A COMUNA URBANA

Originada de famílias que sofreram uma ação de despejo e foram, a partir de então, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comuna Urbana Dom Helder Câmara, na cidade de Jandira, é a primeira iniciativa para um assentamento urbano da organização historicamente ligada à luta pela reforma agrária. Mas o que o maior movimento de massas da América Latina iria propor de novo em sua “entrada” nas cidades? O que estavam entendendo por uma “comuna”? Qual seria o resultado de aproximação dos militantes do movimento com as populações fragilizadas das periferias urbanas das grandes metrópoles?

Jandira é uma cidade-dormitório de 110 mil habitantes, próxima do maior complexo de condomínios de luxo da região metropolitana de São Paulo, como o Alphaville, e é conectada por uma linha de trem de subúrbio que leva ao centro da cidade. Nas margens dessa linha, numa área de várzea, formou-se no ano 2000 uma favela com 250 famílias, denominada Vila Esperança. Não apenas os moradores sofriam com as cheias do rio Barueri Mirim, como no ano seguinte começaram a ser ameaçados com a ação de reintegração de posse por parte da companhia de trens. Foram quatro anos de resistência. Um braço progressista da Igreja logo chegou ao local, por meio da Pastoral da Moradia e do Padre João Carlos, colaborando para que as famílias se organizassem e se defendessem.

Na iminência do despejo, a Pastoral da Moradia entrou em contato com a Pastoral da Terra e o MST, que passaram a procurar alternativas para as famílias. Ao perceberem que o interesse daquela comunidade não era reivindicar um assentamento de reforma agrária, os militantes da frente de massas do MST avaliaram que os conflitos urbanos, enfim, deveriam ser enfrentados na própria cidade e não fora dela.

Entretanto, em novembro de 2005 ocorreu o despejo, com a presença da Polícia Militar e a imediata derrubada dos barracos. Metade das famílias aceitou fazer uma nova ocupação, agora não mais espontânea, mas com caráter político e organizada junto ao MST. Foi assim ocupado um enorme edifício há 30 anos abandonado, uma estrutura de concreto projetada para ser o Seminário dos Padres Salesianos, vendida antes da conclusão por falta de recursos. O último proprietário, um industrial, afirmava pretender utilizá-la como fábrica de chocolates, mas nada foi feito e os impostos se acumulavam, totalizando naquele momento uma dívida de 300 mil reais em IPTU.

O grupo de 120 famílias que foi para o Seminário passou a se denominar Comuna Urbana Dom Helder Câmara. A homenagem a um dos principais bispos brasileiros, que fez oposição à ditadura, não era casual – a influência da Igreja progressista em comunidades como essa no Brasil ainda é significativa, apesar do avanço dos grupos evangélicos. Uma das máximas de Dom Helder que passou a ser reproduzida nas assembleias e que ilustra o progressismo a que nos referimos era a seguinte: “Quando dou pão aos pobres me chamam de santo, quando pergunto pelas causas da pobreza, me chamam de comunista”. A ocupação do Seminário reforçava o nexo religioso que movia a unidade das famílias. Mas o claustro era “profanado” com atividades mundanas, festas e futebol. Esse sincretismo entre a vida cotidiana da comunidade, a mística religiosa e a organização política esteve sempre presente em todo o processo e na definição que cada um dos agentes dava ao significado de “Comuna”: para uns, sinônimo de comunidade; para outros, de comunhão; e, para alguns, de comunismo.

Já instalados na ocupação, o padre João Carlos e o MST, com o apoio da prefeitura local gerida então pelo PT, conseguiram obter um repasse de recursos do Ministério das Cidades para a compra de um terreno que permitisse um projeto habitacional para as famílias. Para obter o recurso foi realizado um projeto preliminar pela prefeitura, com prédios iguais, carimbados no terreno de forma burocrática. Aquele desenho não correspondia, evidentemente, às ambições que a Comuna tinha para si. Foi nesse momento, quando parte dos recursos e a aquisição do terreno já estavam encaminhados, que o MST resolveu convidar o nosso coletivo de arquitetura a colaborar nesse processo. Já havíamos trabalhado juntos em outros projetos, sobretudo construindo casas em assentamentos de reforma agrária.

A reação imediata dos arquitetos ao visitarem o terreno e verem o projeto preliminar da prefeitura foi apoiar o movimento para que reivindicassem um projeto arquitetônico que correspondesse a seus objetivos políticos. A defesa do projeto próprio foi imediatamente encampada, novamente por motivos diferentes, mas não conflitantes: para o padre era a possibilidade de construir uma comunidade (no sentido religioso), cujo imaginário simbólico ele remetia a pequenas vilas italianas; para o MST, a possibilidade de indicar uma forma coletivista de organizar os trabalhadores nas cidades; e para as próprias famílias, o desejo concreto de morar em casas dignas e não em apartamentos exíguos projetados por burocratas e construídos por empreiteiras. A Usina teve que perceber essas diferentes demandas para articulá-las como um “tema-gerador” (no sentido sugerido pela pedagogia de Paulo Freire) para iniciar o processo participativo do projeto.

Em novembro de 2006 iniciamos as atividades de projeto coletivo. A pressão era enorme, sobretudo por dois motivos. Os técnicos da prefeitura e do governo federal não queriam abandonar o projeto por eles realizado e acusavam a Usina e o MST de colocar em risco o financiamento já contratado. Contudo, o argumento de que as famílias nunca haviam sido consultadas e que rejeitariam os apartamentos, associado ao fato de que a Usina tinha larga experiência em projetos habitacionais participativos, fazia com que os técnicos recuassem e aceitassem o projeto próprio, desde que obedecidos os prazos exíguos por eles solicitados. O fiel da balança foi o prefeito petista de Jandira, Paulo Barjud, que apoiou, ao fim, a iniciativa do movimento e a capacidade técnica da Usina, mas não sem fazer sua chantagem emocional, ao afirmar que “se vocês perderem esse recurso, eu renuncio!”. O segundo motivo de pressão era a iminência de novo despejo, movido pelo industrial do chocolate e proprietário das ruínas Salesianas – fato que se consumou em dezembro de 2006, quando as famílias foram relocadas para outro terreno, graças novamente à intermediação do movimento e do padre, e as atividades de projeto puderam seguir até serem completadas, em janeiro de 2007.

O processo de projeto participativo foi assim parcialmente condicionado por uma situação de emergência, mas as primeiras atividades de discussão do projeto que se deram na ocupação do Seminário já nos apresentaram diversas novidades interessantes. As habitações improvisadas foram feitas pelos ocupantes nas próprias celas destinadas aos seminaristas, ainda incompletas, e fechadas por tapumes de todos os tipos – inclusive propagandas imobiliárias de apartamentos de luxo. O enorme vazio central do pátio do claustro também propiciou uma relação das moradias com o espaço coletivo que se diferenciava da experiência vivida na favela. E as famílias logo perceberam que o novo projeto poderia ter espaços vazios, abertos para a sociabilidade, como aquele. O espaço de meditação dos seminaristas, contudo, estava ali transformado pelos gritos de crianças, brincadeiras, futebol (inclusive feminino), rodas de samba, mesas de dominó, churrasquinho e festas. O “terreiro” central profanado era o lugar da mística religiosa, do movimento e da vida cotidiana. Era o ponto focal que permitia igualmente àquelas famílias terem uma unidade na luta e na tessitura da vida – a começar pelo fato de que estavam há um ano no local sem nenhum assassinato ou ocorrência grave, comuns na antiga favela.

A experiência espacial vivida no claustro e a organização da Comuna (já “nucleada” pelo método do MST) foram percebidas pelos arquitetos como novo tema-gerador e iniciamos os debates a partir dos espaços coletivos e não dos ambientes privados, invertendo nossa prática habitual que parte da mais imediata moradia individual. Contudo, os espaços coletivos deveriam respeitar a limitante autoimposta pelas famílias, a urbanização baseada em casas unifamiliares, o que contraditoriamente reduzia as áreas livres – mas o acordo era importante para a defesa do projeto próprio, contra os prédios do governo. A primeira ação foi listar as atividades que eles realizavam na ocupação e que eles gostariam que continuassem existindo no novo projeto, com destaque para algumas questões de gênero: cozinha comunitária, mulheres participando de palestras e atividades de formação, homens também cozinhando, futebol, festas, espaço para as crianças, união, amizade, respeito etc. Assim foram reivindicados espaços específicos e edificações complementares à moradia. As principais delas, que acabaram contempladas no projeto, foram: creche e escola infantil, quadra esportiva, oficinas de trabalho, lugar de festas, padaria comunitária, praça, horta comunitária, espaço para atividades de formação, assembleias e celebrações.

O estímulo à imaginação (e à indignação) é fundamental. Para quem está acampado num barraco, qualquer alternativa parece aceitável, mesmo os apartamentos-padrão mais indignos construídos pelo governo. Para superar essa carência e conformismo, é preciso realizar ações e provocações que agucem a disposição para indagar, conhecer e propor alternativas. No início das atividades, fizemos um movimento retrospectivo/prospectivo (termo de Henri Lefebvre), isto é, reativamos o imaginário das experiências vividas do grupo para que delas pudéssemos procurar caminhos futuros. Muitas das famílias tiveram outras situações de moradia significativamente melhores do que na favela. No Nordeste, em Minas Gerais ou no interior de São Paulo, viveram em casas maiores, com quintais, varandas, pomares, cozinhas amplas e agradáveis, com forno a lenha, daqueles que perfumam a casa toda com os odores e vapores da comida. A vivência do morar para eles nem sempre foi a do barraco apertado num centro urbano, desprovido de infraestrutura e o mínimo de dignidade.

O tema da migração e as condições de vida nas metrópoles foram então discutidos: por que saímos de uma casa boa no interior e viemos parar em um barraco na capital? Por que o acesso à terra e à moradia regulares nas grandes cidades são negados à maioria da população? O movimento migratório na direção do assalariamento, em geral, corresponde a uma perda na qualidade de vida e nas condições de moradia.

Algumas famílias ainda não conheciam o terreno e outras apenas o haviam visto rapidamente. Fizemos então uma incursão de reconhecimento na qual descobrimos que do seu ponto mais alto é possível avistar os arranha-céus do centro financeiro de São Paulo, e a Avenida Paulista, a cerca de 40 quilômetros de distância, como uma miragem no horizonte.

Trata-se de um terreno complexo mas que, ao mesmo tempo, é uma pequena síntese dos tipos de territórios à disposição dos trabalhadores nas cidades brasileiras – altas declividades, várzeas alagáveis e zonas ambientalmente frágeis. Há, por isso, algum “saber-ocupar” estas situações limites de assentamento tanto por parte das populações empobrecidas quanto de uma parcela minoritária dos projetistas.

No próprio terreno fizemos uma atividade na qual se discutiu a relação entre a área de moradia e todos os demais usos que o grupo da Comuna solicitava. Visualizando melhor o terreno após percorrê-lo, os moradores começaram a indicar onde deveria ser o acesso, a rua interna, onde ficaria o campo de futebol, a praça, a escola, a padaria e os renques de casas.

Nas atividades seguintes finalmente começamos a investigar a unidade habitacional propriamente dita. Na primeira delas dividimos a assembleia em quatro grupos. Cada um dos grupos, ora dividido por idade, ora por gênero, tinha ideias e práticas diferenciadas a respeito do morar. Em cada um dos grupos, um arquiteto-mediador da Usina introduziu temas para debate e reflexão a partir de grandes cartões que indicavam cada um dos ambientes e funções da casa. “Como vocês acham que deve ser tal ambiente? Quais são os móveis? Como são os usos? Quem faz o quê?” Perguntas desse tipo iam motivando reações diversas que foram anotadas e discutidas. E, evidentemente, surgiram situações de dissenso, dentro dos grupos e entre eles. Na animada assembleia em que cada um expôs o que havia sido debatido em seu grupo, era comum surgirem vaias e aplausos, sobretudo em afirmações polêmicas que evidenciam as diferenças de gênero, o peso do trabalho doméstico e da opressão sofrida pela mulher. Os homens não tinham vergonha, por exemplo, de afirmar que sobre a cozinha e a lavanderia “é a mulherada que deveria opinar”, pois eles não teriam nada a dizer – o que foi seguido por uma vaia indignada das mulheres. Algumas delas, nas semanas seguintes, vieram comentar que deixaram os maridos lavando roupa e cozinhando para verem como deveria ser a casa nova.

O próximo encontro dos arquitetos com as famílias já se daria com algumas plantas desenhadas dos sobrados, que foram impressas em transparências e projetadas. Ao lado, sobre uma mesa, foi disposta a planta dos móveis da casa em papel na mesma escala, que podiam ser aderidas na parede com fitas adesivas, de modo a povoar os ambientes e verificar se eles contemplavam as demandas discutidas. O método é investigar o projeto pelos móveis, pois são eles que indicam e organizam os usos. Vamos reconhecendo como a linguagem de projeto é muito facilmente apropriável, pois, no limite, trata-se de uma brincadeira de “casa de boneca”. Não havia, assim, distância entre o discurso técnico e a experimentação levada a cabo, pois se estabelecia uma unidade de ação entre arquitetos e sem teto decorrente do entendimento lúdico daquela ação criadora com elementos simples e ao alcance de todos.

Durante a semana, entre uma assembleia e outra, os arquitetos trabalhavam incessantemente no material recolhido, procurando adequar as solicitações coletivas, as condições do terreno, a legislação ambiental e de uso do solo, os valores do financiamento público para a construção das casas, as alternativas tecnológicas e estruturais etc.

As casas teriam 68m2, 50% maiores do que os apartamentos previstos anteriormente, e três dormitórios. A discussão de projeto também favoreceu a que se chegasse ao desenho de três tipologias diferenciadas, que se encaixavam umas nas outras. Cada grupo de aproximadamente 10 casas formava uma pracinha interna, permitindo que o sistema de organização por “núcleos” de 10 famílias, adotado pelo MST, encontrasse no projeto uma espacialidade correspondente.

Enquanto os debates de projeto ocorriam, a viabilidade financeira da obra foi sendo costurada pela Usina, MST e Prefeitura junto aos órgãos federais e estaduais. Para poder alcançar a qualidade almejada, foi necessário combinar diversos recursos, todos eles altamente subsidiados, mas que até então nunca tinham sido articulados entre si. Os valores somados por unidade habitacional, incluindo terreno, infraestrutura e equipamentos comunitários, totalizam 47 mil reais. Na engenharia financeira que foi montada, as famílias não se tornavam mutuárias (pagando por 30 anos o financiamento habitacional, como em geral ocorre), mas beneficiárias de um repasse que significa uma operação de transferência de renda, ao invés de endividamento dos trabalhadores (com o risco de despejo após três parcelas em atraso!). A contrapartida das famílias foi de apenas 2 mil reais e mais o equivalente a 4 mil reais em trabalho voluntário na obra, na forma de mutirão. O total por unidade habitacional resultou, em 2008, em 53 mil reais, um dos valores mais altos já obtidos pelo movimento popular na produção habitacional por autogestão até aquele momento.

Do ponto de vista da propriedade fundiária, também procuramos questionar a apropriação privada de um processo de luta e organização que é coletivo. Isto é, o MST e a Comuna, com o apoio da Usina, se posicionaram a favor da propriedade coletiva e da prevalência do valor de uso. Como restringir a mercantilização das unidades habitacionais e garantir o coletivismo? Inicialmente pensamos que o empreendimento habitacional poderia ser caracterizado como uma cooperativa na qual todas as famílias estariam representadas. Contudo, no Brasil a propriedade residencial não pode ser transformada em capital cooperativo no qual cada morador teria uma cota-parte, como se faz no Uruguai, por exemplo. Nós estávamos sendo forçados a transformar o projeto em um condomínio residencial em que a propriedade da terra seria fragmentada, individualizada e privatizada. Como forma de resistir a isso, a Comuna propôs que a terra continuasse pública e que os moradores tivessem a cessão coletiva de uso, como forma de inibir a mercantilização da conquista coletiva. Os desfechos desse embate contra as regras do jogo ainda estão em aberto. 

A COMUNA URBANA, pelo viés do colaborador Usina*

*Usina é um coletivo de arquitetura que, há 20 anos, atua junto a movimentos sociais na construção de novas experiências territoriais. Este artigo foi originalmente publicado em Piseagrama.

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