Jovelina Pérola Negra, dama do samba brasileiro, cantou que o som de um banjo bem tocado deixa arrepiado. “Ao chegar o tom em meu ouvido, eu me vejo comovido com vontade de cantar: Lauê laiá, de cantar, lauê laiá”. Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro, no longínquo ano de 1914, voltava para casa com a mãe quando viu um menino negro órfão ser espancado por uma mulher branca no meio da rua. O que acontecia poucos anos depois da assinatura da Lei Áurea, e que ainda acontece hoje travestido em outras opressões sociais, fez o pequeno elevar-se em adágios. “Foi assim que aprendi, desde criança, que não se deve deixar sem resposta uma ofensa racial. Essa é uma lição que venho praticando durante toda minha vida”.
O Coordenador do Núcleo de Ação Cultural Educativa do Treze de Maio, Nei D’Ogum, após relembrar que, neste ano, completam-se 125 anos de abolição, expôs a situação de negligência do poder público com o evento: “mesmo que sejam os 110 anos deste espaço, um importante marco histórico do povo negro, o poder público não contribuiu. O poder municipal não reconhece a contribuição de negros e de negras para o país. Não ajudaram. Tudo aqui fomos nós, partindo do zero, que fizemos. Entre hoje e amanhã, teremos reunido 146 artistas. Nem a rua, aqui na frente, porque pensávamos em fazer um evento público, aberto, a prefeitura permitiu fechar. Imaginaram que a gente não se organizava. Eu já disse: aqui a gente tem problema de autoestima. Mas não é carência não, é sobra de confiança mesmo”.
Geanine Escobar, a menina que cantou e tocou pau d’água – instrumento de percussão que produz som similar ao da chuva – e que costurou suas críticas e clamores, orgulhos e sensações com a poesia do poeta Oliveira Silveira, abriu a primeira noite do 1º Festival Municipal de Artes Negras – FESMAN – convidando a todos para saudar, no segundo andar do prédio tombado, a história e a luta do povo que construiu o Brasil.
“Encontrei minhas origens na cor da minha pele, nos lanhos de minha alma, em mim, em minha gente escura, em meus heróis altivos”, escreveu Oliveira Silveira, que, em 1971, trazia àquela geração a advertência para uma transformação. Não apenas de datas, mas de simbologias, o poeta negro sugeriu que o 20 de novembro, em lembrança à morte de Zumbi dos Palmares, fosse adotado como Dia da Consciência Negra.
O atual Museu iniciou sua história em 1903 como Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio. O prédio fora erguido pelos próprios ferroviários negros da cidade. Fundado por negros e para negros em alusão ao treze de maio de 1888, data da assinatura da Lei Áurea, hoje o espaço funciona como um museu comunitário, um ambiente tomado por emblemas, gente e histórias. Há alguns anos atrás, o prédio verde de dois andares na Rua Silva Jardim, entre o centro e o Bairro do Rosário, chegou a ficar fechado e abandonado. Em 2001, integrantes do movimento negro da cidade e estudantes de Museologia resolveram abraçar a causa e recuperá-lo.
“A gente pensava muito em criar uma companhia de teatro negra. Na música, havia o samba. A dança afro já tinha uma aceitação. Mas nas artes cênicas havia um buraco. Viemos para o Treze fazê-lo reviver com uma nova proposta. A companhia cênica não saiu e então fomos instigados a criar outros laços”, resume Nei sobre o suspiro que devolveria vida ao Treze. “No 111º aniversário, a companhia estará a mil”. No segundo final de semana de 2013, o Treze se mostrou intenso e imponente. “Com toda sua relevância, não podíamos deixar passar os 110 anos em branco”, opina Nei, que termina sua colocação com humor: “Temos que passar em preto”.
O FESMAN foi resultado de um processo de construção intenso motivado pelas 110 anos de história vivida e contada do Museu Comunitário Treze de Maio aliado ao desejo de mudança do cenário cultural da cidade de Santa Maria.
Protagonizado pelos negros que se movimentam e movimentam diariamente o Museu, através da capoeira, da dança, do teatro, da poesia, da culinária e do artesanato, o Festival ocorreu entre os dias 09, 10 e 11 de maio.
Foram 3 dias e mais de 900 fotografias. As fotos realizadas durante o FESMAN não são apenas imagens de negros e negras fruto de um ou outro disparo de câmera. As fotos são registros, são memórias. Apresentam a beleza, a autoestima, a identidade e a cultura de um povo que pouco é visibilizado pela mídia hegemônica e pelo poder público em sua totalidade artística, religiosa, de gênero e de sexualidade.
As imagens são retratos de pessoas, de histórias. Neste caso, pessoas negras; neste caso, histórias negras. Histórias que se cruzam por meio da cor da pele, do olhar, do movimento – seja dos pés no samba ou das mãos no tambor. Todas elas marcadas por luta e resistência que você confere neste ensaio.
PASSAR EM BRANCO? NÃO, VAMOS PASSAR EM PRETO, pelo viés de Bibiano Girard e Luciele Oliveira*. Fotos de Luciele Oliveira.
* Luciele é Acadêmica do curso de jornalismo da UFSM, dinamizadora do Museu Treze de Maio e militante do Levante Popular da Juventude.