O Riso dos Outros traça um painel sobre a fina linha que separa o cômico do trágico, o humor da ofensa. Ao mesmo tempo em que há declarações polêmicas, como a pretensão de Danilo Gentili na comédia (“é só destruir mesmo”), certas questões são levantadas, pesando na reflexão do público. Em determinado momento, André Dahmer, autor das tirinhas dos Malvados, indaga: “se humor precisa de uma vítima, façamos a vítima certa, né? Por que bater nos negros ou nas mulheres, que já apanharam bastante?”. Para além das opiniões de quem trabalha com o humor, há também entrevistas com o deputado federal Jean Wyllys, a blogueira feminista Lola Aronovitch e o escritor Antônio Prata, entre outros.
Humor de injúrias
Marília Budó é advogada e com certeza daria risada de uma piada que apelasse para o inusitado: uma mulher loira, por exemplo, que dá uma lição em algum machão típico. É a forma que a também jornalista encontra para dizer que há, sim, possibilidades de se fazer humor utilizando-se do senso comum.
Sobre o argumento da censura na comédia, Marília é categórica: “não existe censura no Brasil. O que existe é um controle judicial a posteriori, se a pessoa que se sentiu ofendida decide mover uma ação contra o humorista”. Ou seja, não há uma censura prévia. O comediante pode dizer o que bem entender. No entanto, quando o indivíduo sente que tem sua honra subjetiva e privada ferida – a chamada “injúria” -, ele pode ingressar com uma ação de indenização. Em casos mais graves, a pessoa pode ainda ter a sua honra objetiva comprometida – aquela compartilhada com suas pessoas mais próximas. Neste caso, ações de dano moral por difamação são acionadas. Tais processos independem se a piada é dita em público, como num show de stand up comedy, ou no privado, em uma roda de amigos.
Há ainda a autocensura, quando o humorista pensa duas ou três vezes antes de fazer sua piada. É um dos argumentos mais utilizados pelos comediantes na hora de enfrentar a “patrulha do politicamente correto”. Para Marília, isto é puramente um exercício de ética, sendo que ela própria, a ética, não deixa de ser um tipo de autocensura.
– Eu, como professora e advogada, não posso fazer tudo o que eu quero. Tenho uma atuação ética justamente voltada à ideia de que eu devo respeitar os demais, enquanto meus colegas, alunos, pessoas que comigo convivem. Se os humoristas não querem ter uma conduta ética, eles estão querendo também deixar de lado todas as culturas das profissões, na verdade.
Dessa forma, o humorista é visto como uma profissão assim como as demais, em que há um código de ética a ser seguido. Quando analisado dentro do seu discurso, o humor pode trazer sérias conseqüências. Não é o caso de incitar ações, como, por exemplo, a piada do estupro de Rafinha Bastos, em que a mulher feia deveria agradecer por ser estuprada. O perigo real reside na banalização destes casos. É o que diz Lola Aronovitch, professora da Universidade Federal do Ceará, dona de um blog feminista e fã inveterada de Chaplin, Jerry Lewis e humor irônico:
– A maior parte dos discursos de ódio não faz com que pessoas cometam crimes reais. O que esses discursos fazem é que esses crimes deixem de ter importância. Cria-se uma anestesia, uma insensibilidade a esses crimes. A piada do Rafinha provavelmente não fará que um cara estupre alguém. Mas talvez faça com que a mulher feia não denuncie o crime. E certamente fará com que muita gente pense que o estupro foi bom pra ela; logo, que nem estupro foi.
Lola também questiona o que há de subversivo em piadas como a de Rafinha Bastos:
– É a mesma linha de humor por baixo de 99% das piadas de estupro: que é uma oportunidade de sexo pra mulher, que ela gosta, que ela vai pedir mais, que não é violência, é sexo, que mulher feia não transa… Isso é o que uma sociedade misógina repete todo dia. Não seria possível subverter esses clichês?
A ascensão dos cartuns
Não é incomum que o comediante do stand up que se julga politicamente incorreto acabe também se tornando vítima de piada. Este é um dos alvos do cartunista e roteirista Arnaldo Branco, que publica suas tiras no blog Mau Humor. Criador do personagem Capitão Presença e Joe Pimp, Arnaldo enxerga casos isolados de talento no humor brasileiro e “pouca identidade no geral; o pior é essa arrogância de achar que somos o país da piada, quando nossa fachada de sujeitos bem humorados não resiste a um episódio dos Simpsons”.
A linha que separa o politicamente incorreto da falta de bom senso é simples para o cartunista: se a maioria das pessoas não ri, a piada não funcionou. Na hora de fazer suas tiras, a inspiração vem da realidade e da “falta de noção das nossas figuras públicas”. Há uma carga política evidente nos cartuns de Arnaldo e sobram críticas a todos os lados: classe média, conservadorismo, formadores de opinião ou mesmo o simples cotidiano.
– O meu trabalho reflete o que penso, mas às vezes faz a mímica de pessoas de quem discordo, e é comum que o leitor confunda as coisas, explica Arnaldo. As tiras não externalizam necessariamente sua posição ideológica, mas, sim uma visão própria de mundo do cartunista.
Tiras de quadrinhos vêm se tornando muito populares nas redes sociais, como o Facebook. O exemplo de Adriano Kitani, autor do Pirikart e fã de Simpsons e South Park, é notável: sua página tem mais de 4.000 curtidas, sendo 221 apenas no mês de dezembro. A ideia nasceu quando Adriano fazia seu trabalho final de curso, sobre tiras, e durante a pesquisa desenvolveu algumas experimentações. Uma delas é a inédita tira Sudoku, que oferece novas interpretações a cada leitura realizada.
A inspiração de Adriano vem de assuntos dos jornais ou redes sociais, tratando-os de forma divertida, não muito exagerada. O cartunista vê piadas contra minorias com certo receio:
– É um tipo de humor que acaba apelando um pouco pra certos preconceitos que muitas pessoas têm, mas não dizem abertamente. Esse tipo de humor faz muito sucesso porque existe um grande público que se identifica com esse tipo de coisa.
O compartilhamento de idéias entre público e humorista é o que determina o sucesso de uma piada. Sendo assim, se comediantes como Rafinha Bastos e Danilo Gentili recebem tantas críticas, como explicar seus shows de stand up sempre lotados? Para Marília Budó, há uma inegável reprodução ideológica no discurso do humorista quando ele faz uma piada, e que não ocorre apenas no humor, mas em diversos lugares, todos os dias.
– Nas sentenças judiciais, a gente encontra a reprodução da estrutura racista, classista, patriarcal. A gente encontra isso nos jornais, no discurso médico, psiquiátrico, e no humor também. Quando exercitamos o humor tentando diminuir as capacidades e habilidades de pessoas que já sofrem preconceito em razão dessa cultura, eu acredito que, sim, há uma reprodução.
Essa cultura machista, racista e classista em que vivemos não é dada, mas construída através de um longo processo histórico. Sendo assim, se há de fato a reprodução de uma ideologia através da piada, ela só arrancará a risada do público caso o mesmo compartilhe dessa opinião.
– As pessoas têm a liberdade de fazer a interpretação que quiserem. Isso também é liberdade de expressão. Agora, na minha opinião, há, sim, uma reprodução, e o fato das pessoas rirem e de ter público só demonstra isso, diz Marília.
Arnaldo resume a questão da grande audiência dos criticados stand ups em uma frase simples: “(eles existem) porque a gente consome humor igual comida a quilo”.
Democracia para ofensores e ofendidos
O humor é estudado a sério por Daniel Kupermann, doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atual professor no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo. Uma das maiores piadas que dr. Kupermann enxerga na vida é rir quando percebe que tenta ser perfeito. E a risada é saudável. O senso de humor é um dos principais indicadores de saúde mental e tem a capacidade de aproximar as pessoas.
– De um lado, ele denuncia as amarras que são impostas a todos nós. De outro, permite que nos livremos de ideais anacrônicos e, assim, criemos novos ideais passíveis de ser compartilhados entre desconhecidos.
O humor negro caracteriza-se por rir da morte e da desgraça, principalmente a própria. Ele é lúcido e modesto. Mas nem todo humor pode ser considerado saudável.
– O deboche de minorias é o contrário disso (do humor negro). Ri-se do outro para afirmar uma superioridade em relação a ele. O deboche é arrogante e, portanto, iludido, explica Kupermann.
Segundo o professor, hoje, o deboche está mais vigiado: a ditadura do politicamente correto é incrementada, o que entra em conflito com a natureza básica do humor em desobedecê-lo.
– Estamos vivendo entre o medo da ofensa e a liberdade de rir dos constrangimentos que a sociedade nos impõe – observa.
A “patrulha do politicamente correto”, tão temida e criticada pelos humoristas, surge com força total nos últimos anos. Essa mudança na sociedade se dá a partir da década de 1990, não só apenas no humor, mas em diversos outros aspectos, como o político. Para Marília Budó, as pessoas estão mais alertas, e isso se relaciona diretamente com os vinte anos de democracia no Brasil, que fazem diferença em qualquer país. A organização de movimentos sociais está cada vez mais consolidada e minorias como feministas e negros, antigamente abafados pela ditadura, agora possuem voz.
– Acho que o caminho da democracia é esse. Tanto os humoristas podem se expressar da forma que bem entenderem, quanto as pessoas ofendidas terem seus danos ressarcidos em virtude de uma ofensa praticada pelo humorista.
Como lidar, portanto, com a liberdade de expressão dos humoristas e com as injúrias que uma piada pode trazer? Arnaldo Branco dá a resposta:
– Humor bom sempre faz vítima, claro. Mas às vezes pode ser tão bom que nem a vítima percebe e se junta ao coro na risada.
O argumento da censura à liberdade de expressão associado com a abertura da democracia em nosso país assemelha-se a uma piada. A conclusão a que se chega é a de que O Riso dos Outros pouco tem de entretenimento ou diversão. Está longe de servir de distração às plateias e carrega um debate ainda novo, raramente discutido na sociedade. E que não demore para se levar a sério.
DA PIADA AO TRIBUNAL, pelo viés de Dairan Mathias Paul*
*Dairan é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria.