Um dos grandes mestres contemporâneos da escrita da história a contrapelo é, sem sombra de dúvida, o uruguaio Eduardo Galeano. Isso fica patente para qualquer pessoa que se deixe absorver pela leitura de suas obras, por exemplo, o magistral Memória do Fogo ou o clássico As Veias Abertas da América Latina, ambos relatos dramáticos dos cinco séculos da barbárie “civilizatória” e das lutas sociais realizadas em nosso continente.
Esses são, como se sabe, seus livros mais famosos e, justamente, divulgados. Mas vale a pena destacar, também – e esta é a tarefa que aqui nos cabe -, outras de suas muitas pérolas literárias, igualmente vigorosas em força crítica e capacidade de desvelamento da realidade que se oculta por trás das narrativas oficiais da história. Pensamos aqui no magnífico O Teatro do Bem e do Mal (Porto Alegre: L&PM, 2007. 2ª ed.): pequeno no tamanho – apenas 128 páginas -, mas grande na realização e no significado para todos aqueles que almejam construir e viver uma sociedade mais emancipada e digna.
O tema da obra é a realidade contemporânea, com sua ampla variedade de contradições. O ponto de vista assumido é o dos derrotados da história: os párias, os excluídos, os vencidos de todos os tipos, aqueles que, de algum modo, foram considerados o oposto do ideal a ser seguido pelas sociedades ao longo dos tempos – “Não haverá o que aprender com os perdedores, como em tantas outras coisas?”, pergunta-se Galeano, num dado momento, deixando transparecer o posicionamento que adota. O intento perseguido é a critica das determinações históricas que permitem que certos grupos econômicos, políticos, étnicos e de gênero dominem e submetam a seus interesses a imensa maioria da humanidade.
As técnicas de escrita utilizadas pelo autor são variadas e dominadas com grande maestria. Mencionaremos, aqui, apenas, de maneira breve, as que mais saltam aos olhos durante a leitura de O Teatro do Bem e do Mal.
Um dos principais elementos do método de composição textual de Galeano reside naquilo que o filósofo alemão Walter Benjamin chamou de imagem dialética. Isto é: o procedimento de “capturar” um evento passado e articulá-lo com o presente de tal forma que ambos, passado e presente, colocados lado a lado, frente aos olhos do leitor, se “iluminem” e revelem as “conexões ocultas”, “subterrâneas”, que os interligam e que não são perceptíveis se se adota uma perspectiva usual (linear) de compreensão da história.
Por exemplo: logo no primeiro capítulo, intitulado, como o livro, O Teatro do Bem e do Mal, o autor, escrevendo no período imediatamente posterior ao ataque ao World Trade Center, revira do avesso o presente histórico em que se situa – no qual, frise-se, os EUA e Osama Bin Laden se apresentam, diante do público, como inimigos -, para encontrar, aí, de forma obtusa, uma marca indelével do passado, quando os antagonistas eram, de fato, aliados. Diz Galeano:
“O flagelo do mundo, agora, chama-se Osama Bin Laden. A CIA lhe ensinara tudo o que sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais ‘guerreiros da liberdade’ contra o comunismo no Afeganistão. Bush Pai ocupava a vice-presidência quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram ‘o equivalente moral dos Pais Fundadores da América’. Hollywood estava de acordo com a Casa Branca. Na época filmou-se Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons. Treze anos depois, nos tempos de Bush Filho, são maus, malíssimos.”
Destaque-se bem a técnica presente nesse método de elaboração discursiva: Galeano faz um “corte” abrupto, uma “cesura” na história, revelando a interconexão – oculta, para a sensibilidade ordinária – entre dois pontos aparentemente separados. Naquele ano de 2001, EUA e Bin Laden eram mostrados, pela gigantesca máquina propagandística midiática, como oponentes viscerais. Mas foram, de fato, os próprios norte-americanos que, na década de 1970, para combater o comunismo, que se tornava uma ideologia influente entres os países islâmicos, que insuflaram, naqueles povos, a cultura e a visão política mais retrógrada existente. Essa é a origem do famigerado talibã. Quando a União Soviética ocupou o Afeganistão, em 1979, foram os EUA que armaram e treinaram os combatentes chamados mujahedin, no intuito de que estes derrotassem as forças comunistas em seu país. Com o desdobrar da história, no entanto, a relação entre “democratas” e fundamentalistas acabou por se transformar, ao passo que a sua representação, perante a massa espectadora, obscureceu completamente os acontecimentos originais.
Em última instância, portanto, a guerra norte-americana ao terror é uma guerra contra suas próprias criaturas. E o detalhe mais sórdido disso tudo é que esse combate não foi, de forma alguma, indesejado pela classe dominante do país de Mickey Mouse. Pois, como Galeano afirma, mais à frente, num capítulo intitulado, sugestivamente, de Satanases, “quando as guerras vão bem, a economia vai melhor”.
Aí se revelam as ideias de como a guerra é a política por outros meios, de como a atividade belicista alimenta a economia em crise, e de como, finalmente, a política oficial e a grande mídia atendem aos interesses econômicos dos mais fortes. Tornam-se claro os ímpetos particulares por trás das práticas aparentemente “neutras” e movidas pelas nobres causas “universais” da “democracia” e da “liberdade”, alardeadas pelos meios de comunicação de massa. Fica evidente para o leitor, conduzido pelas poderosas imagens de Galeano, que a guerra perpetrada contra o Afeganistão, em 2001, não foi, de maneira alguma, um acidente na história.
O escritor uruguaio trabalha, assim, de modo a colocar passado e presente lado a lado, de uma forma sui generis. Compõe uma figuração onde o fluxo dos acontecimentos é subitamente imobilizado. Quebram-se, aí, as supostas linearidade e “naturalidade” da história, tão caras aos positivistas e historicistas de todos os quadrantes. Os contextos dos anos de 1979 e 2001 são justapostos de maneira que a consciência do observador possa escapar à tirania da aparência de “normalidade” do processo histórico e refletir, criticamente, sobre a realidade contemplada. A imagem dialética produzida por Galeano provoca, dessa forma, algo como um choque na sensibilidade do leitor, desestruturando momentaneamente a configuração que esta havia assumido – sedimentada a partir da vivência das relações sociais dominantes – e abrindo a possibilidade de uma nova reestruturação, agora com um sentido diferente.
Galeano, diga-se de passagem, é expert em produzir tais efeitos. Ao longo de seu texto, é constante a experimentação de técnicas composicionais por meio das quais aproxima duas realidades opostas, aparentemente sem relação alguma, dentro de um mesmo plano focal.
Um belo exemplo disso é observado no capítulo Um tema para arqueólogos, onde lemos que: “A tecnologia, que aboliu as distâncias, permite agora que um operário da Nike na Indonésia tenha de trabalhar cem mil anos para ganhar o que ganha, em um ano, um executivo da Nike nos Estados Unidos, e que um operário da IBM nas Filipinas fabrique computadores que ele não pode comprar”. Note-se como o autor prossegue, aqui, “aproximando as desigualdades”, fazendo os opostos se encontrarem, a fim de denunciar as mazelas sofridas pelos que se situam em posição antagônica e subalterna em relação ao poder estabelecido. E tudo isso não sem o inconfundível toque de ironia que permeia, de ponta a ponta, seus escritos e que lhe permite des-sacralizar os discursos engendrados pelos grupos dominantes, quebrando, assim, a força do impacto que tais narrativas poderiam ter sobre a sensibilidade coletiva.
Imagem dialética e ironia, narração da história a contrapelo e posicionamento político identificado com os esfarrapados do mundo. Estes são alguns dos elementos que revestem a crônica socialmente engajada de Eduardo Galeano, de que o texto O Teatro do Bem e do Mal é expressão exemplar.
A CRÔNICA SOCIALMENTE ENGAJADA DE EDUARDO GALEANO, pelo viés de Demetrio Cherobini.
americano A Máquina de Somar, de Elmer Rice, com tradução de Iná Camargo Costa e Márcio Boaro. Atenta às transformações históricas e sociais, a companhia foca sua pesquisa no teatro épico e, nos últimos anos, tem aprofundado seus estudos em teatro documental. Colocou em cartaz os espectáculos As Aventuras e Desventuras de Maria Malazartes durante a Construção da Grande Pirâmide, de Chico de Assis; e A Guerra dos Caloteiros, de Márcio Boaro e Iná Camargo Costa. Em 2010, a companhia foi contemplada pela 16ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo para a pesquisa sobre o processo da Revolução dos Cravos, que culminou no espectáculo Ruptura – Um Processo Revolucionário. No fim de 2011 é contemplado pela última edição da lei, em sua 19ª edição, para dar continuidade em suas pesquisas em teatro documental.