– O homem teme a morte porque ama a vida, eis o meu entendimento – observei – e assim a natureza ordenou.
– Isso é vil e aí está todo o engano! – os olhos dele brilharam – A vida é dor, a vida é medo, o homem é um infeliz. Hoje tudo é dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo. E foi assim que fizeram. Agora a vida se representa como dor e medo, e nisso está todo o engano. Hoje o homem ainda não é aquele homem. Haverá um novo homem, feliz e altivo.
Ao longo da história, as narrativas literárias transformaram o suicídio em uma manifestação gloriosa de romantismo. O diálogo acima é travado entre Anton Lavriéntev e Kiríllov, personagens de Dostoievski no livro Os Demônios, de 1872. Kiríllov opta “racionalmente” por abreviar sua morte baseado em uma filosofia de vida cujo ponto central paira no livre-arbítrio, trazendo consigo a maior das dádivas: o poder de se matar. Na mesma obra, ainda temos Stavróguin e sua mente atordoada pelo ato da pedofilia. A culpa o leva à corda, terminando no mesmo destino do amor não-correspondido de Werther, da ode à beleza em Dorian Gray e da crise na sociedade que Emma Bovary faz parte. Contudo, as obras não aprofundam o quadro clínico por detrás deste ato trágico. A intenção suicida está condicionada por fatores que interagem de maneira complexa.
Os desencadeantes variam conforme a pessoa, mas, de uma maneira geral, compreendem transtornos mentais, doenças físicas, abusos de substâncias psicoativas (drogas e álcool), problemas familiares, conflitos interpessoais e situações de vida estressantes. Doenças psiquiátricas foram diagnosticadas em 90% dos casos de suicídio enquanto que nos demais não houve o diagnóstico; embora provavelmente também estejam associadas a patologias.
A depressão, um transtorno de humor, ocupa parcela mais significativa da pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre as causas do suicídio. É bastante comum utilizar o nome desta doença para expressar situações tristes do cotidiano, logo, há uma banalização do termo. A depressão difere de frustrações passageiras, tendo em vista que há um quadro clínico dotado de sintomas específicos, como tristeza prolongada, dificuldades de alimentação, distúrbios do sono, desânimo, queda de autoestima e sentimento de culpa. É como estar preso em um eterno filme preto-e-branco, dentro de um cinema sujo e triste. Há estudos da psicologia cognitiva que indicam que o depressivo observa menos o espectro das cores, tendendo ao cinza, ao não-vivo. A alteração da percepção sensorial está associada à mudança de humor.
Prelúdio
A corrente filosófica do existencialismo pressupõe que, primeiramente, nós existimos; posteriormente, através de nossos atos, constituímos uma essência. Seu principal representante, o filósofo francês Jean-Paul Sartre, entoa: estamos condenados à liberdade.
O existencialismo não prevê nenhum modelo social pronto. Tudo é aberto, centrado em uma liberdade extrema em que, mesmo que a pessoa decida não agir, ela acaba por tomar uma decisão – eis o que a condena. A angústia está intimamente ligada a este poder de decidir: por maior que seja a nossa convicção, muitas vezes a escolha certeira não anula o sofrimento. Porém, os existencialistas enxergam na tristeza uma espécie de terapia. A náusea, o tédio e a angústia, ainda que pareçam carregados de um significado negativo, constituem uma afirmação da própria vida, de sentir-se vivo. Nem o bem e nem o mal são estruturas prontas; eles misturam-se, definindo o que é o ser humano. Nesse contexto, o suicídio seria um escape frente aos modelos já impostos de sociedade. Já para o filósofo alemão Imannuel Kant, o suicídio é um atentado contra a própria autonomia, não sendo, portanto, um direito do homem.
Em seu livro O Suicídio, de 1897, o sociólogo Émile Durkheim apresenta três categorias para a ação. O suicídio altruísta caracteriza-se pela absorção do indivíduo na coletividade. Ele está integrado a tal ponto na sociedade que não se importa em ceder sua vida a algum ideal maior – um exemplo é o kamikaze. O suicídio egoísta representa o contrário: o sujeito não está integrado à sociedade. O indivíduo depende apenas de si mesmo, uma vez que os grupos sociais que ele pertence estão enfraquecidos. A falta de prazer na vida e a impossibilidade de aguentar viver o levam à morte – é uma determinação interna. E o suicídio anômico eclode em colapsos econômicos ou políticos, quando estes desequilíbrios modificam as condições sociais que sustentam os indivíduos. O sujeito, por exemplo, prefere morrer a continuar a viver em um Estados Unidos pós-crise de 1929, episódio que ironicamente ficou conhecido como Grande Depressão.
Todas estas categorias de Durkheimer, chamadas de correntes suicidógenas, são determinadas socialmente. O sujeito que não comete suicídio encontra-se em um estado de equilíbrio que o preserva de tais idéias. Assim, o sociólogo refuta a atuação das patologias no processo do suicídio.
“E eu costumo dizer que a morte está constantemente do nosso lado. A gente é que não pensa nela”. O psicólogo Lucas Lüdtke entende que nossa sociedade não é treinada a pensar sobre a morte. Logo, o baque na perda de um familiar é muito maior quando não se reflete e não se está preparado para enfrentar a situação. No suicídio, o pensamento recorrente ao tema, quando culmina no ato, geralmente é visto como uma ilusão para a solução de problemas. Cerca de 80% das pessoas que efetuam o suicídio, de fato, não querem morrer. “Eu duvido que alguém não tenha pensado em se matar. Isso é da natureza do ser humano”, pondera Lucas.
Interlúdio
Para o cientista social Francis Almeida, o tabu em torno do suicídio não gira na questão do porquê da pessoa ter se matado, mas, sim, no reverso. “É difícil admitir que a pessoa tinha motivos para se matar. Mas quais motivos têm para se viver, de fato? Há bons motivos para se matar, a todo momento. Só que é considerado uma atitude valorada negativamente, do ponto de vista moral. É covardia. O sujeito não foi corajoso a ponto de enfrentar o desafio”. Tais questionamentos, no final das contas, apontam na busca de um sentido para a vida. Francis acredita que a dificuldade está em criar motivações para viver. “A tendência da nossa sociedade contemporânea é não ter um sentido último. Esse esvaziamento do sentido, que é o desencantamento do mundo, é um fantasma semipresente”.
Temos a necessidade de questionar nossas motivações e criar objetivos de vida, seja progredir na carreira ou obter reconhecimento social. O tabu no suicídio é admitir que a pessoa realmente pudesse não ter objetivo algum na vida. “Qual é o sentido da existência? Essa é uma pergunta para a qual, modernamente, não há resposta. Ah, o sentido da vida é viver. Viver é tão bom. Será que é bom mesmo? Será que é realmente tão gratificante viver? A sociedade sempre é composta por contradições. As coisas não são como elas deveriam ser, as pessoas não fazem o que elas deveriam fazer e, cada vez mais, a gente pode observar uma tendência de as exigências amplificarem-se e os recursos manterem-se tão escassos quanto eram”, conclui Francis.
Há ainda os fatores culturais de risco, que devem ser levados em conta, segundo Lucas. O psicólogo acredita que o ato suicida é um conjunto tanto desses fatores como das patologias – e refuta a ideia de que somente um meio social pode ser o causador da morte. Um fator pré-dispositor cultural é o alemão, em cidades colonizadas pela etnia. Geralmente, há uma dificuldade em lidar com sentimentos, além da sua rigidez, contrária à cultura brasileira. No Japão, o harakiri é uma espécie de suicídio autorizado culturalmente, realizado para preservar a honra da família. Porém, o psicólogo acredita que, apesar do fator cultural e da genética, a decisão final é do indivíduo.
Por tratar do suicídio como decorrente de patologias, a medicina refuta a concepção de que a iniciativa do suicídio passa pelo discernimento racional. A decisão parte da vulnerabilidade mental do indivíduo e, portanto, está deturpada. O impulso relaciona-se a uma ideia mágica da libertação através da morte. Os médicos entendem que as pessoas não querem morrer, mas expressar os sentimentos e dar um fim ao sofrimento. Portanto, os profissionais da saúde demonstram que há outra saída: o tratamento psiquiátrico.
O diagnóstico é o ponto de partida para combater a doença; a partir dele, o médico tem dados para tratar o paciente conforme as particularidades do quadro clínico. Especificamente, quando se fala sobre depressão, há a categorização em três tipos: leve, moderada e grave. A forma menos acentuada não inclui o uso de remédios, sendo tratada a base de psicoterapia – consultas periódicas com o psicoterapeuta, a fim de externar as angústias do doente, enquanto que a moderada e a grave recebem uma intervenção farmacológica associada à psicoterapia. Existem várias classes de antidepressivos, cada qual com composições específicas. Uma pessoa que tem transtorno bipolar recebe um fármaco específico, por exemplo.
Além do tratamento médico, a pessoa precisa receber e procurar estímulos, como caminhadas, para diminuir o estresse. As atividades de lazer são necessárias, mas devem acompanhar, com respeito, o processo de recuperação do paciente. Em alguns casos, a depressão é tão severa que a pessoa não executa a própria higiene de maneira espontânea. Nessa situação, o progresso é notado quando o indivíduo procura higienizar-se por sua própria intenção.
Nem todo depressivo comete suicídio, mas a ligação entre os dois casos é estreita. É comum associarmos a depressão com frustrações pessoais. Porém, a própria realização também pode levar à doença. Para Francis, “a realização, em uma sociedade que se orienta para um sentido que vai ser sempre adiante, nunca será plena. Ou a pessoa se frustra porque nunca vai conseguir alcançar a plenitude – que é impossível -, ou ela alcança uma suposta plenitude e se frustra da mesma maneira”. O estranhamento com o depressivo flerta com a histeria, na época de Freud: se aquela pessoa tem tudo, não faz sentido, do ponto de vista racional, que ela se deprima.
Hiato
– Hoje eu não vou almoçar fora contigo, avisou K. ao seu irmão.
Ele voltaria para casa só à noite. Dessa vez, não seria uma tentativa amadora.
Porque a primeira vez foi há mais ou menos um mês e meio, em um impulso desesperado. Desde os 14 anos, eu fazia tratamento para a depressão. Aos 16, me mudei de cidade. Eu estava bem. Decidi parar de tomar os remédios de uma vez só; foi o meu erro. Seis meses depois, nervosismo, nervosismo, e uma nova medicação e, naquele dia, foram sete comprimidos de vez e… Depois de tanto tempo me sentindo morta, por que eu me sentia viva a cada vez que cortava mais um pouco meus pulsos? No dia seguinte, meu irmão me levou a uma clínica psiquiátrica.
Mas hoje ele não estaria em casa. Eu estava consciente. O banquete estava pronto: juntei os comprimidos que tomei durante um mês na clínica. E, naquela tarde, ele veio, porque esqueceu uma peça em casa. Acordei na clínica.
Ainda penso. Particularmente, não acredito que alguém, que já tenha tentado uma vez, consiga tirar isso da mente. O que muda é a perspectiva, o foco, o jeito que vai levando-se a vida. Meu problema nunca foi trauma ou algum acontecimento trágico que me deixou depressiva. Sou uma pessoa muito privilegiada. Tenho tudo, menos objetivos. Não consigo ver-me fazendo nada, como as pessoas ‘normais’ fazem. Não consigo ver-me seguindo o fluxo óbvio e deprimente da vida: estudar, matar-se de trabalhar, descansar no final de semana, ter uma família, matar-se de trabalhar, ter amigos, reclamar do trabalho, pagar a conta no fim do mês, casar, trabalho, conta, filho, amigos, trabalho, família, viagem, parente. Tudo isso gasta muita vida.
O quadro depressivo de K. começou aos 14 anos, com princípios de síndrome do pânico. Depois de duas tentativas de suicídio e uma troca de psiquiatra, K. descobriu que sofria de bipolaridade e que os remédios que tomava não eram os indicados para seu problema. Com a mudança da medicação, K. considera-se estabilizada, ainda que alterne fases de depressão ou euforia.
Continuação
E por que o tema do suicídio dificilmente é discutido? Seria o espanto de uma sociedade cujo imperativo moral não aceita a possibilidade de que alguém decida não viver? Seria a incompreensão de que a pessoa não decidiu suicidar-se, mas cometeu o ato inserido em um quadro clínico extremo?
O grande obstáculo para reduzir as tentativas e as consumações de suicídio é o tabu em falar sobre o assunto. A pessoa com a doença não deve ter vergonha de procurar ajuda médica, já que o fato de estar doente não é sua culpa. Há pessoas que sofrem caladas, com as suas quimeras e não encontram meios para expulsá-las.
O psiquiatra e psicoterapeuta, Dr. Fábio Pereira, acredita na necessidade de externar os sentimentos negativos. A gente tem a impressão de que falar a respeito do suicídio com uma pessoa que tem uma intenção suicida é igual a estimulá-la. Mas o que se sabe é o contrário. Essa pessoa, que está com dificuldade de expressão, tem a tendência de se expressar em atos, se a gente conseguisse ventilar esses pensamentos; a pessoa fala mais e age menos. Uma pessoa que vocês acham que está pensando no suicídio precisar ser atendida por um médico. Ponto.
DE FINAIS ABREVIADOS, pelo viés de Carolina Bonoto, Dairan Mathias Paul e Jean Senhorinho*.
*Carolina, Dairan e Jean são acadêmicos de Jornalismo na UFSM.
O CVV – Centro de Valorização da Vida – é uma organização não governamental que presta ajuda a pessoas que pensam em cometer suicídio, atuando através do diálogo. Para conhecer mais, acesse: http://www.cvv.org.b.
Em Santa Maria, o Hospital Universitário (HUSM) atua com o serviço de atendimento psiquiátrico de emergência 24 horas.
Esta reportagem foi originalmente publicada na revista Fora de Pauta.
Não. A pessoa que está pensando em suicídio precisa ser atendida por um psicólogo. Ou psiquiatra. O médico não estudou cinco anos para isso, o psicólogo sim. A psicoterapia é essencial, o remédio é necessário em alguns casos, e nestes o psicólogo encaminha ao psiquiatra. Só remédio não resolve o problema, só anestesia. O problema continua lá. Por isso nem sempre é o tratamento psiquiátrico o indicado, como afirmado acima. O tratamento psicológico, sim. E aí, em alguns casos, encaminha-se também ao tratamento psiquiátrico. E sim, em grande parte dos casos, falar pela grande mídia ajuda. Mas em alguns casos, pessoas altamente sugestivas, fragilizadas, melancólicas, podem ser estimuladas a cometer o suicídio ao saber de casos que estão ocorrendo, este é dado estatístico. Por isso é que há o pedido de que não se divulgue tanto os casos de suicídio ou pelo menos os detalhes de como ocorreu. Porque a suscetibilidade da pessoa de se influenciar por tais relatos é algo a ser avaliado caso a caso, o que é impossível ao se propagar “aos ventos” uma informação em larga escala, atingindo indiscriminadamente a população. SE VOCÊ ESTÁ DEPRIMIDO, procure um psicólogo, se você tem um parente deprimido, LEVE MUITO A SÉRIO essa situação e busque ajuda profissional. Agora sim, ponto. Joel Franz, Psicólogo, com pós em Morte e Luto.