que se manifestou contra a Tarifa Zero. O lema da reforma tributária que a prefeita Erundina pretendia implantar era: “Paga mais quem tem mais, paga menos quem tem menos, não paga quem não tem”, isso é: aumentar os impostos para os mais ricos e diminuir para os mais pobres.

“Tarifa zero é igual à reforma tributária. No Brasil há uma coisa muito estranha. Paga mais impostos quem ganha menos. Quem ganha até dois salários mínimos no Brasil paga cerca de 50% do que ganha sobre impostos. Quem ganha 30 salários paga apenas 26%.”, declarou Lúcio Gregori em entrevista ao Jornal da Gazeta. A grande questão que arrepiava os industriais e os grandes empresários era, portanto, o debate sobre o imposto progressivo, em que quanto mais ricos se é mais se paga. A tarifa zero representava uma efetiva forma de distribuição de renda na cidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que resultaria em um transporte público de melhor qualidade, gratuito e mais abundante, para combater a cultura do carro.

Segundo Gregori, a reforma tributária seria necessária para implantar a Tarifa Zero em São Paulo, mas em cidades ricas ela não seria necessária, pois a prefeitura poderia subsidiá-la completamente, como é o caso das cidades de Agudos (SP), onde há dez anos o transporte público é totalmente gratuito para o usuário, Porto Real (RJ) e Ivaiporã (PR).

Segundo Gregori, em entrevista para a UnBTV, em cidades grandes a política da tarifa zero poderia ser implantada paulatinamente, garantindo a gratuidade primeiro nos grandes corredores de ônibus, por exemplo. Tal experiência comprovaria que, além de ser um avanço no direito de ir e vir do cidadão, o comércio local seria beneficiado, visto que o usuário destinaria para ele o dinheiro economizado em transporte.

Em 1990, após o projeto da Tarifa Zero ser derrotado na Câmara, a prefeita Luiza Erundina e Lúcio Gregori voltaram-se para outro projeto menos ambicioso, mas também com potencial de melhorar as condições da mobilidade urbana na cidade de São Paulo: a municipalização do transporte.

Diferente da estatização, em que o município precisaria comprar toda uma frota – no caso de São Paulo, por exemplo, seria necessário que o município comprasse mais de 13 mil ônibus – a municipalização funciona da mesma forma que o fretamento: o município negocia com os empresários um valor fixo para o funcionamento dos ônibus, com motorista, cobrador, limpeza etc. Com isso o poder público fica com a arrecadação das passagens e tem total comando sobre as linhas, evitando assim um dos maiores problemas gerados pelo modelo de concessão, adotado atualmente na maioria das cidades: que os empresários concentrem suas frotas apenas nas linhas mais lucrativas, deixando outras – principalmente as de periferia – com frota insuficiente. Isso obviamente geraria prejuízos para a prefeitura, porém garantiria um melhor atendimento à população que mais necessita do transporte público. O projeto da municipalização, implantado no governo da então petista Luiza Erundina, foi abandonado na gestão da também petista Marta Suplicy, que foi prefeita de 2001 a 2005. Hoje a pauta da volta da municipalização do transporte público é uma das principais bandeiras do Movimento Passe Livre de São Paulo.

Há vários anos Lúcio Gregori tem ajudado o MPL em todo o país a afinar melhor o seu discurso e a lutar pelas suas pautas. Uma das grandes controvérsias colocadas pelo movimento após a derrubada do aumento dos R$ 0,20 é que, embora seja uma vitória, visto que os usuários saíram ganhando, o lucro dos grandes empresários não diminuiu. O modelo adotado, da desoneração de impostos, retira de outras áreas importantes para o Estado, como a Seguridade e Previdência Social, mas em nada afeta o grande capital. Para evitar isso, defende Gregori, “seria muito mais sensato aumentar as receitas do Estado por meio de uma reforma justa”, fazendo assim que os setores que lucram sobre a força de trabalho dos que usam o transporte público banquem por ele. Por isso até hoje tanto Erundina quanto Gregori repetem continuamente o mote da reforma tributária que defenderam no início dos anos noventa: “Paga mais quem tem mais, paga menos quem tem menos e não paga quem não tem”.

A PEC 90/11

No dia 25 de junho, após o início das grandes manifestações que tomaram o país, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara de Deputados a Proposta de Emenda à Constituição nº 90/11 (PEC 90/11), de autoria de Luíza Erundina, hoje deputada federal pelo PSC-SP.

A PEC 90, que passou praticamente despercebida pela grande mídia, propõe que o transporte público seja acrescentado no rol dos direitos sociais – aqueles que têm por finalidade garantir que a população tenha acesso aos serviços que garantam uma mínima qualidade de vida – definidos no Artigo 6º da Constituição Brasileira. Atualmente são considerados direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, alimentação e a proteção à maternidade, à infância e aos desamparados.

Mas o que significaria elevar o transporte público a um direito social? Segundo Erundina, em seu discurso ao CCJC em defesa da proposta, “Já existe toda uma compreensão e uma cultura de que esses direitos devem ser prioritários na definição das prioridades orçamentárias e, portanto, o transporte terá que ser entendido, ser tratado e ter políticas públicas que não fiquem a mercê de conjunturas e desse ou daquele governo”.

O transporte público é um serviço meio, ou seja, é fundamental para o acesso a outros direitos, como trabalho, saúde e educação. Segundo estatísticas da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), tendo como base estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2010, mais de 37 milhões de brasileiros (quase 20% do total da população), não tem como pagar a tarifa do transporte público regularmente e, com isso, têm seu acesso a serviços básicos afetados.

Ao ser considerado também um direito, o Estado e os Governos seriam obrigados a tratar o serviço público como tal e criar políticas públicas para solucionar seus problemas. Segundo a avaliação de Lúcio Gregori, a aprovação da PEC 90, juntamente com a continuidade da pressão popular, daria um impulso ao projeto da Tarifa Zero Brasil afora.

A PEC 90/11 ainda tem um longo caminho a percorrer até ser totalmente aprovado. Após passar pelo CCJC, ela deverá ser analisada por uma comissão especial e seguirá para votação em dois turnos no plenário da Câmara. Se aprovada, seguirá para o Senado, onde passará por mais duas votações. A PEC 90 seria apenas o primeiro passo para que o transporte público seja visto como realmente é, um direto de todos os cidadãos, mas mesmo assim um passo importantíssimo. Cabe a nós, a população, acompanhar e apoiar a Proposta e fazer com que nas próximas manifestações a pauta de um transporte público de qualidade e acessível a todos volte ao protagonismo da luta. 

TARIFA ZERO E PEC 90: TRANSPORTE PÚBLICO COMO DIREITO, pelo viés de Felipe Severo

*Colaborou: João Victor Moura

felipesevero@revistaovies.com

joaovictormoura@revistaovies.com

2 comentários em “TARIFA ZERO E PEC 90: TRANSPORTE PÚBLICO COMO DIREITO

  1. e se a tarifa caisse para um valor menor , ainda haveria pressao pelo passe livre como ha hoje ?

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