Ei, polícia, maconha é uma delícia!
A criatividade dos cantos e a diversidade de cores e cartazes foram, talvez, uma das características mais marcantes da segunda edição da Marcha da Maconha de Santa Maria, que ocorreu na tarde do último sábado, dia 25. Com o intuito de colocar em evidência as contradições de uma política de drogas baseada na proibição, na repressão e na violência que delas advém, a Marcha da Maconha é organizada em Santa Maria por um Coletivo oriundo da primeira edição da Marcha realizada na cidade, no ano passado.
Em 2013, a segunda edição da Marcha da Maconha de Santa Maria ocorre em sincronia com as marchas de pelo menos outras 40 cidades em todo o país, as quais ocorreram ou ainda devem ocorrer ao longo dos meses de abril, maio, junho e julho. No final de semana dos dias 25 e 26 de maio, por exemplo, a Marcha da Maconha ocorreu também em Juiz de Fora (MG), Nova Iguaçu (RJ), Porto Alegre (RS), Vitória (ES), Salvador (BA), Curitiba (PR), Fortaleza (PE), Foz do Iguaçu (PR), Blumenau (SC) e São Gonçalo (RJ).
Ei, maconha, polícia é uma vergonha!
Numa tarde de sábado ensolarada, depois e apesar de uma semana cinzenta, cheia de chuviscos e cerração, a atividade começou com uma concentração na concha acústica do parque Itaimbé. Com o sol ainda alto, cartazes e faixas eram pintados, enquanto cantos eram elaborados ou relembrados e os tambores esquentavam. Mais e mais pessoas reuniam-se nos degraus do semicírculo, à espera da hora de saída.
Próximo ao palco, os materiais já confeccionados iam se acumulando numa coleção de cartazes. Do lado de fora da concha, uma banca improvisada angariava fundos para o Coletivo da Marcha da Maconha: com o fim de financiar futuras atividades ao longo do ano, a exemplo de alguns debates, saraus e discussões realizados em 2013, e já pensando na construção da próxima Marcha, o coletivo vendia camisetas e lenços com o logotipo da atividade e quadros de motivos canábicos.
Usuário, saia do armário!
Embora cada grupo que constrói a Marcha da Maconha nacionalmente seja autônomo, o fato de que a atividade tem se estendido e se ampliado demonstra a insatisfação com a forma como a questão das drogas, e em especial a maconha – só uma plantinha, como dizia um cântico entoado em diversos momentos da marcha – é tratada no Brasil. Discute-se o direito de fumar maconha, mas não só: discute-se também todas as implicações sociais da criminalização dos usuários, com a estigmatização de grupos sociais marginalizados e a repressão à juventude pobre e especialmente negra, a mesma que, sem alternativas mais atraentes, acaba sendo a mão-de-obra preferencial a ingressar no sistema do tráfico.
Por tudo isso, o chamado do cartaz que convidava à segunda edição da Marcha da Maconha era, sobretudo, um chamado à autoafirmação: reconhecer-se como usuário de maconha, e reconhecer em si a dignidade de ser – por que não? – maconheiro. Também por isso, ao canto “Ei, polícia, maconha é uma delícia!”, logo outro remendava: “Ei, maconha, polícia é uma vergonha!”.
Ei, vizinha, é só uma plantinha!
A Marcha saiu da concha acústica em torno das quatro e meia da tarde, percorreu o parque Itaimbé e subiu pela rua Venâncio Aires rumo ao centro da cidade, onde seguiu pela Avenida Rio Branco, pelo calçadão e redondezas. No caminho, eram diversas as reações do público pego de surpresa pela manifestação. Impossível deixar de notar, contudo, que o bom humor e a energia da marcha fez diversos sorrisos delinearem-se no rosto de pessoas que passaram, ou foram passadas, por ela. Algumas, inclusive, somaram-se ao contingente de aproximadamente 400 pessoas que ocupavam as ruas, e seguiram a cantar, gritar, pular e marchar.
Se a criatividade dos cantos provocava risos, os cartazes em geral propunham reflexão sobre os diversos aspectos que a mobilização abordava. A relevância, em um mundo cada vez mais doente, de ressignificar a palavra droga – quem ainda lembra que as farmácias chamavam-se drogarias? – estava expressa, por exemplo, em um uma faixa de tecido verde que trazia diversas caixas de remédio coladas e, abaixo, a frase: “Se fodeu! Diz que eu sou maconheiro, mas usa mais droga que eu”.
Outro cartaz, com uma planta desenhada e carregada das famosas folhas verdes de cinco pontas e os dizeres “Legalize o auto-cultivo”, sintetizava uma das maiores contradições da proibição e uma pauta que unifica a Marcha da Maconha em todo o país: a reivindicação do direito ao cultivo da própria planta de maconha. As propriedades terapêuticas da erva, de conhecimento tão antigo quanto a própria planta, também foram enfatizadas em alguns dos cartazes, assim como o caráter de cunho étnico e social que a repressão assume em nosso país.
Nem puta, nem freira, eu sou é maconheira!
Embora a Marcha da Maconha de Santa Maria não tivesse um bloco feminista propriamente dito, a exemplo das “Marias e Joanas” da Marcha da Maconha de São Paulo, a questão de gênero também foi enfatizada pelo movimento. A proximidade entre os integrantes, participantes e organizadores da Marcha da Maconha e da Marcha das Vadias – cuja segunda edição em Santa Maria ainda está para ocorrer, neste ano – proporciona a transversalidade dos debates, a ponto do grito feminista – e feminino – ser um dos que se destacava dentre os cânticos que ressoavam entre prédios, carros e praças.
Gabriela Quartiero, estudante de Psicologia e uma das organizadoras da Marcha da Maconha, aponta que, se há opressão e violência contra os usuários de maconha em geral, isso é ainda mais acentuado no caso das mulheres usuárias. Assim, ambas as Marchas convergem quando se trata de lutar contra o machismo ou o estigma, diferentes formas de opressão que têm na violência sua dimensão mais concreta, e defender a autonomia das pessoas sobre o próprio corpo.
Ai, que zica, me bateu uma larica!
Ao fim do trajeto, a Marcha da Maconha retornou ao local de saída, a Concha Acústica do parque Itaimbé, para nela encerrar a atividade com diversas apresentações musicais. O rock canábico da banda Sons of Hemp foi seguido pelo rap dos grupos Nova Beat, Porão Sonoro e dos MC’s Magrão, Jotapê e JCS, representantes do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP).
Muitas das músicas apresentadas tinham forte temática social e crítica, e muitas das letras abordavam, de maneira central ou não, a maconha e seus intertextos. Trata-se, afinal, de um dos aspectos da cultura de nosso país, ainda mais presente nas periferias urbanas. Após o espaço do Hip Hop, mas não sem ele, a noite de shows terminou com o reggae da banda Granjah Roots.
Dilma Roussef, legaliza o beck!
A recente aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 7663/2010, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), foi mais um dos motivos que fomentou a indignação de muitos que participavam da Marcha. O projeto, que ainda deve passar pelo Senado, reforça uma política proibicionista e higienista, baseada na concepção de “guerra às drogas”. A política institucional anda em pleno descompasso com as demandas da juventude e da população, e também por isso vozes e tambores ecoam nas ruas.
Em 2007, com o lançamento do primeiro filme Tropa de Elite, um bordão do personagem Capitão Nascimento, comandante (fictício) de uma das forças (reais) de repressão e combate urbano que mais matam no mundo, ficou famoso: em uma cena, depois que seu esquadrão mata sumariamente alguns traficantes em uma favela, entre tapas e coices, ele vocifera a um dos jovens que consumiam drogas ilícitas no local: “É você que financia essa merda!”
A Marcha da Maconha, assim como tantos outros grupos que se movimentam no dia-a-dia para desmistificar a discussão sobre as drogas, vem demonstrando, em uma árdua batalha, que essa afirmação é equivocada ou, no mínimo, ideológica: na verdade, quem apoia a proibição, apoia o tráfico. Por isso, como afirma Marcelo de Lara Zanoello, historiador, professor de história e um dos organizadores da Marcha, a atenção a todas as dimensões do debate sobre a maconha e as drogas e a não hierarquização das lutas é necessária. “Não é só a questão individual de poder fumar maconha. Nós queremos acabar com o tráfico, e a proibição é um grande mal. Nunca ninguém morreu por fumar, mas muita gente morre por ter que adentrar esse mercado ilegal”.
A premissa moral de definir o que as pessoas devem fazer e como devem viver, que ao reprimir práticas existentes ao longo de toda a história da humanidade, não pode abrir mão do uso da violência, já fracassou emblematicamente com a Lei Seca estadunidense, como bem sabia Al Capone, e insiste em fracassar, dia após dia, no nosso país e em muitos outros. A repressão pode causar todo tipo de violência e de consequências danosas, pode ser até funcional em uma sociedade tão desigual e sem espaço para todos; a única coisa para a qual ela não serve é para diminuir a demanda por drogas. Por tudo isso, tanta gente insiste em marchar, sem medo da pecha de maconheiros – não se trata de um insulto. Ou, pelo menos, não deveria se tratar, e esse é um dos horizontes almejados para um futuro não muito distante.
MARCHA DA MACONHA: EI, VIZINHA, É SÓ UMA PLANTINHA!, pelo viés de Tiago Miotto e com fotos de Tiago Miotto e Ivon Fernandes Nunes*
*Ivon Fernandes Nunes é estudante de Sistemas para Internet na Universidade Federal de Santa Maria.
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