No livro mais famoso do canadense Mordechai Richler, ‘O aprendizado de Duddy Kravitz’, o personagem principal, Duddy, traz consigo um mantra: “um homem sem terra não é ninguém”. Na lógica da posse, a propriedade da terra dá valor à pessoa. Não se trata simplesmente de ter uma casa, mas de possuí-la, ter controle sobre ela. A casa se torna, assim, não só um refúgio, não só a moradia como também a materialização da vida que se espera ou que se deseja. A fachada, a decoração, o jardim são elementos performativos, que apresentam os moradores à sua comunidade. Casa feia, gente feia; casa pobre, gente pobre — esta-cá é a lógica da casa onde o imperativo não é morar, mas mostrar que e como se mora.
Quase na chegada da volta do campus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pela Faixa Velha, brinda-nos um grande outdoor dos ‘Loteamentos Capri’. A ordem é clara: “adquira um terreno de alto padrão”. Se uma pessoa sem terra não é ninguém, torna-se alguém ao adquirir um terreno e, ainda por cima, de alto padrão. Temos aí três elementos que nos apresentam a cultura dos condomínios fechados, em especial os horizontais, aqueles de terrenos e casas. O primeiro é ‘loteamento’, que vem de lote: dividir para preencher. Na prática, são grandes terrenos afastados do centro, antes baldios, terraplenados e comprados pela empreiteira sob intenções especulativas. O segundo elemento é ‘Capri’, nome duma ilha no sul da Itália, donde, ouso dizer, não há sequer um descendente em Santa Maria. A ilha é cara, famosa entre os ricos, ‘bem frequentada’. Não adianta ter um nome qualquer — afinal ela vai estar no pórtico de entrada do condomínio, bradando a todos que passam as projeções que os construtores fizeram para quem ali morar. Imagina o fracasso de um condomínio fechado que se chamasse ‘Residencial Paraguai’! O último elemento é ‘alto padrão’. Que seria considerado como alto? Que padrão é esse? Alto é morar dentro da segurança que os muros, os vigilantes e as câmeras proporcionam. Padrão é estar entre os seus, num clima de paz e convivência amigável. Os condomínios horizontais fechados são pequenas bolhas cênicas que podem nos dizer muito sobre os valores e as práticas compartilhados e impostos numa sociedade.
De pronto, Santa Maria tem treze condomínios fechados, que somam 5,2 mil casas, onde morarão 13,5 mil pessoas [1], equivalentes a 5,17% da população de 261.031 pessoas da cidade [2]. De uma hora para outra, as Faixas Velha e Nova assistiram a uma explosão de condomínios horizontais. Grandes espaços vazios que faziam a paisagem do caminho até Camobi vão, nada lentamente, sendo transformados em imensidões de telhas marrons que bailam em pequenas sinuosidades idênticas no desenho que fazem as casas. Alguns fatores impulsionam o aumento do número de condomínios horizontais na cidade: a população cresce e o crédito se facilita. Programas como ‘Minha Casa, Minha Vida’ possibilitam a compra de uma casa própria a pessoas que eram antes renegadas pelo mercado imobiliário. Santa Maria cresce para o leste, onde está Camobi, a área com maior possibilidade de expansão do distrito Sede. O apelo da área é forte e comum a todos os condomínios fechados: o sossego e a segurança. Camobi se torna, aos poucos, uma lembrança de um “ruralismo idílico” [3] de casas sem muros entre as unidades, famílias que se conhecem, crianças nas ruas e espaços verdes afastados do burburinho dos centros.
Para os arquitetos Marcelo Tramontano e Denise Mônaco Santos, “os condomínios horizontais fechados referem-se diretamente ao processo de deterioração da qualidade de vida das cidades” [4]. São intervenções privadas na constituição de espaços públicos. Como adverte José Luiz de Moura Filho, doutor em Desenvolvimento Regional e professor da UFSM, o poder público não pode nem precisa intervir num espaço assim: não precisa pavimentar as ruas, nem trocar as lâmpadas, nem se preocupar com a segurança. “E ainda ganha lá seus 100 IPTUs”, diz o professor. Ou seja, dentro duma certa mentalidade, os condomínios horizontais fechados são empreendimentos completamente rentáveis para as prefeituras: elas têm a certeza de limpeza, organização, aparência de segurança e, ainda por cima, ganham com isso. Não é à toa que, enquanto a Praça dos Bombeiros não tem um banheiro público, a prefeitura tenha aprovado a construção de onze novos loteamentos nos últimos três anos [5].
No entanto, não é só uma questão de segurança e sossego que cerca os condomínios. Marcelo e Denise alertam que há basicamente três influências históricas fortes sobre eles: as vilas operárias, a cidade-jardim e os subúrbios. Ou seja, os condomínios horizontais fechados se relacionam a essas três influências na sua constituição atual. As vilas operárias surgiram como empreendimentos privados durante a Revolução Industrial, no século XIX. Os patrões queriam que os empregados morassem perto das fábricas para que, assim, pudessem trabalhar mais tempo e, ainda por cima, serem vigiados de perto. Além disso, as vilas operárias trouxeram, pela primeira vez, padrões burgueses de individualização e privacidade para a arquitetura — as famílias deixam de se amontoar em grandes e insalubres cortiços, onde todos sabem de tudo e se trompam a toda hora para terem um habitat individual para sua célula familiar. A segunda influência vem do movimento da cidade-jardim, iniciado em 1898 por Ebenezer Howard em seu romance utópico ‘To-morrow: a peaceful path to real reform’ (algo como ‘Amanhã: um caminho pacífico para a real reforma’). O modelo da cidade-jardim se baseia no “zoneamento funcional” da cidade, onde há casas unifamiliares, isoladas de outras áreas funcionais (compras, hospitais, educação etc.), separadas por cinturões verdes. A última influência, e também a mais recente, é a dos subúrbios estadunidenses do período pós-guerra a partir de 1945.
Dentre todas, o subúrbio é a influência que mais se assemelha aos condomínios horizontais fechados de Santa Maria e da América Latina em geral, pois se relaciona à “articulação entre Estado e setor imobiliário no sentido de promover o desenvolvimento de áreas marginais para atender às necessidades habitacionais da população” [6]. No caso dos Estados Unidos, tratava-se da população WASP (acrônimo em inglês para Branco, Anglo-Saxão e Protestante) do período posterior à Segunda Guerra Mundial. Na América Latina, trata-se principalmente de atender às necessidades habitacionais de grupos muito ricos em busca de segurança em contraposição a uma população miserável.
É interessante notar que o período pós-guerra, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, impulsionou uma retroalimentação de concepções de vida quase árcades, que primavam pela família, pela ordem e pela tradição como resposta direta às barbáries vividas na Segunda Guerra Mundial. Duma certa forma, essas concepções se espraiaram para além das gerações que viveram o período de guerra e se infiltraram, por exemplo, em programas de televisão e em filmes, que, fortemente consumidos também na América Latina, acabam sustentando um ideal de vida organizada, calma e segura. Uma obra de ficção que nos ilustra esse movimento, num enredo próprio, é o filme ‘A Vila’ (2004), em que um grupo de pessoas se isola da violência das grandes cidades onde moravam para criar uma comunidade quási-Amish, um simulacro de vida bucólica, protegidos do mundo além-muros por lendas e mitos de monstros que circundariam a vila.
De certa forma, também percebemos esse simulacro nos condomínios horizontais fechados que pipocam em Santa Maria. Em resposta ao medo da violência e ao descrédito da res publica, as pessoas se isolam numa bolha protegida pelo direito à propriedade, a reconstruir um ideal de vida que, muito possivelmente, nunca existiu plenamente. Os muros e as câmeras impedem que a violência invada, mas impedem também que pessoas de grupos diferentes se instalem ali (afinal, o cartaz dos ‘Loteamentos Capri’ é bem explícito quanto à sua noção de família). A vida se torna mais segura, mais organizada, com todos no seu próprio lugar, compartilhando um espaço de homogeneidade, vizinhança e sossego aparentes. A distância do Centro não possibilita somente tranquilidade mas também impulsiona a compra de carros — o próprio desenho da maioria das casas já rodeia uma garagem-fachada. Nesse caminho do meio, espalham-se ou já estão empreendimentos comerciais de mesmo nível: os shopping centers, epíteto maior da privatização da vida pública em torno do consumo. Tudo isso é recebido com bons olhos, menos as vilas e os casebres que vão inevitavelmente se aproximar dos condomínios: lá morarão os vigilantes, as empregadas, os cortadores de grama, os pedreiros — todos aqueles que mantêm o simulacro de vida perfeita, mas que não podem dele compartilhar.
Notemos que não se trata de culpar as pessoas que moram em condomínios horizontais fechados pelas mazelas da sociedade. Ninguém quer morar num lugar feio e perigoso. O ponto central é entendermos que esses condomínios são resultado de mentalidades compartilhadas e impostas, em especial pela cultura da vida balizada pelo capital econômico (‘quem compra pode morar’) e pelo descrédito senso-comum à vida pública (‘o Estado não funciona’). Os condomínios horizontais fechados segregam grupos de pessoas em condições semelhantes, transformando o espaço público que fica entre-condomínios em áreas de transição, em não-lugares, vazios e inabitados, desprovidos de relações sociais. Do lado de dentro, tudo parece perfeito e racional. Do lado de fora, o caos e a barbárie de que se deve proteger-se. Não é necessário interagir nem com as contradições materiais do sistema nem com o Outro. O diferente é privado: a decoração da sala, a cor do carro, o vaso de flor. A vida é simulada, ignorante ao estado real das coisas e, assim, cidadãos acabam se transformando em meros condôminos.
CIDADES SIMULADAS: DE CIDADÃOS A CONDÔMINOS, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
Muito bom o texto. Belo retrato da sombra que se esconde por detrás de tanto glamour.
Me fez lembrar de um ótimo filme que tive a oportunidade de assistir certa vez. “Beleza Americana”, não me falha a memória. Ilustra de uma forma bem interessante esse ideal de seguir esse padrão-zinho que nos é imposto.